segunda-feira, 18 de novembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (285).

 

 

 

O post de hoje refere-se aos distritos de Holabrunn e Horn no Estado da Baixa Áustria.

Em Ravelsbach, uma estátua de pedra representa São Cristóvão. É da autoria do escultor Werner Marinko (1887-1965), nascido na Croácia, activo na II Guerra Mundial numa aldeia próxima e do lado errado. Os derrubadores de estátuas não estão activos nestas paragens…

 


Schöngrabern, a 20 quilómetros da fronteira com a Chéquia, é célebre por ter sido o cenário de um combate das guerras napoleónicas ocorrido entre as batalhas de Ulm e Austerlitz. Teve lugar em 16 de Novembro de 1805 e é tratado por Tolstoi na Guerra e Paz. É o episódio do baptismo de fogo do Príncipe André.

A igreja paroquial dedicada a Nossa Senhora da Natividade tem duas metades completamente diferentes: a românica e a barroca.

A românica é notável e de uma beleza extraordinária. No exterior, vários baixos relevos de grande qualidade, nomeadamente o que representa do lado esquerdo uma caça ao javali e do lado direito a roda do tempo.

No interior, um fresco de cerca de 1350 onde se apresenta o nosso Santo numa atitude de poder com manto de arminho e coroa ducal.

 

 


 No distrito de Horn, Gars am Kamp chegou a ser capital da Áustria no Século XI no tempo da família Babenberg. Numa ponte à entrada da localidade existe uma estátua de São Cristóvão inaugurada em 1974. Ao fundo o castelo dos Babenberg.

 

 

Finalmente, a igreja paroquial de Sigmundsherberg é dedicada a São Cristóvão e foi consagrada em 1937. Possui um fresco no coro da autoria de Franz Pitza e uma estátua de madeira.

 



                                            

                                                Fotografias de 4 de Agosto de 2024 

                                                                    José Liberato


sábado, 16 de novembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (284).

 

 

 

Krems an der Donau é a quinta maior cidade da Áustria. Centro económico, comercial e cultural, vive sob a égide do Danúbio, sofrendo aliás das suas inundações como aconteceu este ano. Tem também uma presença do nosso Santo, nomeadamente nos seus arredores.

 

Em Mautern an der Donau, na outra margem do Rio, um mural na Mauterbach, na empena de um edifício:

 


Em Stein an der Donau, a Igreja de São Nicolau é a que figura em primeiro lugar na fotografia. No exterior tem um mural em mau estado.

 



 

Em Krems, na Hohermarkt, uma consola suporta uma pequena estátua de São Cristóvão datada de 1468. É uma cópia, estando a original no Museu local. O edifício é gótico.

 




Finalmente em Rehberg, a Igreja de São Tiago Maior tem um grande mural na sua torre representando São Cristóvão com elementos diferentes do habitual dado que o Menino Jesus se encontra suspenso no ar.

Na sacristia, convenci o sacristão a libertar um fresco do nosso Santo que se escondia atrás de um painel de madeira.


 


                                                    Fotografias de 3 e 4 de Agosto de 2024 

                                                                                    José Liberato




sábado, 9 de novembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (283).

 


 

 

E aproximamo-nos do rio Danúbio cujo curso acompanharemos até Viena.

E comecei por Erlauf, município que toma o nome de um dos afluentes do Danúbio e cuja igreja paroquial, do Século XVIII, é dedicada a São João Nepomuceno, Santo muito presente na Europa Central.

No exterior, existe uma pintura de grandes proporções representando São Cristóvão. É de 1953 e da autoria do pintor austríaco Sepp Mayrhuber (1904-1989).




Em Pöbring, a Igreja paroquial de São Bartolomeu, de estilo gótico tardio, tem uma característica pouco comum: a torre sineira é pouco mais alta que o corpo da igreja.

No interior há uma imagem do nosso Santo.

 



Muito perto, em Artstetten, situa-se o castelo onde viveu o designado herdeiro do Imperador Francisco José, o Arquiduque Francisco Fernando, o que foi assassinado em Sarajevo em 1914. O Palácio permanece na família.

