quarta-feira, 2 de julho de 2025

A terna viagem por vários Tejos, não faltam avieiros, campinos, fragateiros e Nossa Senhora.

 



 

Tejo, Um cruzeiro religioso e cultural, por Ana da Cunha, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025, desvenda-nos uma assombrosa viagem que ocorre todos os anos em maio, Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo vem em cruzeiro, percorre 325 quilómetros e o leitor vai de surpresa em surpresa percorrer comunidades ribeirinhas, um universo onde pairam os saberes e a cultura dos pescadores avieiros, tudo começa num interior raiano, ainda espanhol, a última etapa será Porte Brandão, Paço de Arcos e Oeiras, ouviremos depoimentos tocantes de familiares avieiros e nascidos dessa cultura palafítica, não faltarão belas paisagens que atestam a diversidade do Tejo, boa comezaina, danças e cantares, e, de um modo geral, Nossa Senhora é acolhida em triunfo e com carinho. Atenda-se ao que a autora nos procura elucidar: “O Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo tem por missão preservar a cultura dos pescadores vindos da Praia da Vieira. A viagem, que percorre 325 quilómetros pelo Tejo, surgiu em 2012, no âmbito da candidatura da cultura avieira a património nacional e da UNESCO. O cruzeiro não passa só pela cultura avieira. ‘Unir margens’ é o mote da viagem, que procura contribuir para consolidar a identidade das culturas ribeirinhas do Tejo, levando-lhes uma imagem que simboliza essa união entre povos e margens: a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, concebida a partir dos contributos das comunidades avieiras.”

A leitura que acompanha do princípio ao fim toda esta viagem é o romance Avieiros, de Alves Redol, para conhecer melhor esta cultura viveu na aldeia avieira da Palhota. E começa a viagem, vai-se de comboio em direção a Castelo Branco, o destino é Vila Velha de Ródão, a autora tem à sua espera João Serrano, ele é um dos voluntários que todos os anos põe de pé este cruzeiro religioso, Serrano constituiu a Confraria Ibérica do Tejo, foi aqui que se iniciou a luta pela elevação da cultura avieira a património nacional. Percorre-se a localidade, é obrigatória a visita ao Castelo de Ródão, a viagem prossegue para o Rosmaninhal, uma das freguesias de Idanha-a-Nova, infelizmente hoje localidade com pouca gente, dos 437 habitantes que restam, 248 têm mais de 65 anos. Faz-se a visita à imagem de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, coroada de flores e segurando um terço na mão.

Na manhã seguinte, a imagem embarca na grande viagem, o destino é Alcántara e Santiago de Alcántara, no Parque Natural del Tajo Internacional, imagem descarregada para uma pequena embarcação, ouvem-se exclamações, dizem que a Santa é muito bonita. No cais de Sever-Cedillo, que liga o município de Nisa ao município de Cedillo, a comitiva é recebida com cânticos “Miraculosa Rainha dos Céus”, não há fronteiras que separem os povos. Nova fase da viagem, cais de Alvega, uma povoação do concelho de Abrantes, a Santa vai ser recebida com grande alegria, a banda filarmónica recebe-a com tambores, tubas, saxofones e clarinetes. O próximo destino: Mouriscas, vão em bateiras, há uma despedida em que a comunidade acena com lenços brancos. Chegou a hora de falar da boa comida, o comer será acompanhado de vinho tinto, a sobremesa também obedece às tradições: a tigelada, a palha de Abrantes, o bolo lêvedo e as passas de figo fritas. Vêm a propósito falar de histórias de amor e avieiros, chega-se ao Travessão do Pego, sai-se da bateira, a imagem da Senhora é içada pela grua, na Barca do Pego assiste-se a uma missa e depois à pândega, entra em ação o rancho folclórico da casa do Pego.

No dia seguinte os excursionistas encontram-se em Rio de Moinhos, o destino é o Tramagal, há muitos testemunhos de quem aqui nasceu e viveu, saudades não faltam. Do Tramagal vai-se a Constância, a autora percorre a povoação, sente-se que está feliz, e depois a bateira encaminha-se para o Castelo de Almourol. Agora sim, entra-se em território de avieiros, é o Tejo dos mouchões e das culturas agrícolas, é o Tejo de Lezíria, começa-se pelo Porto das Mulheres, volta-se a falar de Avieiros, de Alves Redol, conta-se a história desta gente oriunda da Praia da Vieira de Leiria, os avieiros construíram barracas em estacas, no Porto das Mulheres havia aldeia avieira, já desapareceu. Temos agora uma viagem atribulada até à Azinhaga, há receção pelo rancho folclórico nesta terra de avieiros, cita-se mesmo José Saramago, que aqui nasceu: “À aldeia chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda veterana nada ficou, salvo que lhe passa ao lado (imagino que desde a criação do mundo) e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo, embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes.”

No dia seguinte chega-se à praia fluvial do Patacão, a comitiva tem direito a um lanche, fala-se demoradamente das aldeias palafíticas fluviais e das origens da aldeia do Patacão. E a viagem prossegue até ao Vale da Figueira, para-se em Porto Carrapiteiro, nova referência a uma história de amor, desta vez entre Xico, da Barreira da Bica, e Olinda, do Patacão, pouco resta dos avieiros nestas localidades. E depois todos se encaminham para a Ribeira de Santarém, aqui houve a aldeia avieira das Caneiras. A próxima paragem será no Porto dos Cucos, uma antiga aldeia avieira na freguesia de Benfica do Ribatejo, no concelho de Almeirim, nova receção festiva. E na manhã seguinte o novo destino é Porto do Sabugueiro, na freguesia de Muge, em Salvaterra de Magos, mais lembranças históricas destes locais, segue-se Porto de Muge, Valada do Ribatejo e Escaroupim, mais bailarico, em tempos daqui se partia em fragatas, transportando mercadorias para Lisboa. O Escaroupim está hoje gentrificado, a bateira para por momentos em frente da Palhota, na freguesia da Valada, a comunidade junta-se em peso para receber a Santa.

A viagem agora encaminha-se para o concelho da Azambuja, para o Porto da Palha, são citadas mais referências à presença avieira. E depois a viagem prossegue para Vila Franca de Xira. “No dia seguinte à procissão na Azambuja, chego ao Esteiro do Nogueira, um antigo bairro avieiro em Vila Franca de Xira. Vejo os barcos a rasgarem o Tejo e a população a festejar. É uma massa de gente: as mulheres com os lenços na cabeça, os homens com os barretes e as redes de pesca, os pés descalços sobre a calçada na rua.” Estamos agora no cais de Alhandra: “A Santa segue do cais, passando pelos anzóis e pelas embarcações dos pescadores que ainda resistem nesta antiga freguesia de Vila Franca de Xira, até chegar à Rua dos Avieiros, onde a imagem fica a repousar num altar junto à associação de pescadores Rios e Marés.” Lembra-se Soeiro Pereira Gomes, o nadador Batista Pereira e o médico Sousa Martins. Parte-se depois para Póvoa de Santa Iria, daqui para o cais do Trancão (Sacavém), abandona-se o território dos avieiros e entra-se no Tejo dos fragateiros, Sarilhos Pequenos, e depois a Moita, o Barreiro e o Seixal, a Senhora terá direitos a passar por Alfama. E chega-se ao último dia do cruzeiro, vai-se de Porto Brandão até Oeiras.

