Logo
ficamos a saber que é um foragido, saberemos depois que conheceu as crueldades
da guerra, será sempre uma guerra indeterminada, reencaminha-se, na sua
deserção, para os locais da sua origem, aparece-nos literalmente exausto,
emporcalhado, numa natureza áspera, em que a montanha rumoreja, o vento
atravessa os cumes, desce para a comba e vibra entre os arbustos, a sua ânsia é
chegar ao casebre que o protegerá como na infância. E saltamos para outra
história, estamos em Berlim, no dia 11 de setembro de 2001, num cruzeiro de
nome Beethoven, ali decorrerá uma conferência, as Jornadas Paul
Heudeber, um famosíssimo matemático alemão, desaparecido em 1995, não se sabe
se por acidente ou suicídio. Este matemático vivia na Berlim da RDA, por
inteira convicção política, a sua amada, Maja, vivia em Bona, trabalha junto de
Willy Brandt, o chanceler social-democrata. A correspondência entre as duas
Alemanhas é de uma extrema beleza: “És o selo de tudo, única. O teu afastamento
aproxima o infinito. Só tu me permites escapar ao tempo, ao mal, aos fluxos da
melancolia.” Somos apresentados aos participantes do evento científico, sempre
no rio Havel, para ele convergem alguns dos nomes mais sonantes da matemática à
escala mundial. Voltamos ao desertor, ele caminha no rumorejar obsessivo da
montanha, lá em cima as manchas pretas dos aviões que descarregam bombas em
terras longínquas, o mar não está longe, está sedento e esfaimado, a barba é
rude como a casca da árvore, passou por um desfiladeiro, a casa está ali em
baixo, à direita. Assim arranca este espantoso romance intitulado Desertar,
por Mathias Enard, Prémio Goncourt 2015, Publicações Dom Quixote, 2024.
Mudamos
de tempo e lugar, em 2021 a guerra parece próxima, entra em cena Irina, filha
de Maja e Paul, nasceu em 1951, a RDA acabava de cumprir dois anos. Paul ganha
notoriedade internacional com a sua obra As Conjeturas do Ettersberg,
escrito acerca da sua detenção no campo de concentração de Buchenwald, o livro
deu a volta ao mundo, terá sido a única obra de matemática com a categoria de
bestseller. Parece caber a Irina a missão de revelar ao leitor o amor de Maja e
Paul, compete-lhe procurar interpretar esse tempo da ascensão do nazismo até ai
colapso dos estados comunistas e por onde pairou a paixão ardente daquele casal
onde o amor aplacava as dissidências políticas.
O
desertor mata a sede, lava o corpo em água gelada, chega uma intrusa com um
burro, vão começar as vicissitudes de dois sobreviventes. Voltamos às jornadas
no Havel, Irina dá-nos conta das convicções do seu pai, acreditava piamente na
agonia do imperialismo, escrevendo mesmo a Maja: “Berlim Ocidental é um prego
na sola do sapato de Khrushchov. Prefiro pensar com orgulho que o socialismo
mostra a cada dia a força desse coração, o poder dessa Europa, e que, em breve,
será essa poça de capitalismo que é Berlim Ocidental que irá secar sozinha.
Desertor e a recém-chegada e o burro ali estão, na solidão da montanha, o
desertor ainda pensou em usar a arma, agora medem-se, algo os irmana, “a guerra
fez tudo voltar ao zero, apagou tudo aplainou tudo limou tudo, os automóveis
calcinados nas valetas das estradas os aviões manchas no poente um zumbido um
assobio e tudo arde nos gritos da derrota.” Voltando à correspondência amorosa,
Paul escreve a Maja em 1961, chegou o muro de Berlim: “Construímos uma
barricada contra o fascismo. Em betão e numa noite. Ou pouco mais. Agora somos
grandes e invencíveis – claro, o lado ocidental está cercado e vencido. Tudo
depende da forma como considerarmos este conjunto; o princípio do infinito é
que este contenha sempre uma quantidade maior.” E de novo nas jornadas, Maja
está flamante, isto a par de uma chuva diluviana que caiu para os lados daquela
montanha em que o desertor e a sobrevivente se irão confrontar. A memória de
Irina é imparável, recorda-nos a história da matemática, o entusiasmo do pai
pelo socialismo que ele pensa que está a ser instaurado na RDA. Lá para aquela
montanha perto da Rocha Negra, o desertor trata da sobrevivente, e a memória de
Irina faz-nos cair em cheio em Buchenwald, pelas cartas amorosas iremos também
saber que fugiram aos nazis, encontraram acolhimento em Liège, a Gestapo
recambiou-os para a Alemanha, o desertor trata carinhosamente a sobrevivente,
na correspondência amorosa Paul escreve: “Maja meu amor venceremos, temos a
força do círculo, a do triângulo retângulo sem o qual não existe o círculo,
sólidos como dois anéis um dentro do outro, a invariância do campo da paixão.