 


Em St. Michael uma notável igreja fortificada, também em estilo gótico tardio construída no local onde o Imperador Carlos Magno terá mandado erigir uma capela no ano 800.

No topo do seu telhado sete figuras em terracota de cavalos e veados dão um toque muito original à igreja. No ossário adjacente, os restos deteriorados de um fresco de São Cristóvão do último quartel de Século XV. O Santo ostenta uma coroa de marquês.

 




Finalmente, numa rua de Weissenkirche in der Wachau, um belíssimo mural:

 


                                     Fotografias de 3 de Agosto de 2024

                                                                        José Liberato




Carta de Bruxelas.


                                                                              

                                                                       

                                                        Uma excepção. 




                                                        Palermo, Setembro de 2024
                                                                                Fotografia e nota de João Tiago Proença








 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

‘Grand Tour’, ou a sua impossibilidade intrínseca.


 

 

Há um momento completamente inesperado no início da segunda parte do filme ‘Grand Tour’, de Miguel Gomes, em que se faz luz sobre a sua cuidadosa e aparente falta de sentido: é quando uma das duas personagens principais, Molly, desatando a rir - de lábios franzidos, qual criança traquinas - emite um som cómico totalmente inesperado e irreverente, de puro gozo. Trata-se de um som difícil de reproduzir graficamente (brrr, brrr, brrr?) que julgo todos já ouvimos – e que alguns de nós já emitimos, quando quisemos dizer “Deixa-me rir!”

Este ‘ruído’ feito por Molly é um ruído que podemos considerar brechtiano – e não só – sobretudo porque que nos acorda de vez da lengalenga narrativa temporalmente situada em 1918, de lógica ainda tão fim de siècle - embora já disruptivamente mesclada com imagens contemporâneas de várias regiões asiáticas como pano de fundo. Essa narrativa apresenta-nos um estereótipo plausível, à época: uma rapariga noiva há sete anos (Molly), cansada de esperar pelo casamento, decide ‘perseguir’ o noivo (Edward), mas – e aqui reconhecemos mais uma insidiosa estranheza subtilmente inoculada – completamente sozinha por longínquas terras da Ásia, desenvolta, desembaraçada, como um torpedo perfeitamente direcionado (em gritante contraste com a contínua desorientação e indecisão do noivo, que se limita a uma contínua fuga reativa). Este paradoxo mudo e simultaneamente gritante instala cuidadosamente a primeira dúvida mais óbvia sobre a construção da personagem da menina casadoira e tradicional que vê no casamento o seu único objetivo e saída. A segunda dúvida – que, como dito, se nos apresenta como um sinal (talvez o mais importante, entre muitos) – surge quando esta jovem da alta burguesia inglesa, com a respetiva educação e etiqueta, decide sem mais, num espaço público, emitir o som em causa, à época seguramente ‘inestético’ e de ‘mau tom’.  (O ruído de gozo dos lábios franzidos de Molly repetir-se-á, de resto, várias vezes ao longo do filme, ficando-nos na memória como um alerta e uma ‘marca’ - cómicos e altamente disruptivos - que conhecemos de outros filmes inesquecíveis, como p. ex. as gargalhadas estridentemente cómicas do Mozart de Milos Forman.)

Mas voltemos ao momento em que o estranho ‘ruído’ é emitido por Molly pela primeira vez. Longe de despontar sozinho e do nada, ganha especial significado no contexto e exato minuto em que surge. Temporalmente, esse momento localiza-se imediatamente depois de Molly: a) ter viajado milhares de quilómetros até Rangum, na Birmânia, para finalmente se casar com o noivo Edward, e de constatar que este fugiu; b) ter verbalizado a vontade de o seguir para Singapura sem que este o tenha solicitado; c) ouvir ‘a’ pergunta porventura mais óbvia e lógica de todas, que o primo lhe coloca: não será que o noivo perdeu a intenção de casar com ela?