Fica-se com uma vontade enorme de apanhar o comboio na Gare do Oriente e seguir para Vila Velha de Ródão, Ana da Cunha saliva todo e qualquer viajante para este cruzeiro sem rival onde se unem povos de dois países e se visitam porções tão diversificadas do Tejo e suas gentes, apetece viajar e partilhar a alegria desta espantosa cultura avieira, que continua a marcar as novas gerações.

Uma belíssima reportagem.

 

            Mário Beja Santos

 


As Brigadas Revolucionárias (BR) e o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP) nas memórias do seu principal artífice.

 


 

Carlos Antunes, Memórias de um Revolucionário, por Isabel Lindim, Oficina do Livro, 2024, dá-nos a oportunidade de ouvir alguém que entrou na clandestinidade aos 21 anos, que militou no Partido Comunista Português, esteve muito ativo na Roménia e em Paris, lançou mão de métodos que deixaram o Estado Novo em transe, quando passou a destruir equipamento fundamental destinado à guerra colonial. Como observa a autora, o texto resultou da transcrição de duas entrevistas, que decorreram em 2011, uma, outra da realizadora Margarida Gil. É um livro de memórias, sempre escrito na primeira pessoa, sempre mantendo a oralidade de quem possuía o dom de saber contar com uma presença cenográfica única, cativando na conversação com um poder quase mágico, e daí a autora poder dizer que quase se limitou a fazer ajustes ao conteúdo da gravação.

Tudo vai começar numa infância rural, recorda a sua vida na aldeia, na Serra da Cabreira, Vieira do Minho, dá-nos o seu quadro familiar, a sua vida no Porto, o seu ingresso no Partido Comunista, o seu primeiro casamento e o trabalho partidário. “Ganhava o meu salário e tinha uma vida dupla. Controlava a organização clandestina no Minho e para isso tinha de recrutar, tinha de reunir, tinha de organizar as pessoas para estarem atentas às reivindicações dos trabalhadores, promover a unidade dos trabalhadores em cada empresa, fazer crescer as células, fazer novos recrutamentos.” E não esquece o seu amor ao teatro e a admiração que nutria por Óscar Lopes.

Discorre sobre a vida clandestina, há episódios de um humor faiscante, em Lisboa trabalha em apoio ao secretariado do partido, este num dia é preso num só golpe, foge com a mulher e os filhos, encarregam-no de fazer uma organização de fronteira, deixa-nos uma descrição admirável do que é o seu trabalho numa zona de contrabando. “Os contrabandistas têm uma ordem de solidariedade que é impenetrável. Quando montei o meu primeiro aparelho de fronteira foi ainda para o PC. Fui a primeira pessoa a passar no sítio onde o Cunhal passou a seguir. Para testar o aparelho. Depois com as Brigadas criei outro. O chefe dos contrabandistas de Montalegre é ainda hoje um homem adorado. Morreu. Era um militante extraordinário pela intuição, pela capacidade de organização.” Pensa que o mandaram para a Roménia porque ali havia necessidade de quadros e em nenhumas condições podia ser preso. “Para o Cunhal poder andar com a minha identidade em segurança. O meu nome, a minha carta de condução. Quando cheguei à Roménia, usava o pseudónimo de Sérgio Gomes. O Cunhal é que se chamava Carlos Antunes nessa altura.” A experiência romena não lhe foi feliz, segue então para Paris, não esquece a comoção que teve quando foi ver a Comédie Française.

Começam as suas andanças como clandestino pela Europa, irá visitar a União Soviética, entra num estado de desilusão ideológica, descobre que aquela vida não era o seu ideal, ficará com muito má impressão de gente que vinha do movimento estudantil português, sublinha as contradições da linha partidária. E assim chegamos à invasão da Checoslováquia, aprofunda-se o fosso ideológico, havia já a pressão na base do PC para a necessidade de fazer a ação armada.

Cunhal criou um grupo que ficará conhecido por Pró-Cubanos. “Este grupo era comandado por um indivíduo que tinha sido Comando na guerra colonial na Guiné. Segundo parece, era um fulano que matava depressa e bem e, portanto, tinha criado alguma aura de capacidade junto dos militantes, parecia que a guerrilha era uma coisa especial. Mas não era, como nós provámos à sociedade. Era uma questão de militância e de aprender. Se os outros sabem disparar, se os militares sabem disparar e sabem organizar coisas, porque é que nós não havemos de saber?”

Ocorre então a rutura com o PC, conta-nos a sua vida em Argel, tem aqui comentários e memoráveis. E regressa a Portugal, cria com a Isabel do Carmo as Brigadas Revolucionárias, descreve o debate que se instalou sobre a luta armada, refere a LUAR e a ARA, e como se chegou à definição do que deviam ser as ações armadas.

Entramos agora no mundo das bombas, descreve a primeira ação das Brigadas em 7 de novembro de 1971, na Fonte da Telha, seguir-se-ão ações de sabotagem, ações hilariantes, como largar um porco no Rossio vestido de Almirante Américo Tomás. Lemos as suas memórias e sente-se que ele estava feliz com a sua capacidade de disfarce. “Passei a usar uns óculos que eu dizia que era tipo empregado bancário. Uns oculozinhos assim certinhos. Passei a estar um bocadinho mais louro. Eu nunca cortei o cabelo, nunca fui ao barbeiro nem hoje vou. Eu sempre soube cortar o meu cabelo sozinho. Passei a vestir uma roupinha escura, limpa, elegante, mas que não dava nas vistas. Passei a ser um senhor qualquer igual a toda a gente.” É clandestino e falsário: “Os passaportes quem os arranjava era eu. Era autossuficiente a maquilhar passaportes, mas quando estava todo direitinho, todo bem feito como se tivesse saído do Governo Civil, eu deitava-lhe um bocado de água ou até lhe fazia chichi. Aquilo ficava um bocado esborratado, mas eu queria um pretexto para que o polícia que me encontrasse na fronteira me interrogasse porque é que o passaporte estava assim.” Ao que ele responderia que teria sido um miúdo que tinha feito chichi no passaporte.

Recorda o escritor Nuno Bragança, a aliança que fez com os católicos, Frei Bento Domingues, a Capela do Rato, o Boletim Anti-Colonial. A maneira como ele conta uma história de uma tentativa de ação no Santuário de Fátima é um verdadeiro espanto. E seguem-se as ações bombistas em objetivos militares, destroem-se camiões, sabota-se a Marconi em Sesimbra e Palmela, sabota-se nos serviços de recrutamento militar, no Quartel-General do Porto, assaltam-se bancos, isto até 19 de abril de 1974. É neste ínterim que Carlos Antunes rememora todo o processo da clandestinidade, onde e como habitava, as senhas e encontros, não deixa de mencionar a prisão após o 25 de Abril e despede-se assim:

“No Portugal daquele tempo as pessoas tinham muito medo da PIDE e estavam convencidas de que era uma organização impressionante na sua capacidade de deteção das coisas. Nalguns aspetos era. Para nós o ser capaz não era tanto a importância ou o número de ações que fôssemos capazes de fazer. Era a continuidade na ação. Portanto, não ser preso e continuar a ação era a coisa mais terrível que podíamos fazer ao inimigo e era também aquilo que mais nos podia projetar na consciência dos trabalhadores, no sentido de eles terem autoconfiança para eles se disponibilizarem a correr riscos. Não era infalível uma pessoa ser presa.

E tivemos razão.

