segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Os desastres da guerra e do amor, fidelidade e desilusão política.

 



Logo ficamos a saber que é um foragido, saberemos depois que conheceu as crueldades da guerra, será sempre uma guerra indeterminada, reencaminha-se, na sua deserção, para os locais da sua origem, aparece-nos literalmente exausto, emporcalhado, numa natureza áspera, em que a montanha rumoreja, o vento atravessa os cumes, desce para a comba e vibra entre os arbustos, a sua ânsia é chegar ao casebre que o protegerá como na infância. E saltamos para outra história, estamos em Berlim, no dia 11 de setembro de 2001, num cruzeiro de nome Beethoven, ali decorrerá uma conferência, as Jornadas Paul Heudeber, um famosíssimo matemático alemão, desaparecido em 1995, não se sabe se por acidente ou suicídio. Este matemático vivia na Berlim da RDA, por inteira convicção política, a sua amada, Maja, vivia em Bona, trabalha junto de Willy Brandt, o chanceler social-democrata. A correspondência entre as duas Alemanhas é de uma extrema beleza: “És o selo de tudo, única. O teu afastamento aproxima o infinito. Só tu me permites escapar ao tempo, ao mal, aos fluxos da melancolia.” Somos apresentados aos participantes do evento científico, sempre no rio Havel, para ele convergem alguns dos nomes mais sonantes da matemática à escala mundial. Voltamos ao desertor, ele caminha no rumorejar obsessivo da montanha, lá em cima as manchas pretas dos aviões que descarregam bombas em terras longínquas, o mar não está longe, está sedento e esfaimado, a barba é rude como a casca da árvore, passou por um desfiladeiro, a casa está ali em baixo, à direita. Assim arranca este espantoso romance intitulado Desertar, por Mathias Enard, Prémio Goncourt 2015, Publicações Dom Quixote, 2024.

Mudamos de tempo e lugar, em 2021 a guerra parece próxima, entra em cena Irina, filha de Maja e Paul, nasceu em 1951, a RDA acabava de cumprir dois anos. Paul ganha notoriedade internacional com a sua obra As Conjeturas do Ettersberg, escrito acerca da sua detenção no campo de concentração de Buchenwald, o livro deu a volta ao mundo, terá sido a única obra de matemática com a categoria de bestseller. Parece caber a Irina a missão de revelar ao leitor o amor de Maja e Paul, compete-lhe procurar interpretar esse tempo da ascensão do nazismo até ai colapso dos estados comunistas e por onde pairou a paixão ardente daquele casal onde o amor aplacava as dissidências políticas.

O desertor mata a sede, lava o corpo em água gelada, chega uma intrusa com um burro, vão começar as vicissitudes de dois sobreviventes. Voltamos às jornadas no Havel, Irina dá-nos conta das convicções do seu pai, acreditava piamente na agonia do imperialismo, escrevendo mesmo a Maja: “Berlim Ocidental é um prego na sola do sapato de Khrushchov. Prefiro pensar com orgulho que o socialismo mostra a cada dia a força desse coração, o poder dessa Europa, e que, em breve, será essa poça de capitalismo que é Berlim Ocidental que irá secar sozinha. Desertor e a recém-chegada e o burro ali estão, na solidão da montanha, o desertor ainda pensou em usar a arma, agora medem-se, algo os irmana, “a guerra fez tudo voltar ao zero, apagou tudo aplainou tudo limou tudo, os automóveis calcinados nas valetas das estradas os aviões manchas no poente um zumbido um assobio e tudo arde nos gritos da derrota.” Voltando à correspondência amorosa, Paul escreve a Maja em 1961, chegou o muro de Berlim: “Construímos uma barricada contra o fascismo. Em betão e numa noite. Ou pouco mais. Agora somos grandes e invencíveis – claro, o lado ocidental está cercado e vencido. Tudo depende da forma como considerarmos este conjunto; o princípio do infinito é que este contenha sempre uma quantidade maior.” E de novo nas jornadas, Maja está flamante, isto a par de uma chuva diluviana que caiu para os lados daquela montanha em que o desertor e a sobrevivente se irão confrontar. A memória de Irina é imparável, recorda-nos a história da matemática, o entusiasmo do pai pelo socialismo que ele pensa que está a ser instaurado na RDA. Lá para aquela montanha perto da Rocha Negra, o desertor trata da sobrevivente, e a memória de Irina faz-nos cair em cheio em Buchenwald, pelas cartas amorosas iremos também saber que fugiram aos nazis, encontraram acolhimento em Liège, a Gestapo recambiou-os para a Alemanha, o desertor trata carinhosamente a sobrevivente, na correspondência amorosa Paul escreve: “Maja meu amor venceremos, temos a força do círculo, a do triângulo retângulo sem o qual não existe o círculo, sólidos como dois anéis um dentro do outro, a invariância do campo da paixão. Mando esta carta para Norte. Enfio-me dentro dela como um génio na lâmpada. Se sussurrares abracadabra com carinho e esfregares o papel muito devagar contra o peito, eu apareço.”