É, pois, em resposta a esta pergunta, que Molly emite súbita e inesperadamente o cómico ruído em questão, rindo a bandeiras despregadas e acrescentando, em exclamação, a palavra (que completa a) chave: “Absurdo!!!” E é esse o momento que, subitamente, nos confirma a lógica de ‘inversão’ já semi adivinhada do filme, até porque, como já ficou dito, ao longo de ‘Grand Tour’ Molly repete o dito ‘som’ e a respetiva exclamação da palavra “Absurdo” várias vezes. Através deste ‘mecanismo’ de Molly, os raciocínios da lógica mais comum, prosaica e tida como ‘normal’, passam a ‘absurdos’, e os que habitualmente se consideram ‘absurdos’ passam a apresentar-se não só como perfeitamente plausíveis, como também – e consequentemente - destruidores da suposta ‘normalidade’ vigente e de todos os seus inquestionados estereótipos.

E este absurdo que nos pretende desinstalar do conforto dos nossos estereótipos abarca, insidiosamente, todo o filme, por várias vias, e sobretudo pela via inesperada e subterrânea da língua falada, ‘normalmente’ tida como um simples ‘canal’. Vejamos: no universo totalmente britânico e/ou de colonialismo britânico que ‘Grand Tour’ nos apresenta, as personagens - todas britânicas ou de (ex) colónias britânicas - insistem, pasme-se, em falar umas com as outras – apenas, sempre e contra toda a lógica - em português. Este facto não é naturalmente de somenos importância (quem consegue aqui não lembrar o aforismo de Mac Luhan “the message is the medium”?) e leva-nos a várias (muitas!) perguntas encadeadas, porque é isso que ‘Grand Tour’ faz, leva-nos a colocar muitas perguntas:

- Porque consideramos tão absurdo o português falado por britânicos entre si no seu dia a dia, se assistimos todos os dias a filmes de todas as culturas e regiões do globo falados em inglês sem um pestanejar?

- Porque é que num filme português, em que toda a ação se passa em cenário colonial (territórios asiáticos quase todos seguramente pisados por portugueses antes dos ingleses) não há uma única referência explícita a Portugal nem aos portugueses - com exceção da referida língua/canal, ironicamente sempre presente, do género ‘gato escondido com o rabo de fora’?

- Porque fica assim o ónus do colonialismo tão convenientemente evacuado do universo português?

- Porque continuamos assim a ‘tirar a água da capota’ tomando os outros por tolos – e sobretudo a nós próprios?

Não abusando da paciência do leitor, passemos das perguntas (longe de esgotadas) ao tópico seguinte de ‘Grand Tour’, na senda da sua inversão do conceito de absurdo:

O escamoteamento considerado ‘normal’, na época, da diferença abissal entre classes sociais e respetivas condições laborais - infelizmente ainda hoje presente em tantos cenários, óbvios ou insuspeitos, pois convém lembrar que os estereótipos são como as nódoas: atingem todos os panos… Julgo que aqui será suficiente referir um único instante do filme pois, pelo seu peso, dispensa quaisquer outros. Trata-se do momento em que Molly, contra todos os elementos, correntes, conselhos e razoabilidades possíveis, faz finca-pé e opta por um meio de transporte fluvial inviável e sinistro: a subida do rio (impraticável naquela época do ano) em barco puxado por cordas, a partir de terra, por seres humanos, num esforço desmesurado e desumano. A imagem destes homens e mulheres em esforço total, nus, sob a chuva torrencial e a inclemência dos elementos, dura talvez uns segundos. O seu impacto, esse, fica-nos gravado a fogo na retina, talvez para sempre. Por isso, quando no instante seguinte um padre (!), não por acaso com um jumento (!), aceita – com elegante retórica - o convite de Molly para se fazer transportar no mesmo barco, o absurdo e o terror confundem-se. Mais uma vez, em ‘Grand Tour’, uma questão absolutamente determinante (desta vez a insensibilidade total perante o sofrimento humano na base da pirâmide social) - é passada num ápice (percebemos a alergia a sentimentalismos), para quem puder ou quiser ver: gritante e insuportável para uns, invisível ou completamente irrelevante para outros.