Não corríamos riscos desnecessários, éramos contidos, fazíamos as coisas com calma. Por vezes, sobretudo os exilados, queriam que nós andássemos de pressa demais. Queriam que nós fizéssemos coisas extraordinárias e nós dizíamos: ‘Não temos condições para as fazer e não as fazemos!’. O importante era manter essa cadência, esta capacidade de resistir e dar tempo às pessoas de perceberem que alguma coisa estava a nascer.”.

Um belo testemunho sobre as implicações das Brigadas Revolucionárias no esfarelamento da ideia que o regime omnivigilante da PIDE tudo podia sufocar e impedir um país livre.

 

                                                                    Mário Beja Santos 


sexta-feira, 27 de junho de 2025

Ter medo da dor implica realmente uma mudança de paradigma na sociedade?

 


 


Este filósofo germano-coreano tem um conjunto de ensaios publicados na editora Relógio D’Água, o seu nome aparece numa coleção ao lado de personalidades conceituadas, caso de Pierre Bordieu, George Steiner, Umberto Eco, Zigmunt Bauman, Hannah Arendt ou Michel Foucault. Este seu ensaio intitulado A Sociedade Paliativa não desmerece das interrogações, tantas vezes provocatórias, que Chul Han põe em debate público. No caso presente, aborda o tema da expansão da algofobia, o medo à dor na sociedade do nosso tempo. A sua reflexão coincidiu com a pandemia da Covid-19, mas vai um pouco mais atrás, há crise do fentanil nos EUA que ainda não se extinguiu, observa que a tolerância ao sofrimento leva a que se procure anestesias em permanência e que em termos comportamentais, um tanto como já Zigmunt Bauman desenvolvera no seu ensaio sobre a modernidade líquida, todo o sistema relacional é uma procura de evitar conflitos que descambem em situações dolorosas. Não discordando de que há dados claros em que a sociedade evita a todo o custo a dor física ou psicológica, abrindo novos caminhos ao chamado desenvolvimento pessoal, põe-se em dúvida que estamos a caminho de uma democracia paliativa. Mas vejamos em síntese as grandes questões que o filósofo põe em cima da mesa.

É mais do que duvidoso que a política esteja instalada numa zona paliativa, isto quando temos presente que há uma extrema-direita ativa que propõe reformas drásticas suscetíveis naturalmente de provocar dor, a resposta do sistema político existente a este confronto é a de procurar consensos – mas mesmo estes consensos têm que gerar tensões, a democracia permanecerá como o sistema mais apetecível enquanto as classes médias não forem reduzidas à precariedade.

O filósofo adiante que a sociedade paliativa é coincidente com a sociedade do desempenho, e nesta condena-se a dor ao silêncio, não se pode verbalizar a dor. Outra questão discutível, nunca como hoje se expõe no ecrã televisivo, nas edições escritas e nas redes sociais a natureza da dor, embora no essencial se procure a sua superação, basta pensar nos testemunhos sobre doenças terminais ou temíveis doenças crónicas.

Sim, é verdade, há uma imensa cultura da agradabilidade, a arte é transferida para produtos culturais, aprazíveis para a cultura de massas. É verdade que o design se torna mais importante que o valor de uso e que os bens de consumo se podem apresentar como obras de arte, mas tudo tem que ser agradável, os artistas passam a estar em conformidade com o mercado. E também é verdade que o desempenho do político não se exprime propriamente só pelo sorriso feliz ou pelo capital emocional positivo, há desempenhos devastadores, inquietantes, imprevisíveis, esperamos certas alocuções como capazes de nos magoar ou alterar profundamente a vida – basta pensar no comportamento do presidente norte-americano.

Dá-se completa razão a Byung-Chul Han quando ele assevera que não há sociedade sem dor, apesar dos analgésicos, da medicalização da dor. Escrito, como já se disse, em pleno tempo da pandemia, o filósofo terá tomado aquele tempo em que o vírus nos transfigurou a existência como um processo de sobrevivência, uma sociedade em permanente confronto com a morte, e, em meu entender, tece observações que o tempo se encarregou por mostrar a falsidade: “A histeria da sobrevivência torna a vida radicalmente transitória, ela é reduzida a um processo biológico. A vida é despojada de qualquer narrativa com sentido, fica nua e mesmo obscena. Uma vez que perdemos todas as práticas culturais que dão estabilidade à vida, impera a histeria da sobrevivência. Hoje, é-nos particularmente difícil morrer, pois já não é possível terminar a vida de uma forma significativa. Ela termina de uma forma intempestiva.” Dirá mais adiante que o vírus da Covid desencadeou uma crise imunológica, que a pandemia se comporta como o terrorismo, nos aeroportos deixamo-nos dominar por medidas de segurança humilhantes – em que é que uma medida vital de segurança pode caber dentro do conceito de algofobia, o filósofo não está a confundir os territórios da segurança vital e da dor que queremos manter aplacada?

Dirá discorrer sobre o sentido e a astúcia da dor. Dirá que esta constitui a base para diferentes formas de violência, que os analgésicos pouco podem fazer para dar à nossa sociedade um sentido. Dirá, que a dor articula a vida, marca fronteiras, só através das dores ficamos a saber como funcionam os nossos órgãos, o mundo sem dor é um inferno, porque a dor é realidade, e a anestesia permanente na sociedade paliativa tira a realidade ao mundo. “Sinto dor, logo existo”.

Com exemplos na grande literatura, sabemos que obras clássicas são guiadas pela dor, a anestesia generalizada da sociedade faz desaparecer totalmente a poética da dor, a poética e a estética. E de novo concordamos com o filósofo quando ele assevera que é só através da dor que a mente alcança novo conhecimento. E rendemo-nos sem qualquer hesitação ao que ele escreve no termo do seu ensaio:

“A vida sem dor, com felicidade permanente, deixará de ser uma vida humana. A vida que persegue e expulsa a sua negatividade eleva-se a si própria. A morte e a dor andam de mãos dadas. Com a dor, a morte é antecipada. Quem quer eliminar toda a dor também terá de abolir a morte. Mas a vida sem morte e sem dor não é uma vida humana, mas uma vida morta-viva. O homem anula-se a si mesmo para sobreviver. Talvez venha a alcançar a imortalidade, mas à custa da vida.”

Estamos perante um ensaio provocatório onde se fala do medo à dor, nos artifícios da felicidade, nas consequências do pânico pandémico; onde se recorda que a dor aprofunda a relação com Deus, como o sofrimento físico e psicológico possui a capacidade para fazer avançar a humanidade, porque o que dó é precisamente a falta de sentido persistente da própria vida.

Temos uma noção concreta do que nos é imposto um modelo paradigmático assente na anestesia, no embotamento mental, vivemos numa atmosfera de hedonismo, cercados de promessas de pão e envolvidos pela gritaria do circo, tudo acaba no tédio, a despeito de a máquina prometer a felicidade permanente. É nesta dimensão que A Sociedade Paliativa é credora de um intenso debate, pois não é pelo medo à dor que podemos lutar pelo bem-estar, pela felicidade e pelo otimismo.

 

Mário Beja Santos




quinta-feira, 26 de junho de 2025

Spínola e Portugal e o Futuro: O adjuvante indispensável para a adesão popular ao 25 de Abril,

 


 

O jornalista e escritor João Céu e Silva a quem se deve um conjunto de entrevistas de grande significado a autores como Saramago, Lobo Antunes, Cunhal, Filomena Mónia e Manuel Alegre, entregou-se a investigação sobre a importância do livro do general Spínola publicado em 22 de fevereiro de 1974 e que contribuiu para mobilizar a opinião pública para o reconhecimento que não havia solução militar para as guerras que Portugal travava com guerrilheiros em Angola, Guiné e Moçambique. Investigação sobre a história da maior operação editorial que tornou o livro de Spínola num adjuvante de bomba-relógio, o golpe de Estado que levou à queda do regime em pleno Convento do Carmo, na tarde de 25 de Abril – O General que Começou o 25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães, por João Céu e Silva, Contraponto, 2024.

