segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Carta de Bruxelas - 25.

 





                            Para assinalar um ano passado sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

                                                                                 Arbeit macht frei anus mundi

 


O trabalho é uma negação da natureza. Os produtos naturais seguem um curso autónomo e determinado de antemão, nascem, crescem reproduzem e morrem cumprindo a lei da espécie ínsita em cada indivíduo. O seu metabolismo no ambiente não ultrapassa nunca o que lhe está prescrito por essa lei; os seus fins são inseparáveis dessa lei. Na natureza, o tempo é apenas o elemento homogéneo onde se desenrola o processo natural. É como que o genuíno sujeito da natureza.  Enquanto specificum humano, o trabalho nega a lei específica da natureza, a autonomia dos produtos naturais impondo-lhe finalidades humanas. O processo de artificialização escapa, desse modo, ao império do tempo.  Uma árvore desenvolve-se como árvore e nunca será nada mais do que uma árvore. Não tem a possibilidade de ser outra coisa. Vista como madeira, pode ser transformada em cadeira, mesa ou até lenha para uma lareira. O trabalho arranca a natureza da sua posição de sujeito e torna-a objecto humano. E fá-lo precisamente por uma inversão do tempo. O produto natural deixa de ser um passivum do tempo e passa a ser, enquanto objecto negado, um activum do tempo. E esse tempo é o tempo humano. No trabalho, o homem torna-se senhor do tempo. Nessa posse, a objetivação da natureza externa está em acção recíproca com a objetivação da natureza interna. A transformação do produto natural exige uma modificação da natureza interna.             Cozinhar os alimentos implica a suspensão da vinculatividade do instinto natural, essa razão alheia no animal, o adiamento da satisfação da necessidade natural. No trabalho, o estímulo da natureza exterior e o estímulo da natureza interna perderam o seu poder, já não conseguem determinar no homem a eterna repetição do ciclo natural. O trabalho libertou o homem do tempo. Os fins são seus, não da natureza. O trabalho liberta.

O nacional-socialismo submeteu esta velha tradição intelectual, vigorosa na Alemanha, maxime em Hegel, a uma reinterpretação. Inscrevê-la como máxima no portão de entrada de Auschwitz dá disso testemunho. O que era vida humana há-se de se tornar morte humana. O trabalho no processo de extermínio é o trabalho da morte, não visa impor fins humanos a um material natural. Pelo contrário, a morte no Lager exigia a redução prévia dos humanos a material, o que significa subtrair ao homem a sua disposição de possibilidades. Reintegrava as suas vítimas no processo do tempo natural e, desse modo, a morte deixava de ser morte de homem a homem. No Lager, o judeu pagava a exorbitância de um Deus criador que desencantou a natureza. E tal como a vítima era reduzida a material também o carrasco pretendia ser a voz oprimida de uma natureza que se vingava, e, nesse passo, reservava para si a atividade insigne da passividade o poder da imanência absoluta, que se revela na excrescência do mal absoluto. As chaminés dos crematórios expelem os excrementos da digestão purificadora do mundo anus mundi. É esse o trabalho sem finalidade exterior que se revolve eternamente sobre si mesmo.

Hoje regressa esse antigo pesadelo, quando se pretende deduzir o trabalho de identidades naturais, difamando como traição a autonomia das possibilidades, substituindo de maneira tão escandalosamente semelhante o Blut und Boden por aquelas. O trabalho volta a ser o poder imanente fechado em si, sem promessa. Que as identidades se juntem a algum islamismo contra Israel não surpreende. Entre as falsas equivalências, uma há que é das mais perniciosas, a saber, a de que a origem comum das três religiões implica uma compreensão teológica comum. Na tradição judaica e cristã, o milagre é sempre operado em favor do homem, nunca como exibição do poder absoluto de um Deus que se regozija nesse absoluto perante a criatura débil; no Corão verifica-se frequentemente o contrário. Esse poder sem exterior conjuga-se muito bem com renaturalização das identidades como código inescapável. A eliminação de Israel e dos judeus presente hoje nos protestos contra Israel Gas the jews! visa a eliminação do testemunho de que o homem, ele e só ele, responde perante si mesmo pelo que de si fizer, pelo seu tempo. A velha história do rabi que não abandona as suas tarefas quando lhe anunciam a presença do Messias confirma essa responsabilidade indeclinável. 

Politicamente, a democracia não pode deixar de constituir o inimigo por excelência desse funesto consórcio ideológico. Nela, o lugar do poder está vazio por natureza, tal como por natureza o seu tempo é o tempo da decisão humana responsável perante si mesma. É-lhe consubstancial o ónus da decisão, e a felicidade e infelicidade que lhe estão associadas e que põem em marcha o seu trabalho sobre si mesma, trabalho que não elimina o poder-ser humano, mas, pelo contrário, o mantém sempre aberto.  De certa maneira, nela, como no judaísmo, nasce o mundo. 


                                                                            João Tiago Proença