Para fechar o ciclo, voltemos ao início - ao título do filme – tomando por base a primeira definição que a net nos disponibiliza:Grand Tour servia como um rito de passagem educacional. Associado inicialmente com a Grã-Bretanha, especialmente com a gentry e a nobreza britânica, posteriormente viagens semelhantes também seriam feitas por jovens endinheirados de nações do Norte da Europa e do restante do Continente.” Trata-se assim, relembremos, de uma das últimas versões da mítica ‘Viagem’ primordial, aquela que deverá conduzir ao ‘autoconhecimento’. No caso de Edward e de Molly, porém, este ‘Grand Tour’ é feito aparentemente de modo involuntário, impelido por razões externas, de modo apenas físico, geográfico e não assumido. Também por isso, o ‘autoconhecimento’ que cada um à sua maneira persegue, de modo encapotado e provavelmente inconsciente, escapa-lhes sempre, etapa após etapa, num percurso de milhares de quilómetros. Como todos (?), estes noivos desgarrados procuram – porventura sem o saber - o significado inerente à vida, não sendo já capazes de encontrá-lo num mar (literal e metafórico) de incertezas, um universo que se mostra cada vez mais sem propósito entendível, na lógica tradicional, e porventura noutras lógicas também. Daí que a inversão da lógica da ‘normalidade’, no filme, seja tão importante, assim como a tentativa de encontrar outras lógicas. Porque ‘Grand Tour’ está muito empenhado em mostrar que não há certezas, incluindo a certeza de existirem só incertezas. Daí o absurdo, usado não só para desmascarar a lógica ‘natural’ instalada, mas também – e quem sabe sobretudo – para apontar que nem tudo estará, eventualmente, perdido.

Não chegando a pontos tão extremados como realizadores que conhecemos do cinema absurdo – começando p. ex. com Buñuel e terminando com Yorgos Lanthimos - e talvez mais próximo do teatro do absurdo que o antecedeu – Beckett, Ionesco, até certo ponto Pinter e por aí fora – Miguel Gomes não apresenta aqui uma lógica (totalmente) niilista. Fazendo uso de elementos e lógicas oníricas (p. ex. selvas ameaçadoras em claro escuro, como já em ‘Tabu’), não abdica totalmente, como veremos, de um lado potencialmente utópico (Edward?) e alegre (Molly), nem de uma réstia de esperança no sentido da vida e do mundo, contra tudo e contra todos, incluindo a morte.

De facto, no final do filme Edward não encontra saída e Molly adoece e morre, mas depois desse ‘unhappy end’, num volte face inesperado, antes do genérico – num momento em que o espetador, supostamente, já não tem possibilidade de ver o que se passa em cena, - a atriz (ou a personagem Molly?), abre hesitantemente os olhos e ergue-se, qual Lázaro ressuscitado e, embora titubeante, continua a sua marcha numa direção desconhecida.

‘Grand Tour’ mostra-nos, assim, a sua impossibilidade intrínseca, num mundo contemporâneo ‘fluido’, sem inocência possível (como p. ex. ‘La La Land’ nos mostrou a impossibilidade de um musical clássico de Hollywood), mas faz questão de não fechar definitivamente a porta e, na estreita frincha da sua abertura, quem quiser - ou puder - vislumbrará um espaço por explorar, aberto.

                                                                                    Leonor Sá

 

 

 

 

 

 

 


A Tale of Two Cities.

 


Foram tempos magníficos, foram tempos tenebrosos, foi a era da sabedoria, foi a era da estultícia, foi a época das convicções, foi a época da incredulidade, foi a idade da luz, foi a idade das trevas, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós,  nada tínhamos diante de nós, íamos todos direitos para o Céu, íamos todos direitos em sentido contrário – em suma, aquela época assemelhava-se tanto à presente que algumas das suas eminências mais exuberantes insistiam que apenas a poderíamos adjectivar, para o bem ou para o mal, lançando mão do grau superlativo.


Charles Dickens, História em Duas Cidades, 1859




   

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Dependência digital, uma patologia das redes sociais que se impõe alertar.

