Há um momento completamente inesperado no
início da segunda parte do filme ‘Grand Tour’, de Miguel Gomes, em que se faz
luz sobre a sua cuidadosa e aparente falta de sentido: é quando uma das duas
personagens principais, Molly, desatando a rir - de lábios franzidos, qual
criança traquinas - emite um som cómico totalmente inesperado e irreverente, de
puro gozo. Trata-se de um som difícil de reproduzir graficamente (brrr, brrr, brrr?)
que julgo todos já ouvimos – e que alguns de nós já emitimos, quando quisemos
dizer “Deixa-me rir!”
Este ‘ruído’ feito por Molly é um ruído que
podemos considerar brechtiano – e não só – sobretudo porque que nos acorda de
vez da lengalenga narrativa temporalmente situada em 1918, de lógica ainda tão fim de siècle - embora já disruptivamente mesclada com imagens contemporâneas
de várias regiões asiáticas como pano de fundo. Essa narrativa apresenta-nos
um estereótipo plausível, à época: uma rapariga noiva há sete anos (Molly),
cansada de esperar pelo casamento, decide ‘perseguir’ o noivo (Edward), mas – e
aqui reconhecemos mais uma insidiosa estranheza subtilmente inoculada – completamente
sozinha por longínquas terras da Ásia, desenvolta, desembaraçada, como um
torpedo perfeitamente direcionado (em gritante contraste com a contínua desorientação
e indecisão do noivo, que se limita a uma contínua fuga reativa). Este paradoxo
mudo e simultaneamente gritante instala cuidadosamente a primeira dúvida mais
óbvia sobre a construção da personagem da menina casadoira e tradicional que vê
no casamento o seu único objetivo e saída. A segunda dúvida – que, como dito, se
nos apresenta como um sinal (talvez o mais importante, entre muitos) – surge
quando esta jovem da alta burguesia inglesa, com a respetiva educação e
etiqueta, decide sem mais, num espaço público, emitir o som em causa, à época
seguramente ‘inestético’ e de ‘mau tom’. (O ruído de gozo dos lábios franzidos de Molly
repetir-se-á, de resto, várias vezes ao longo do filme, ficando-nos na memória
como um alerta e uma ‘marca’ - cómicos e altamente disruptivos - que conhecemos
de outros filmes inesquecíveis, como p. ex. as gargalhadas estridentemente
cómicas do Mozart de Milos Forman.)
Mas voltemos ao momento em que o estranho
‘ruído’ é emitido por Molly pela primeira vez. Longe de despontar sozinho e do
nada, ganha especial significado no contexto e exato minuto em que surge.
Temporalmente, esse momento localiza-se imediatamente depois de Molly: a) ter
viajado milhares de quilómetros até Rangum, na Birmânia, para finalmente se
casar com o noivo Edward, e de constatar que
este fugiu; b) ter verbalizado a vontade de o seguir para Singapura sem que
este o tenha solicitado; c) ouvir ‘a’ pergunta porventura mais óbvia e lógica de
todas, que o primo lhe coloca: não será que o noivo perdeu a intenção de casar
com ela?
É, pois, em resposta a esta pergunta, que
Molly emite súbita e inesperadamente o cómico ruído em questão, rindo a
bandeiras despregadas e acrescentando, em exclamação, a palavra (que completa
a) chave: “Absurdo!!!” E é esse o momento que, subitamente, nos confirma a
lógica de ‘inversão’ já semi adivinhada do filme, até porque, como já ficou
dito, ao longo de ‘Grand Tour’ Molly repete o dito ‘som’ e a respetiva
exclamação da palavra “Absurdo” várias vezes. Através deste ‘mecanismo’ de
Molly, os raciocínios da lógica mais comum, prosaica e tida como ‘normal’,
passam a ‘absurdos’, e os que habitualmente se consideram ‘absurdos’ passam a
apresentar-se não só como perfeitamente plausíveis, como também – e
consequentemente - destruidores da suposta ‘normalidade’ vigente e de todos os
seus inquestionados estereótipos.
E este absurdo que nos pretende
desinstalar do conforto dos nossos estereótipos abarca, insidiosamente, todo o
filme, por várias vias, e sobretudo pela via inesperada e subterrânea da língua
falada, ‘normalmente’ tida como um simples ‘canal’. Vejamos: no universo
totalmente britânico e/ou de colonialismo britânico que ‘Grand Tour’ nos
apresenta, as personagens - todas britânicas ou de (ex) colónias britânicas -
insistem, pasme-se, em falar umas com as outras – apenas, sempre e contra toda
a lógica - em português. Este facto não é naturalmente de somenos importância (quem
consegue aqui não lembrar o aforismo de Mac Luhan “the message is the medium”?) e
leva-nos a várias (muitas!) perguntas encadeadas, porque é isso que ‘Grand Tour’ faz,
leva-nos a colocar muitas perguntas:
- Porque consideramos tão absurdo o português falado por britânicos
entre si no seu dia a dia, se assistimos todos os dias a filmes de todas as
culturas e regiões do globo falados em inglês sem um pestanejar?
- Porque é que num filme português, em que toda a ação se
passa em cenário colonial (territórios asiáticos quase todos seguramente
pisados por portugueses antes dos ingleses) não há uma única referência
explícita a Portugal nem aos portugueses - com exceção da referida língua/canal,
ironicamente sempre presente, do
género ‘gato escondido com o rabo de fora’?