Um acontecimento histórico deita for terra a realização das jornadas no rio Havel, a televisão mostra as imagens de um avião a despenhar-se numa nuvem de fogo, corpos a cair das janelas, as Torres Gémeas desmoronam-se, à volta da mesa os cientistas falam do que aconteceu na Europa, há uma instabilidade que se avizinha, um tanto indefinível. O desertor pensa partir sozinho, hesita, ir-se embora abandonando-a indefesa e tão doente em matá-la. E naquele dia de setembro de 2011, percorremos um tanto a história da Europa e a história da matemática, há até um estranho participante nas jornadas, de nome Isidro Baza que conta publicamente como Paul e ele viveram aqueles anos 1940.

Desertor e sobrevivente e um burro muito doente encaminham-se para uma fronteira próxima, observam o despenhadeiro da Rocha Negra. Destes dois caminheiros sabemos que ele acendeu uma fogueira, colocou pedras planas e preparou uma fogueira para preparar as trutas que apanhou no rio, a sobrevivente está agitada, ainda desconfia do desertor e até lhe passa pela cabeça matá-lo. Agora há lembranças de 1995, quando a guerra chegou ao fim na Bósnia, onde Paul morreu afogado aos 77 anos. De Nova Iorque, um ilustre matemático que comparecera às jornadas do rio Havel, Linden S. Pawley escreve a Irina, estamos em maio de 2012, carta confessional, ele e Maja tinham tido uma relação ocasional, volta ao passado, há fuga para a Bélgica em maio de 1940, eles fugitivos, há uma denúncia, segue-se Buchenwald. “Querida Irina, não me julgues. Não nos julgues. Achei importante escrever-te, antes de tudo acabar no esquecimento.” Temos agora uma carta de Paul envelhecido: “Maja, meu amor. A matemática é um véu pousado sobre o mundo, que se ajusta às formas do mundo, para o envolver completamente; é uma linguagem e é uma matérias, palavras numa mão, lábios num ombro; a matemática arranca-se como um gesto rápido: podemos ver então a realidade do universo, podemos acaricia-la como o gesso dos moldes, com as asperezas, as saliências, as linhas, sejam elas de fuga ou de vida. Esse véu, essa toalha sobre o mundo, também é a mortalha na qual me envolvo quando chega a hora de ir embora.”

É neste carrossel de múltiplos tempos e lugares que Irina vai a caminho de Ettersburg, perto de Weimar, é nisto que aqueles fugitivos se deparam com três soldados, há quem queira abusar da sobrevivente, no desespero ela espeta-lhe uma agulha no olho, estamos já em 2021, há bombardeamentos russos na Rússia, Irina imagina o seu pai a escrever uma parte da sua obra em Buchenwald.

É uma obra prodigiosa, talvez uma metáfora sobre as diferentes guerras que endemoninham a Europa, é uma escrita esplendente de um escritor cultíssimo, e é preciso ter muito talento para gerar esta tensão no leitor com a história justaposta de dois destinos aparentemente sem relação um com o outro. 


                                                                Mário Beja Santos




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