 


 

 

O livro Dependência Digital, de Pedro Prostes da Fonseca, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2024, que se revela uma aprimorada obra de divulgação, lembra-nos que o mundo vive hoje colado aos ecrãs (computadores, tablets, iPads ou smartphones) e a exposição a estas tecnologias e seus conteúdos é suscetível de produzir dependentes digitais. Enviam-se sérias advertências para a geração Z e a todos aqueles que estão extremamente vulneráveis à dependência digital.

O primeiro alerta tem a ver com as posturas e nelas permanecer durante horas, situações que podem acarretar dores lombares, tendinites, epicondilites, isto para não falar em casos mais sérios. E fazem-se recomendações para uma boa postura, incluindo exercícios para as mãos, são indispensáveis atitudes positivas em relação à boa saúde.

Estima-se que mais de 3,5 mil milhões de pessoas jogam com regularidade videojogos, de crianças a adultos. Daí a necessidade da prevenção desde tenra idade. Uns autores citados, é Catherine L’Ecuyer, afirma que muitos erros foram cometidos desde aparecimento das tecnologias. Facilitar o uso destas em crianças em idades precoces foi um deles: “Se as crianças forem expostas a um ecrã antes dos três anos, não serão capazes de transpor uma imagem a duas dimensões para o mundo tridimensional.” E, mais adiante: “A criança é bombardeada com estímulos porque se presume que se não for estimulada não vai, digamos, aprender a andar, o que não é verdade. Maria Montessori (pedagoga italiana) dizia que fazer pela criança o que seria ela a fazer é substituir-se a ela, ou seja, é cancelá-la.” A preocupação dominante é um uso saudável das tecnologias, e sempre com o foco na saúde mental.

O autor analisa os videojogos na adolescência e levanta a questão de que é indispensável envolver o adolescente na procura de soluções, a realidade familiar é parte integrante, há que encontrar soluções para reduzir o tempo de exposição, substituindo-o por tempo de qualidade em família, por uma vida de relação com os outros, práticas de atividade física, etc.

 As redes sociais virtuais, com o Facebook à frente têm forte atração de suscitar a criação de uma marca da nossa identidade pessoal, é uma imensa sala de conversa de representação no quotidiano, uma assembleia onde se pode fazer confissões, brigar, ter a ilusão da socialização digital igual ou superior à socialização presencial. Diz o autor que entre as causas mais conhecidas da dependência das redes sociais encontram-se a baixa autoestima, a insatisfação pessoal, a depressão ou hiperatividade e a falta de afeto, carência que os adolescentes tentam preencher através dos likes de forma quase compulsiva, para sentirem uma intensa sensação de satisfação.

Leitura semelhante ou afim se poderá ter para a adição aos videojogos como um comportamento para aliviar emoções complicadas, gera-se a ilusão de que aquela popularidade na internet extravasa para o mundo real. As dependências ao videojogo e às redes sociais constituem duas realidades diferentes. As redes vividas num quadro de compulsão estão associadas ao medo de se manter fora do que está a acontecer, e daí o smartphone ser considerado uma espécie de extensão do próprio corpo; não são de excluir potenciais perigos de desajustes emocionais no quadro da dependência das redes; o videojogo pode ter outra natureza: acreditar na sorte, ter a ilusão que essa mesma sorte irá premiar o êxito, sobretudo o material. Quando a dependência é intensa pode entrar-se em atividades de risco, é o caso das apostas desportivas online. Recorda o autor que o pano social de fundo favorece a pressão, vem de fora do mundo digital: “Hoje, serão, pelo menos, centenas as equipas de futebol patrocinadas por casas de apostas, e o número não para de crescer. Isto apesar de alguns países, como a França, a Itália, a Dinamarca ou a Espanha, terem promulgado legislação que proíbe a publicidade a empresas de apostas nas camisolas das equipas. Em Portugal não existe esta interdição, e o resultado é que 12 das 18 equipas da primeira divisão exibem nas suas camisolas o nome de casas de apostas que também patrocinam a Liga (Betclic) e a Taça de Portugal (Placard). O fortíssimo investimento das casas de apostas nos clubes de futebol não surge como um mero acaso. Estudos demonstram como os adeptos desportivos se sentem ligados aos patrocinadores dos seus clubes de futebol, conferindo confiança a estas marcas.”