- Porque fica assim o ónus do colonialismo tão
convenientemente evacuado do universo português?
- Porque continuamos assim a ‘tirar a água da capota’ tomando
os outros por tolos – e sobretudo a nós próprios?
Não abusando da paciência do leitor, passemos das perguntas
(longe de esgotadas) ao tópico seguinte de ‘Grand Tour’, na senda da sua inversão
do conceito de absurdo:
O escamoteamento considerado ‘normal’, na época, da diferença
abissal entre classes sociais e respetivas condições laborais - infelizmente
ainda hoje presente em tantos cenários, óbvios ou insuspeitos, pois convém
lembrar que os estereótipos são como as nódoas: atingem todos os panos… Julgo
que aqui será suficiente referir um único instante do filme pois, pelo seu
peso, dispensa quaisquer outros. Trata-se do momento em que Molly, contra todos
os elementos, correntes, conselhos e razoabilidades possíveis, faz finca-pé e opta
por um meio de transporte fluvial inviável e sinistro: a subida do rio (impraticável
naquela época do ano) em barco puxado por cordas, a partir de terra, por seres
humanos, num esforço desmesurado e desumano. A imagem destes homens e mulheres
em esforço total, nus, sob a chuva torrencial e a inclemência dos elementos,
dura talvez uns segundos. O seu impacto, esse, fica-nos gravado a fogo na
retina, talvez para sempre. Por isso, quando no instante seguinte um padre (!),
não por acaso com um jumento (!), aceita – com elegante retórica - o convite de
Molly para se fazer transportar no mesmo barco, o absurdo e o terror confundem-se.
Mais uma vez, em ‘Grand Tour’, uma questão absolutamente determinante (desta
vez a insensibilidade total perante o sofrimento humano na base da pirâmide
social) - é passada num ápice (percebemos a alergia a sentimentalismos), para quem
puder ou quiser ver: gritante e insuportável para uns, invisível ou
completamente irrelevante para outros.
Para fechar o ciclo, voltemos ao início -
ao título do filme – tomando por base a primeira definição que a net nos disponibiliza: “Grand Tour servia como um rito de passagem educacional. Associado
inicialmente com a Grã-Bretanha, especialmente com a gentry e a nobreza
britânica, posteriormente viagens semelhantes também seriam feitas por jovens
endinheirados de nações do Norte da Europa e do restante do Continente.”
Trata-se assim, relembremos, de uma das últimas versões da mítica ‘Viagem’
primordial, aquela que deverá conduzir ao ‘autoconhecimento’. No caso de Edward
e de Molly, porém, este ‘Grand Tour’ é feito aparentemente de modo involuntário,
impelido por razões externas, de modo apenas físico, geográfico e não assumido.
Também por isso, o ‘autoconhecimento’ que cada um à sua maneira persegue, de
modo encapotado e provavelmente inconsciente, escapa-lhes sempre, etapa após
etapa, num percurso de milhares de quilómetros. Como todos (?), estes noivos
desgarrados procuram – porventura sem o saber - o significado inerente à vida,
não sendo já capazes de encontrá-lo num mar (literal e metafórico) de
incertezas, um universo que se mostra cada vez mais sem propósito entendível,
na lógica tradicional, e porventura noutras lógicas também. Daí que a inversão
da lógica da ‘normalidade’, no filme, seja tão importante, assim como a
tentativa de encontrar outras lógicas. Porque ‘Grand Tour’ está muito
empenhado em mostrar que não há certezas, incluindo
a certeza de existirem só incertezas. Daí o absurdo, usado não só para
desmascarar a lógica ‘natural’ instalada, mas também – e quem sabe sobretudo –
para apontar que nem tudo estará, eventualmente, perdido.
Não chegando a pontos tão extremados como
realizadores que conhecemos do cinema absurdo – começando p. ex. com Buñuel e
terminando com Yorgos Lanthimos - e
talvez mais próximo do teatro do absurdo que o antecedeu – Beckett, Ionesco,
até certo ponto Pinter e por aí fora – Miguel Gomes não apresenta aqui uma
lógica (totalmente) niilista. Fazendo uso de elementos e lógicas oníricas (p.
ex. selvas ameaçadoras em claro escuro, como já em ‘Tabu’), não abdica
totalmente, como veremos, de um lado potencialmente utópico (Edward?) e alegre
(Molly), nem de uma réstia de esperança no sentido da vida e do mundo, contra
tudo e contra todos, incluindo a morte.
De facto, no
final do filme Edward não encontra saída e Molly adoece e morre, mas depois
desse ‘unhappy end’, num volte face inesperado,
antes do genérico – num momento em que o espetador, supostamente, já não tem
possibilidade de ver o que se passa em cena, - a atriz (ou a personagem Molly?),
abre hesitantemente os olhos e ergue-se, qual Lázaro ressuscitado e, embora titubeante,
continua a sua marcha numa direção desconhecida.
‘Grand Tour’ mostra-nos, assim, a sua
impossibilidade intrínseca, num mundo contemporâneo ‘fluido’, sem inocência
possível (como p. ex. ‘La La Land’ nos mostrou a impossibilidade de um musical
clássico de Hollywood), mas faz questão de não fechar definitivamente a porta
e, na estreita frincha da sua abertura, quem quiser - ou puder - vislumbrará um
espaço por explorar, aberto.
Leonor
Sá