Mando esta carta para Norte. Enfio-me dentro dela como um génio na lâmpada. Se
sussurrares abracadabra com carinho e esfregares o papel muito devagar contra o
peito, eu apareço.”
Um
acontecimento histórico deita for terra a realização das jornadas no rio Havel,
a televisão mostra as imagens de um avião a despenhar-se numa nuvem de fogo,
corpos a cair das janelas, as Torres Gémeas desmoronam-se, à volta da mesa os
cientistas falam do que aconteceu na Europa, há uma instabilidade que se
avizinha, um tanto indefinível. O desertor pensa partir sozinho, hesita, ir-se
embora abandonando-a indefesa e tão doente em matá-la. E naquele dia de
setembro de 2011, percorremos um tanto a história da Europa e a história da
matemática, há até um estranho participante nas jornadas, de nome Isidro Baza
que conta publicamente como Paul e ele viveram aqueles anos 1940.
Desertor
e sobrevivente e um burro muito doente encaminham-se para uma fronteira
próxima, observam o despenhadeiro da Rocha Negra. Destes dois caminheiros
sabemos que ele acendeu uma fogueira, colocou pedras planas e preparou uma
fogueira para preparar as trutas que apanhou no rio, a sobrevivente está
agitada, ainda desconfia do desertor e até lhe passa pela cabeça matá-lo. Agora
há lembranças de 1995, quando a guerra chegou ao fim na Bósnia, onde Paul
morreu afogado aos 77 anos. De Nova Iorque, um ilustre matemático que
comparecera às jornadas do rio Havel, Linden S. Pawley escreve a Irina, estamos
em maio de 2012, carta confessional, ele e Maja tinham tido uma relação
ocasional, volta ao passado, há fuga para a Bélgica em maio de 1940, eles
fugitivos, há uma denúncia, segue-se Buchenwald. “Querida Irina, não me
julgues. Não nos julgues. Achei importante escrever-te, antes de tudo acabar no
esquecimento.” Temos agora uma carta de Paul envelhecido: “Maja, meu amor. A
matemática é um véu pousado sobre o mundo, que se ajusta às formas do mundo,
para o envolver completamente; é uma linguagem e é uma matérias, palavras numa
mão, lábios num ombro; a matemática arranca-se como um gesto rápido: podemos
ver então a realidade do universo, podemos acaricia-la como o gesso dos moldes,
com as asperezas, as saliências, as linhas, sejam elas de fuga ou de vida. Esse
véu, essa toalha sobre o mundo, também é a mortalha na qual me envolvo quando
chega a hora de ir embora.”
É
neste carrossel de múltiplos tempos e lugares que Irina vai a caminho de
Ettersburg, perto de Weimar, é nisto que aqueles fugitivos se deparam com três
soldados, há quem queira abusar da sobrevivente, no desespero ela espeta-lhe
uma agulha no olho, estamos já em 2021, há bombardeamentos russos na Rússia,
Irina imagina o seu pai a escrever uma parte da sua obra em Buchenwald.
É uma obra prodigiosa, talvez uma metáfora sobre as diferentes guerras que endemoninham a Europa, é uma escrita esplendente de um escritor cultíssimo, e é preciso ter muito talento para gerar esta tensão no leitor com a história justaposta de dois destinos aparentemente sem relação um com o outro.
Mário
Beja Santos
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