Falando dos jogos de fortuna ou azar, acrescenta o autor que somavam, em 2022, um volume total de mais de 9 mil milhões de euros, qualquer coisa como 31 milhões de euros por dia. Portugal tem 15 operadoras de jogo online licenciadas, a previsão é que este número aumente; há cerca de 1 milhão de pessoas registadas em operadoras de jogo online licenciadas. A imaginação dos agentes do mercado é transbordante. E põem-se problemas que se prendem com a proteção do consumidor. Em 2022, a DECO e outras associações de 18 países expressaram em comunicado o perigo de manipulação e exploração dos consumidores dos “pacotes misteriosos”, as loot boxes, criadas pela indústria dos videojogos, exigiram uma regulação deste setor. A DECO considera que as loot boxes dos videojogos têm um design manipulador, fazem marketing agressivo e apresentação probabilidades enganosas: “Prejudicam gravemente os direitos e interesses dos consumidores, sobretudo dos mais vulneráveis, quer via mecanismos predatórios, quer promovendo o vício de jogo, visando sempre e somente o seu lucro.”

É intensa a procura das “caixas de recompensa” que se pode explicar como uma combinação de psicologia, design inteligente e fraqueza humana pela gratificação instantânea – é o mesmo desejo que leva as pessoas a comprar bilhetes de lotaria ou a raspadinha, tem a ver com a emoção de potencialmente se ganhar dinheiro com pouco investimento, é uma atração irresistível. O autor refere também as microtransações, um sistema polémico que aguarda enquadramento legal.

Age-se preventivamente ou procura-se a resposta adequada quando a dependência se instala. A função educativa é primordial, o apoio psicológico poderá revelar-se indispensável. Um psicólogo explica que uma das características dos indivíduos com dependência é o não reconhecimento do seu problema. “Compete ao técnico, numa ação conjunta com os pais ou os amigos de quem sofre da dependência, elaborar estratégias que conduzam a uma consciencialização e a uma mudança de estilo de vida, em função das características de personalidade e de idade de quem vive ao transtorno.” E elencam-se estratégias que podem propiciar o tratamento da dependência digital: não usar o telemóvel quando se está na companhia de outras pessoas; desativar as notificações automáticas; reduzir o número de amigos nas redes sociais; eliminar aplicativos e abandonar grupos do WhatsApp prescindíveis, etc.

Leitura muito útil que não se circunscreve aos leitores da geração Z.

 

                                                            Mário Beja Santos


Carta de Bruxelas.

 



            Para assinalar um ano e um mês passados sobre o dia 7 de Outubro de 2023

 

Num texto redigido apenas em 1988, Jean-Claude Dreyfus, 26 anos em 1942, médico, conta: «Com efeito, em Março de 1942, o chefe de Estado francês, sem intervenção dos alemães que provavelmente não estavam a par de tais pormenores, decidiu que os judeus não podiam daí em diante exercer funções nos hospitais. Exceptuavam-se somente os titulares da Cruz de Guerra, pouco numerosos dada a brevidade das hostilidades. Um pouco embaraçado, o director do hospital deu-me conhecimento da medida. A interdição aplicava-se imediatamente, e, claro está, não estava prevista nenhuma compensação pelo licenciamento. Restava-me apenas fazer as diligências necessárias para a minha partida. A sala do pessoal acolheu a minha demissão com fleuma, sem manifestações de alegria ou de pesar. Numa trintena de colegas, um dirigiu-me algumas palavras.»

Um em 30. Ao ler o excerto, aflora silenciosamente, insinua-se por si a pergunta: e hoje quantos seriam? Um simples facto que desacredita sombriamente o triunfalismo de quem julgava poder afirmar com Walt Whitman all the past we leave behind


                                                                               João Tiago Proença





quarta-feira, 6 de novembro de 2024

São Cristóvão pela Europa (282).