Uma operação editorial em que este envolvido Paradela de Abreu, a equipa que trabalhou com o general para se chegar à versão final do ensaio, homens de marketing e comunicação, como Carlos Eurico da Costa, um ardiloso jogo de cintura político cuja figura pivot foi o general Costa Gomes, incluiu o jornalista António Valdemar que colaborou com o editor da Arcádia. O trabalho de Céu e Silva inclui um punhado de testemunhos de diferentes intervenientes, caso de António Valdemar, que refere, por exemplo, que a partir de novembro de 1973 teve em casa de Spínola uma série de reuniões quando fazia a revisão das provas tipográficas do livro.

Havia igualmente que proteger a obra até vir a público, evitar que chegasse ao conhecimento da PIDE/DGS, contar com a descrição da tipografia, organizar o lançamento em tempo relâmpago, junto de livrarias influentes, procurar o apoio de jornais, capitalizar a aura de prestígio que gozava de Spínola. E o espantoso disto tudo é que a matéria explosiva do livro era já um anacronismo, o que nos obriga a refletir sobre a atmosfera da época em que o livro foi um rastilho, meses antes realizara-se no Porto o 1º Congresso dos Combatentes do Ultramar e em finais de março de 1974 Marcello Caetano fora aplaudido por dezenas de milhares de portugueses no Estádio José de Alvalade, onde o Sporting defrontava o Benfica.

Há igualmente que entender o quadro circunstancial em que Spínola decidiu escrever um livro onde sabia de antemão que ao dizer que não havia solução militar para a guerra colonial levantaria uma discussão pública que minaria o já combalido Estado Novo. Spínola leu um livro de Franco Nogueira intitulado As Crises e Os Homens, aqui eram cinzelados os argumentos de um Portugal de Minho a Timor, sem a menor contestação, indignou-se com tal prosa e anunciou que ia responder, começou aí o trabalho de ajuntamento de apontamentos que envolveu o círculo privado de Spínola, caso de José Blanco e Nunes Barata, mais tarde o major Pereira da Costa.

Céu e Silva dá conta das peripécias da negociação para que a Arcádia ganhasse o contrato, inclusive Natália Correia chegou a ir a Bissau numa operação de charme e simpatia. Determinado o dia de lançamento do livro, desencadeia-se o rebuliço político, Marcello Caetano recebe o livro a 18, leu-o na noite de 20, convoca para a manhã de 22 Spínola e Costa Gomes, diz-lhes abertamente que devem falar com o Presidente da República, não lhes esconde que o caminho da revolução está aberto. Thomaz também recebera das mãos de Spínola o seu exemplar na véspera do lançamento. O ministro da Defesa, Silva Cunha, não lera o livro, mas autorizara a publicação com base no parecer de Costa Gomes. O livro vende-se instantaneamente aos milhares, a PIDE não intervém, os responsáveis do regime consideraram que deviam manter o livro à venda, era o mal menor.

Spínola irá sobrelevar-se a partir do momento em que Caetano insiste em lhe transferir o poder, Costa Gomes era o nome preferido dos capitães, toma a decisão de optar pelo cargo de chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas. Céu e Silva vai ouvir protagonistas do 25 de Abril, caso de Vasco Lourenço, não hesita em menorizar o papel do livro Portugal e o Futuro: “O livro tem importância em vários aspetos, mas menor do que a que muitas vezes lhe querem dar, como se o livro estivesse na origem do 25 de Abril e da democratização.”

O livro-reportagem irá inquirir o papel desempenhado pela PIDE/DGS, a construção da representação cénica de Spínola, a constituição do seu círculo privado na Guiné e depois do 25 de Abril, indo um pouco atrás passar-se-á em revista aqueles meses quentes vividos por Marcello Caetano ainda em S. Bento, depois o holofote foca-se em Otelo Saraiva de Carvalho, como este estratega aprendeu a lição do falhado levantamento de 16 de março. Mais adiante, um dos biógrafos de Spínola, Luís Nuno Rodrigues, não hesita em dizer que o livro abriu caminho para o 25 de Abril. “Ao contrário do que na altura se julgou na imprensa nacional e internacional, o 25 de Abril não foi o golpe de Spínola, mas do MFA. Tanto que, quando Marcello Caetano chama o general para se render, Spínola tem o cuidado de telefonar para o Posto de Comano do MFA e perguntar a Otelo se autoriza a receber o poder das mãos de Caetano. O 25 de Abril não é arquitetado por Spínola nem pelos spinolistas, que já tinham tentado um golpe a 16 de março. Agora, sem dúvida, a publicação do livro é uma pedrada no charco, e sem o Portugal e o Futuro provavelmente o 25 de Abril não teria acontecido tão depressa.” O historiador não esconde que Spínola acreditava na viabilidade do modelo federalista.

O nome de Spínola e o seu livro justapõem-se ao 25 de Abril, as teses do livro, rapidamente anacrónicas, provocaram um terramoto político e abriram um mar de discussão sobre autodeterminações, matéria até então tratada como heresia ou falta de patriotismo. Neste cortejo de depoimentos também não se esquece o nome de empresários nacionais que inicialmente aplaudiram o livro, mesmo que posteriormente se tenham incompatibilizado com as teses e o comportamento político de Spínola. Em jeito de conclusão, Céu e Silva recorda a bomba que foi a afirmação de Spínola de que não era viável uma vitória exclusivamente militar, reduziu praticamente a fanicos os apoios políticos a Marcello Caetano, muitos militares até então indecisos vieram apoiar o MFA e pela primeira vez desde 1961 alastrou a perceção de que havia uma alternativa política para aquele tão desgastante conflito. Spínola nunca teve o propósito de escrever um livro para abrir as portas a uma revolução, mas foi aí que vieram desembocar as teses do livro de Spínola, aparentemente tão exequíveis e moldáveis aos sentimentos mais populares.

Um belo trabalho de investigação, a ler sem falta.

 

                                                                    Mário Beja Santos

 

 


quarta-feira, 25 de junho de 2025

Belgitudes - Parte III.

 

 

Comecei a trabalhar no Luxemburgo em Setembro de 1999. Parti sozinho de Lisboa, um pouco ansioso e sem saber de todo o que me esperava (não conhecia o grão-ducado nem o reino da Bélgica). Ali conheci a minha primeira mulher, italiana, e lá nasceu o meu filho, no mês de Outubro do ano 2000.

 

Os colegas portugueses sempre foram muito simpáticos e a minha integração na unidade de trabalho foi rápida e fácil. Um gosto. Ver as pessoas nas ruas e frequentar-lhes as casas (dos mais próximos), foi rápido e bem gostoso.

 

As traduções fazem-se bem e, desde que comecei, a língua de trabalho passou do 50-50 francês e inglês, para quase 100% inglês, desde o grande alargamento de 10 países em 2004, porque muitos eslavos não têm o francês no rol de línguas estrangeiras que dominam habitualmente (mais inglês e alemão).