 

 

 

No distrito de St. Pölten-Land, município de Neulengbach, Estado da Baixa Áustria, existe uma aldeia denominada de St. Christophen. Como seria de esperar, no seu território abundam as imagens de São Cristóvão. Provavelmente a invocação do Santo deriva da passagem, outrora muito perigosa, do Rio Laabenbach.

A igreja paroquial é dedicada a São Cristóvão. Existe referência ao orago da Paróquia desde 1248!

Grande tragédia aconteceu em 1683 quando a igreja foi incendiada e o pároco assassinado pelos turcos.

A torre da Igreja, sobrevivente do incêndio, é do Século XV e ainda tem vestígios do desastre.

O altar-mor é um belo exemplar barroco. A pintura central representa São Cristóvão. É ladeada por imagens de São Tiago Maior e São Bartolomeu e é da autoria de Daniel Gran (1694-1757). A qualidade da pintura pode ser demonstrada nas ondas, nas rochas, nos cabelos e nos anjos.

Na ponte sobre o Rio Laabenbach, uma escultura de pedra, inaugurada em 1951, é da autoria de Hans Fahrwickl.

Uma hospedaria adoptou também o nome do Santo e pelas ruas são várias as imagens.

 











                                    Fotografias de 3 de Agosto de 2024

                                                                        José Liberato

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Emocionante o talento deste contador de histórias da Alemanha em escombros, a reerguer-se.


 


 

O livro intitula-se A Hora dos Lobos, A Vida dos Alemães no Rescaldo do III Reich, Publicações Dom Quixote, 2023, o seu autor, Harald Jähner, é um consumado desenhador de águas-fortes, acaba de cair Berlim, chegou a hora dos alemães conhecerem as maiores privações e situações traumáticas, violações, assassinatos, roubos, fome; impõem-se estratégias de limpeza dos escombros, e no meio daquele cataclismo aparece um turismo, há quem ande por ali a fotografar, abrem-se caminhos, no meio de tanto desaire os vencidos procuram novas formas de mobilidade; dá-se uma migração avassaladora, há prisioneiros errantes, despatriados, libertam-se trabalhadores forçados, os alemães veem-se confrontados dentro de um mosaico de povos em que a raça ariana passou a ser um mito; e naquele descalabro, sobretudo os mais novos procuram divertir-se, ter lazeres, no meio de uma vida tão áspera, onde praticamente tudo falta; regressaram os militares vencidos, descobrem que as suas mulheres tiveram uma vida duríssima, descobriram uma outra dimensão da sua emancipação, haverá um caudal de divórcios, muita prostituição com os vencedores; o mercado negro irá prosperar, uma lógica das senhas de racionamento que põe gente rica, gente remediada e gente pobre no mesmo plano de igualdade, e vai acontecer algo de inédito, aquele mercado negro funcionará como uma escola de cidadania; aos poucos, os alemães não ser postos perante o grande desafio da recuperação, a reforma monetária em muito contribuiu; ainda não chegámos à guerra fria, os aliados ocidentais põem uma reeducação que apague o nazismo e molde a mente alemã para os valores democráticos; quem veio de Moscovo traz outros planos, vai germinar a formação de duas Alemanhas; esta é a saga da geração Carocha (Carocha era o termo usado para falar do modelo popular do Volkswagen). É esta a sumula da narrativa espantosa, escrita com imensa sensibilidade, uma lição para qualquer europeu sobre quanto custam estes horrores da guerra, agora que vivemos uma nas fronteiras da Europa, e profundamente destruidora.

A saga desta geração Carocha e dos dois estados alemães, como observa Harald Jänher no posfácio tem aspetos muito relevantes. “O facto de, apesar da recusa generalizada em lidar com o passado e apesar do regresso em massa das elites nacionais-socialistas aos seus altos cargos, ambos os estados alemães se terem conseguido purificar do nacional-socialismo é um milagre muito maior que o dito milagre económico.” E, mais adiante: “Um fator que contribuiu de forma crucial para o desfecho feliz da história do pós-guerra foi a força da retoma económica. Permitiu acomodar 12 milhões de expatriados, 10 milhões de soldados desmobilizados e, pelo menos, o mesmo número de desalojados em virtude dos bombardeamos em instalações provisórias algures, às quais seria prematura chamar pátria.” Os alemães, durante gerações, também tiveram que enfrentar a acusação de culpa coletiva. Durante décadas, o país evitou de forma sustentada ter de lidar com os milhões de assassinatos – até aos processos de Auschwitz, que duraram entre 1963 e 1968.  Ter de ver os filhos transformados em acusadores arrogantes, embora muitas vezes desesperados, foi uma das consequências tardias da repressão que os alemães exerceram sobre si mesmo, após 1945.

Este livro é comovente e emocionante, permitam-me que registe alguns parágrafos que considero esplendentes, elucidativos:

“As pessoas estavam constantemente de pé, na rua, à espera de saber notícias. Os correios não funcionavam, o telefone também não, por isso a comunicação tinha de ser feita de pé. No caos carregado de medo dos meses que se sucederam à guerra, as notícias eram um bem essencial à vida- Informações sobre vivos e desaparecidos, sobre onde arranjar o quê ou qualquer coisa que se quisesse saber estavam reservadas a quem se fizesse à estrada. A situação era incerta, as rotas de fornecimento haviam sido cortadas. Deixar mensagens sobre o paradeiro de alguém e dar um sinal de vida era, por isso, de importância elementar. As pessoas estavam famintas de pistas, de novidades, deambulavam de visita em visita para contar e para escutar. Até mesmo para arranjar artigos de primeira necessidade no mercado negro era necessário percorrer caminhos inconcebivelmente longos por várias partes da cidade.”

“O momento de regresso a casa era ansiado por muitos. Nas salas de estar, os homens que combatiam na frente foram substituídos por fotografias. As crianças eram instadas a olhar regularmente para as fotografias, para que mantivessem a ideia do pai, nem que fosse na imaginação. A fotografia do pai ocupava o seu lugar no aparador como se de um altar se tratasse. Ele estaria algures na Rússia ou no Egito; em casa, as mães procuravam a suposta localização no atlas e apontavam-na com um dedo para mostrar às crianças. Tão distante do dia a dia. tornou-se uma figura que prometia uma vida melhor, a qual chegaria com o fim da guerra. Com o regresso do marido, pressuponha-se o fim para a solidão, para a sobrecarga constante que era criar os filhos sempre sozinhas e em condições extremas.”

“A solidez estava fora de moda. Tudo tinha de ser fácil de arrumar e mudar de sítio. Até os candeeiros de pé com quebra-luzes cónicos obedeciam ao mandamento da flexibilidade; os quebra-luzes assentes em braços articulados de metal móveis permitiam adaptar constantemente a intensidade da iluminação. O ideal desta nova leveza devia-se em parta também à pura necessidade: nas exíguas condições provisórias, eram amiúde necessário mudar a disposição dos móveis e aconchegá-los. Já não havia espaço para o acarinhado estilo colossal, o que agora se vendia eram móveis que se pudessem dobrar e empilhar. Isto permitia acomodar quatro pessoas em três divisões e ainda transformar o quarto de dormir em escritório.

Este modo de viver descomplicado agradava a ricos e a pobres. As delicadas e dispendiosas estantes da Knoll International renunciaram totalmente aos apoios laterais, o que lhes conferia leveza. As escrivaninhas tinham pernas finas de aço, nas quais as gavetas pareciam flutuar. Um mundo de sumptuosidade e móveis pesados em carvalho como que se esfumara e as pessoas agora queriam respirar ar puro com uma estética despreocupada.”

“Qualquer região que fosse capturada pelos Aliados era subitamente dominada pela paz. Os soldados invasores mal poderiam crer no que viam: estes alemães, que pouco tempo antes haviam combatido com uma raiva cega, mesmo já tendo perdida toda e qualquer esperança de saírem vitoriosos, assim que capitulavam, revelavam ser os cordeirinhos mais mansos do rebanho. Parecia que o fanatismo se desprendia deles como uma pele.”

De leitura obrigatória, um sério aviso sobre o que é reconstruir uma sociedade a partir do caos. 


                                                                            Mário Beja Santos