 

Não tenho queixas a fazer. A não ser lamentar a resistência de certos colegas mais velhos à mudança. Ficou na história o meu 'atrevimento', em início de carreira, em ter ousado usar «envelope» e não «sobrescrito», que um colega mais velho, ao rever, comentou «aqui é sempre sobrescrito». Ao que respondi que não conhecia nenhum português da minha geração que usasse sobrescrito e não envelope e que tinha sido contratado para utilizar português corrente e não do séc. XIX. A 'luta' foi ganha junto da chefe de unidade da altura, que me deu razão. O que levou o colega mais antigo referido a passar mais de um ano sem me falar a direito, comentado em voz alta que «o Luís tem a mania de mudar tudo»...

 

Fiz dois intercâmbios interinstitucionais, que me deram gozo. Conheci gente que fazia o mesmo que eu, num momento diferente do processo legislativo. No Conselho da UE e nos Comités Económico e Social e das Regiões.

 

Para muitos colegas, a Comissão e restantes instituições da União Europeia, são uma «gaiola dourada». As condições de trabalho e os salários são tão sumptuosos que, uma vez lá dentro, é difícil querer sair.

 

No meu caso, nunca me senti preso numa gaiola, gosto de línguas e de traduzir, pelo que o trabalho me convém.

 

                                                                                                        Luís Seabra


O retrato do jornalismo de imprensa: entre a hecatombe e a determinação da mudança

 


 

Trata-se de um ensaio feito por um jornalista credenciado, trabalho mais do que pertinente, crónica de um desastre anunciado, uma viagem com muitos testemunhos, não se escondem os riscos que impendem sobre a liberdade de expressão, mas o autor manifesta-se esperançoso: “Numa altura em que os jornais parecem moribundos, desacreditados e o saco de pancada onde se descarregam frustrações sociais, espero que este livro possa de alguma forma dignificar a luta de todos os jornalistas que resistem e que continuam a acreditar na profissão, mesmo ameaçados quase diariamente de despedimento. A nossa luta. Coragem, camaradas.” E entramos na leitura, empolgante e movimentada da vida dos jornais, o título do ensaio é O Jornal e o seu autor, Rui Frias, é jornalista, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025.

Antes de falarmos das redações que estão à míngua, importa passar em revista que já houve o sonho de oferecer jornais grátis, na expetativa de serem pagos pela publicidade, tudo falhou clamorosamente, o digital, com os jornais online e as redes sociais fizeram secar a venda de jornais, estes continuam embaraçados à procura do melhor modelo de negócio que permita assegurar jornais em papel, introduzindo no negócio livros de cultura variada e numa caterva de iniciativas. Mas os números de jornais vendidos diariamente em Portugal são eloquentes: de 315.139 exemplares em 2011 para 108.500 em 2021. O que se passou com o Covid também ajudou à festa, mas naqueles dez anos desapareceram jornais e jornalistas. E continua premente a questão da reinvenção do jornalismo. Rui Frias escreve e ninguém o contesta nesta paisagem desoladora: “Os perigos são óbvios e saltam à vista: crescimento da desinformação, do populismo e de uma certa bipolarização social cada vez mais extremada. E tornam mais necessária do que nunca a intermediação do jornalismo, numa altura em que, paradoxalmente, este se encontra mais fragilizado. Sobretudo entre os jornais, outrora território nacional da grande reportagem, do jornalismo de investigação e das notícias incómodas para os poderes. As redações são debilitadas. Perderam sangue, perderam músculo, perderam massa cinzenta. Das centenas de jornalistas divididos por secções, gabinetes de reportagem, equipas de investigação, especialistas em política, saúde, educação, ciência e ambiente, críticos de arte, literatura e gastronomia que povoaram as redações até ao virar do século, sobram agora na maioria delas, ‘pequenas equipas multidisciplinares’ – como passaram a chamar os gestores -, com gente obrigada a dividir-se entre alhos e bugalhos ao longo do dia, às vezes na mesma hora, para manter a máquina da atualidade a funcionar na voragem do imediatismo digital. Com isso, perde-se, inevitavelmente o rigor, a intermediação, a verdade. E apressa-se o caminho para a morte.” E desfilam os testemunhos, desde os tempos em que os jornalistas não tinham cursos, quando a redação era um ambiente extraordinário. Não são esquecidos os choques tecnológicos, lembra-se a máquina de escrever e a tipografia, as secções regionais e a Sociedade, lembra-se a importância da fundação do Expresso como Público, viragens de significado como também acontecera com o Diário de Notícias, em 1864, marcando a entrada na era do jornalismo industrial. Recorda-se os entusiasmos da década de 1980, a era da liberalização do setor, os novos títulos, a atração pelos assuntos europeus, a proliferação dos enviados especiais e, de repente, o choque com a informação na hora, a crescente capilaridade na internet, o aparecimento da redação digital dos jornais, até a ilusão de que se poderia replicar no digital o modelo de negócio que suportara o jornal em papel. Tudo mudou: “Em pouco mais de dez anos, os jornais feitos com jornalismo de rua, reportagem no terreno, contactos diretos, relacionamento com as fontes e tempo para cruzar informação deram lugar a sites alimentados ao minuto por notícias de agências acabadas de chegar, soundbytes apanhados nas televisões e fait-divers com potencial para viralizar nas redes sociais replicados há exaustão por todos os órgãos de media, sem tempo para se zelar minimamente pela veracidade dos factos.” É o triunfo do tabloide, entretanto acentua-se a crise financeira, já tinham morrido os jornais vespertinos, os despedimentos coletivos nunca mais pararam, os jornalistas tornaram-se precários, os jornalistas procuraram mudar de profissão (num estudo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa sobre os jornalistas, em 2021, dos cerca de 800 jornalistas inquiridos, metade ganhavam menos de mil euros).

O relacionamento do jornalista com o mundo faz-se, regra geral, com recurso à prótese digital. “Se os jornalistas nas redações são hoje metade (ou nem isso) do que eram no final do século passado, agora cada jornalista tem pelo menos dois monitores na sua secretária, dividindo-se entre plataformas, sites, agências, cada vez mais amarrado à cadeira e de olhos fixados nos ecrãs.”

Rui Frias não esquece de fazer a apologia do jornalismo investigativo, lembra o caso Watergate, hoje em dia uma raridade, conta mais histórias de camaradas que procurar medrar no jornalismo de investigação, a necessidade de ter tempo para escutar as fontes, para conviver com as pessoas. E chega a hora de abandonar o ritmo das penúrias e vocações que sucumbem para acende o facho da esperança, tocar a trombeta da inovação em tempos de crise, seguem-se depoimentos de quem se lançou na aventura, caso dos jornais locais, projetos a evoluir para o jornalismo de investigação, fazendo ganhar a confiança dos leitores usando da transparência, trocando a velocidade pela profundidade, fazendo recurso de media multiplataformas (papel, áudio, vídeo, redes sociais…) usando podcasts ativos. Como alguém observa ao autor: “O jornalismo é cada vez mais um serviço em constante mutação de produtos. E o que nós tentamos é ter um serviço completo, que cruze variadas dimensões. Os jornais ganham com a multiplicidade de plataformas para chegar aos leitores, ou ouvintes, ou o que seja. Precisamos de ter uma componente 360 graus, para que as pessoas que estão do outro lado possam chegar até nós da forma que mais gostam.”

É nesta constante luta pela sobrevivência que ganha realce a inovação. Diga-se o que se disser, a missão dos jornalistas está mais atual do que nunca, a despeito dos despedimentos e da falta de salários. E assim o autor se despede: “Continuo a acreditar que o bom jornalismo pode mudar o mundo.”

De leitura obrigatória.

 

                                                    Mário Beja Santos




terça-feira, 24 de junho de 2025

Belgitudes - Parte II.






BRUXELAS 

 

 

Como descrever Bruxelas? É uma cidade difícil de gostar à primeira, de tal maneira é caótica e composta por muitas comunidades de estrangeiros.

 

Começarei com uma história curiosa, num dos parques da cidade, que tem o nome de Passage Marguerite Yourcenar, a maior escritora que o país e o mundo conheceram. Para mim, claro está. Numa manhã de Primavera, com tempo agradável, ajudei uma senhora de idade a subir uma pequena escada para o jardim principal, depois do referido passage (o parque atrás da grande torre do Hotel Hilton). Tinha os cabelos todos brancos e um cara doce, olhos azuis e feições muito belgas, com as pálpebras superiores descaídas e as maçãs do rosto elevadas. E olhos azuis muito transparentes, como a referida autora.

 

Em conversa, perguntei-lhe se conhecia a escritora Marguerite Yourcenar, a famosa e consagrada do país. Em resposta, tive a seguinte boa surpresa: não só a conheço, como sou prima direita dela. Sempre tinha morado numa das mais antigas ruas de Bruxelas, a velha rue aux Laines, para onde dão as traseiras do conservatório nacional, num bairro chamado Sablon.

Agora a senhora Jacqueline Stainier mora num lar de idosos na mesma rua. Conversámos um bocadinho ali num banco de jardim e depois uma tarde uns meses mais tarde, fui tomar um chá a casa dela, para falar com mais tempo.

 

Percebi então que a diferença de idades entre elas era de quase 40 anos, pelo que só viu a escritora muito pequena, pouco antes de esta partir para os EUA (Mount Desert Islands, Maine). Conhecia mais as histórias de família do que as história da vida de prima Marguerite. Era demasiado nova.  No dia do nosso encontro em casa dela, conheci um vizinho muito simpático, que lhe tinha ido comprar cigarros. Era um personagem, parecia um pouco perdido na vida, mas falava 7 línguas, entre as quais o provençal, por ter nascido e vivido no sul da França.

 

Como é vastamente sabido, Bruxelas é uma cidade bilingue, o que aguça o engenho dos designers gráficos na criação de posters que anunciam por exemplo o Kunstenfestival des Arts, o mais emblemático. Ou seja, saber várias línguas ajuda. As proximidades de origem e geográfica tornam o flamengo (neerlandês) muito mais próximo do inglês que do francês. É uma língua que se aprende facilmente por ter uma estrutura sintáctica com as facilidades do inglês, e poucas das dificuldades sérias do alemão. Ali, na cidade e no país, dá jeito saber algumas línguas. É verdade que a cidade é maioritariamente francófona, mas há bairros do centro histórico e dos arredores nos quais o flamengo predomina. Há alguns municípios (comunas) ao lado dos da cidade que preferem o flamengo e têm, muitos, à entrada, uma placa que diz: 'município em que os flamengos se sentem em casa' (waar Vlamingen thuis zijn). Bruxelas tem 19 comunas, todas elas muito diferentes umas das outras. Não existe uma linha mais uniforme como as famosas capitais de Paris, Berlim ou Amesterdão.

 

A comuna em que vivi chama-se Schaerbeek, uma das maiores da cidade, na zona nordeste, perto do aeroporto de Zaventem. Deste bairro parte o tram (eléctrico) n.º 92, que é um bom passeio para primeiros visitantes. Parte de uma zona desta comuna assaz empobrecida, passa pela comuna mais pobre de todo o país, passa depois pela zona do alto da cidade onde está o Palácio da Justiça, acabando em St. Job, na comuna mais chique de Uccle. Uma boa maneira de conhecer as grandes diferenças da cidade e o caminho é longo.

 

Começa na praça do museu do comboio, um dos melhores de Bruxelas, para quem aprecia este meio de transporte (é o meu caso). A entrada do museu é a velha estação de Schaerbeeek, onde os comboios ainda passam. Trainworld é como se chama.

Em termos de museus, Bruxelas tem vários e bons, e também casas-museus de pintores e escultores do séc. XIX. Na zona conhecida por Mont des Arts, é possível visitar o Museu das Belas Artes e o Museu Magritte. O primeiro tem uma grande colecção da arte belga até ao século XVIII.

Recomendo sobretudo as primeiras salas, com belos quadros da arte flamengo dos séculos XV e XVI, incluído o famoso Bruegel. Para quem gosta de Magritte, o museu dispõe de um boa e vasta colecção.

 

Na capital da Bélgica, ouve-se muito árabe (magrebino, dado que o do Levante é quase uma língua diferente, e este é um árabe muito mais duro e agreste), turco, várias eslavas e também brasileiro (São Paulo e Nordeste). Caso seja necessário, também se pode apanhar o metro, existente em todas as capitais europeias. Com a diferença que o de Bruxelas é talvez o mais feio e maltratado. As estações são velhas e pouco renovadas, os comboios são velhos e sujos, começaram a ser substituídos por novos a partir de 2015. E a cobertura, para uma grande cidade, situada entre Paris e Londres, é escassa. Só um exemplo, a estação da Gare Central, no centro, como o nome indica, tem num dos patamares das escadas que descem para o metro um monte de detritos que dão o pior dos aspectos a quem as utiliza todos os os dias, ou só em visita.

 

Nesta cidade especial, há uma coisa a assinalar: a parte comercial do centro antigo, a 'baixa' como diz a maior parte dos portugueses nela residentes, é considerada perigosa e muito pouco frequentada pelos belgas da 'alta' da cidade, mais ricos e onde moram também a maioria dos funcionários europeus, de toda a UE. A tal 'baixa' é uma zona porca e confusa. Um dos últimos presidentes da Câmara Municipal de Bruxelas-cidade teve a ideia peregrina de fazer a maior área pedonal da Europa, que suscitou uma grande reacção zangada da maior parte dos comerciantes, que perderam grande parte da clientela, os que vinham de fora da comuna. Restam os autocarros, metros e eléctricos. E ficou arranjado sem grande graça, tudo maioritariamente cinzento e não muito bem pensado. Aliás, o cinzento é a cor dominante em toda a cidade, elemento estranho a um natural de Lisboa. Quando chove, é um verdadeiro poço fundo, com sol fica um pouco mais leve...

 

Uma das coisas que mais custa a um lisboeta são estes vários tons de cinzento presentes todo o ano e a ausência de um grande rio e do mar (a 100km). Foi decidido tapar o rio Senne na zona do centro numas grandes obras que a cidade sofreu nos anos 50. A intenção era fazer a ligação ferroviária Norte-Centro-Sul da cidade. Para tanto, foi destruída grande parte do centro mais antigo e a cidade mudou de rosto. Para pior, com muito cimento e muitas torres de mau gosto. Ou seja, em Bruxelas não é fácil ver coisas do tempo de Carlos V, imperador, que lá viveu. O que é, decididamente, uma grande pena.

 

Um dos aspectos bons que a cidade tem, além do belo património arquitectónico de Victor Horta, o 'rei' da arte nova, é a oferta de espectáculos de música clássica, dança contemporânea (sobretudo) e de música, clássica e contemporânea. A oferta é rica e os artistas apresentados são bons. Um excepção: o teatro. Poucas vezes vi qualquer coisa realmente de jeito. Com excepção do Théâtre de Poche no Bois da la Cambre.

Para um grande apreciador de dança, Bruxelas é uma das capitais europeias, ao lado de Paris, Londres, Frankfurt, Copenhaga ou Estocolmo. Sobretudo a dança contemporânea, onde se estrearam e desenvolveram os bem conhecidos nomes de Anne-Teresa de Keersmaeker e Wim Vandekeybus no Festival de Klapstuk, na Flandres dos anos 90. Há, durante o ano, vários espectáculos que valem a pena ver, em teatros normalmente bonitos e agradáveis, sobretudo em pleno centro ou bairros limítrofes.

 

Para voltar à arte nova, visitar a cidade para ver o património deixado pelos artistas da arte nova valerá a pena. Além do mais, é um centro urbano com muito verde, muito pujante.

 

Para mostrar o que a cidade tem de pior, escolho três exemplos:

1.     O assassínio de um jovem estudante da Escola Europeia (estrangeiro, portanto) por causa de um telemóvel, em plena estação central, por um grupo de igualmente jovens magrebinos.

2.     A estação do Midi (sul) é um bom exemplo dos contrastes vivos da cidade: r/c de acolhimento moderno, mas cais velhos e decadentes. Um dos cinzeiros é um tubo de metal num caixote para lixo seleccionado. Apaga-se um cigarro e a beata cai para o chão do cais porque o tubo não tem tampa inferior, ou seja, o canal está aberto para o chão. Isto é Bruxelas.

3.     À porta de minha casa, no bairro de Schaerbeek, carros com grupos de jovenas adultos, magrebinos ou turcos, comiam os seus pitta dürüm, com o carro ligado por causa do frio exterior, e no final, com caixotes (não um, mas vários) a poucos metros de distância, os restos, garrafas de cerveja e papel engordurado eram depositados em frente à nossa porta. Abrir as portas e deixar no meio do chão. Com quatro 'gandulos' dentro do carro, Deus me livre de dizer qualquer coisa, ou protestar, porque as consequências são facilmente previsíveis. Além de que a casa era antiga, com vidros arranjados, mas ainda com frinxas, pelo que o cheiro dos escapes entrava em casa. Mais palavras para quê?

Por último uma característica do povo belga: «Monsieur, je sais pas faire deux choses en même temps e Non, Monsieur, en Belgique on ne fait pas comme ça» (senhor, não sei fazer duas coisas ao mesmo tempo; na Bélgica, não fazemos assim).

 

Resta ainda dizer que Bruxelas é uma cidade em que as condições de vida e os meios económicos das famílias são assustadoramente díspares. Uma comunidade de habitantes de proveniências muito diferentes, todas no mesmo lugar geográfico e a maior parte das vezes fechadas em guetos (quase).

 

Um último reparo. A maneira de conduzir revela a natureza do carácter belga: pouco ousados e excessivamente prudentes. Aliás, actualmente, o limite de velocidade no centro é de 30km/hora. De arrancar cabelos.

 

Faltou uma nota importante, que revela o modo de ser local: a única cidade europeia que conheço em que a recolha de lixo se faz exactamente à hora em que 'a malta' vai trabalhar ou pôr os miúdos à escola. Entre as 7.30 e as 9 da manhã!

 

Muitos elogiam a qualidade de live and let live de Bruxelas. Não gosto, nunca gostei, sempre me desagradou e até me incomodou...

 

Já preceberam: saí de Bruxelas e da Bélgica sem pena nenhuma. Até com alívio. Vou continuar a trabalhar na Comissão Europeia no Luxemburgo, até à reforma final. Na mesma Direcção-Geral da Tradução, onde comecei em 1999.

 

Uma última coisa é certa: as verdades são para se dizer.

 

Utilizando a frase citada do Urbano Tavares Rodrigues no início destes textos, eu diria que a Bélgica e a sua gente são «amorfos», aborrecidos.

 

 

Luís Seabra




segunda-feira, 23 de junho de 2025

Belgitudes - Parte I.

 



          

                                     Bénit le pays où tu gagnes ton pain  

                       (loja judaica no centro de Paris, 1er arrondissement, no ano 2000)

 

                                 Naquela malfadada terra de gente loira e amorfa, não poderia nunca passar despercebido.

           (Urbano Tavares Rodrigues, conto do volume «A Noite Roxa». A malfadada terra é a Bélgica)

 


Ao meu filho L.

À muito estimada Luísa Schmidt, minha 'mestra' no Expresso, com quem aprendi sobretudo o olhar jornalístico sobre o mundo que me rodeia.

 

 

 

                                     BELGITUDES. PARTE I

 

Cheguei a Bruxelas, capital da Bélgica, em Julho de 2006. Depois de um período de 7 anos a trabalhar como tratutor jurídico no Serviço de Tradução da Comissão Europeia, no Luxemburgo. Actualmente, a designação mudou e oficialmente sou funcionário da Direcção-Geral da Tradução. A chegada à Bélgica não correspondeu às minha expectativas. A minha intenção era fazer crescer os meus filhos num ambiente mais 'normal'. Os anos vividos no Grão-Ducado do Luxemburgo permitiram-me compreender que o país e a sua capital correspondem ao que muita gente chama «um bolha de prosperidade» em que nada corresponde ao resto do mundo. Para melhor e mais eficiente. Conheci vários colegas cujos filhos tiveram problemas ao serem confrontados com o mundo real quando, depois de crescer no Luxemburgo, tinha escolhido uma cidade 'real' para fazerem estudo universitários (até porque nesses anos, o Luxemburgo ainda não tinha universidade).

 

Sou de Lisboa e pensava que uma grande cidade não me assustaria e gostaria sem qualquer obstáculo. O mesmo não se passava com a minha mulher de então que vinha de uma bem pequena cidade italiana, de não mais de 40 mil habitantes. 

Isso portanto quis assegurar aos meus dois filhos pequenos: crescer numa terra mais normal, para se habituarem ao mundo tal como ele é.

Pessoalmente, gosto muito do Luxemburgo e defendo que deve ser escolhido para trabalhar aos 35-45 anos, depois de se ter ganho 'calo' noutras partes do mundo.

 

Então, para minha grande surpresa, passei os primeiros seis meses em Bruxelas muito infeliz e com várias dificuldades de adaptação ao novo país e sua capital.

 

Depois consegui compreender um pouco esta dificuldade. Um amigo e colega holandês que já lá vivia aconselhou-me um ensaio, para mim essencial, de um admirado intelectual flamengo sobre o país em que vivia. O título é «O Labirinto Belga». O original é neerlandês é chama-se Het Belgische Labyrinth. Está traduzido em inglês e francês, e mais línguas seguramente, e trata-se de um texto muito bem escrito e muito claro sobre a realidade do país. Os motivos que levaram à sua formação oficial em 1830, os conflitos, ódios e concorrências entre as duas principais comunidades linguística da Bélgica: os flamengos e os valões. Os portugueses emigrantes costumam designar os primeiros como «os flamões»!! E não esqueçamos que há uma terceira comunidade, a germanófila.

A Bélgica é, portanto, um país trilingue.

A única vez do meu período de residência em que se falou seriamente da separação do país foi devido ao político da extrema-direita flamenga, Bart de Wever, nos princípio dos anos 2010. Até promoveram um graça televisiva, num dia 1 de Abril (não das mentiras, em francês, mas poisson d'avril, peixe de abril) em que num telejornal anunciou que havia sido decidido que a Bélgica, como país, tinha acabado. As reacções choveram em catadupa e foi a única vez que os jornalistas, políticos e o povo em geral se puseram a debater afincadamente o problema. E houve até habitantes do país que puseram bandeiras na varanda, ou janelas, que defendiam a permanência do país.

 

A estrutura administrativa prevê desde a reforma dos anos 80 uma estrutura tripartida: 3 comunidades linguísticas, com o seu Parlamento e as suas regras, mais a região-capital de Bruxelas, e mais um Parlamento Federal. O que significa que é um país com uma população semelhante à de Portugal, mas com 4 parlamentos! Imagine-se o dinheiro público necessário para sustentar e fazer funcionar estes organismos.

Tudo isto contribui para fazer da Bélgica um país estranho e complicado, que não se entende à primeira e em pouco tempo, tais são as suas especificidades...

Qualquer obra pública que envolve duas ou mais comunidades é um quebra-cabeças.

Um exemplo: o elécrico até ao aeroporto, do centro de Bruxelas. Chegou ao limite de Bruxelas-Capital mas não avança mais por oposição da comunidade flamenga. O que deixa os habitantes de um serviço obviamente muito útil para chegar ao aeroporto de forma rápida e sem trânsitos, sem o dito. 

 

Com o ensaio referido do flamengo Van Istendael percebe-se uma série de coisas, o que facilita o encontro de uma forma de viver no país. Em primeiro lugar, a sua criação. Foi o resultado de um jogo diplomático que desejava obter uma espécie de tampão, naquela região da Europa, para travar os desejos alemãs, de um lado, e franceses, do outro. Uma coisa muito parecida com a nascença do Grão-Ducado do Luxemburgo. Também destinado a ser um tampão.

Com a diferença, porém, que a realidade social ser muito diferente. Sendo mais pequeno, e falar o mesmo dialecto, o Luxemburgo foi muito mais fácil de unir. O território belga, com gente muito diferente e com línguas variadas foi muito mais difícil de unir. Para dar só um exemplo, a região flamenga, onde se fala a mesma língua, a um nível educado e urbano, tem mais de 20 dialectos diferentes, entre região e região. As pessoas de uma aldeia não entendem os moradores de outra aldeia a poucos quilómetros de distância! Coisa que para um português é realmente um elemento de estranheza.

A Bélgica é um país diferente de Norte a Sul. Diferente de Holanda, que é um país bastante mais homogéneo. A parte norte, a Flandres, que faz fronteira com a Holanda é mais plana e tem costa. As praias têm areais enormes e cores bonitas. Devem é ser observadas de costas para as horrendas torres construídas em quase todas as pequenas terras. Com a excepção de uma, Le Coq sur Mer (De Haan), que manteve casas do século XIX e XX e tem um urbanismo muito mais harmonioso. No Inverno, e também muitas vezes no Verão, a praia não tem cheiro. O que é sempre algo estranho para um português, habituado aos bons e inabituais aromas das praias portuguesas, Verão ou Inverno. Muitas vezes fui de carro e de propósito à costa flamenga (cerca de 100km de Bruxelas), sobretudo no Inverno, bem agasalhado, e ficava sempre desiludido com a ausência de cheiros. O norte flamengo tem também aquilo que eu chamaria uma «slopiness» inglesa. Um desleixo, um deixar-andar, desde que funcione, e nada de coisas requintadas.

 

O sul, a Valónia, é mais verde e ondeado de pequenas colinas. Tem o lugar onde os belgas preferem ir passear, as Ardenas. Onde já há verdadeiras alturas, se bem que modestas, e pequenas aldeias bem engraçadas. Faz fronteira coma França e tem habitantes mais simpáticos e menos desconfiados do que a Flandres. Numa aldeia perdida num passeio de bicicleta até à região este, fui acolhido muito humanamente numa casa de gente humilde para carregar o telemóvel, onde até me ofereceram de comer... Um gosto. Coisa que provavelmente nunca aconteceria na região flamenga, onde o comportamento mais habitual é terem medo dos outros, não por ser estrangeiro mas também por serem outros flamengos...

 

Ainda como curiosidade, as autoestradas nacionais são designadas pelos números da convenção rodoviária europeia, começados pela letra E, a E40, a E411, a E42. É, a meu conhecimento, o único país da União Europeia que o faz. Digamos, ironicamente, que indica o país mais europeísta da UE.

 

Outra curiosidade engraçada são as adaptações que os portugueses que escolheram a Bélgica para viver fazem do português falado em Portugal, sendo uma língua latina como o francês.

Os batimentos, as tracassarias, as cartas das tramas, a caixa de maladia, a pubela, o muro (parede), as flechas (para setas de indicação estradal), e a que ganha o prémio (para mim), a prima da segurança! Sendo que a palavra francesa é prime, para o prémio do seguro.

 

A região do país que acabei por preferir é a região Leste do país. Aquela onde se fala alemão, colada a este país e ao Norte do Grão-Ducado do Luxemburgo. É uma zona verde e mais montanhosa, mais calma, com poucos turistas e vistantes nacionais (todos preferem a famosa zona das Ardenas, sobretudo os vizinhos holandeses, que nelas encontram as altitudes que consolam os habitantes do seu «plat pays». As cidades mais conhecidas são Spa e Malmédy, ambas povoadas de gente invulgarmente afável e simpática neste país, numa zona em que se pode passear e observar belíssimas paisagens, com toda a calma e solidão (o que não acontece nas referidas Ardenas, frequentemente muito cheias). Tem a famosa floresta das Haute Fagnes, onde no Inverno, com neve, se pode mesmo esquiar. 

 

Tem o melhor projecto ecológico do país, eu que gosto de bicicletas. Transformaram uma velha linha ferroviária em via ciclável e pedonal, de Aachen, na Alemanha, a Troisvierges, no Norte do Luxemburgo. São mais de 100km nos quais nunca se sobe muito porque as subidas fora feitas originalmente para comboios. E a paisagem é de sonho. Fiz algumas vezes apanhar o comboio até Verviers, com bicicleta lá dentro e depois entroncar a meio do caminho. Chama-se a Vennbahn.

 

Também aconselho as pessoas que tenham de se deslocar repetidas vezes entre Bruxelas e o Luxemburgo de comboio a fazerem-no via Liège, se tiverem tempo. A paisagem é soberba e o percurso menos 'enguiçado'. Em 21 anos que vivi no Luxemburgo e depois em Bruxelas, nunca esta linha, essencial também para os eurodeputados que se deslocam mensalmente a Estrasburgo, teve um dia sem problemas. Do lado belga, sempre em obras, sempre confusões, atrasos, etc. Vê-se que a vontade política inexiste para resolver o absurdo desta situação. E, para fazer 210km, são ainda necessárias 3 horas, em pleno ano de 2022, bem no centro da Europa do Norte. Ongelooflijk diriam os holandeses: inacreditável.

 

Um último detalhe interessante: quando se percorre a autoestrada que vai entrar na Holanda, a Flandres é desorganizada, sloppy (à maneira inglesa) e depois da fronteira dá ideia que o mundo muda. A limpeza e beleza das paisagens, devidamente cuidadas, casa bem pintadas e mantidas, sinalização impecável, ordem e beleza, em suma. Entrando na mais bela das regiões holandesas, a Zelândia (Zeeland), na base do nome do país nas antípodas.  

 

Uma última nota para os portugueses que me lêem e terão provavelmente a mesma sensação.

Quando se tem saudades do mar, que rodeia Portugal e muitas das suas cidades e se vai à costa no Inverno, os grandes frios matam todo e qualquer cheiro, coisa que para mim foi estranhíssima. Não 'cheira a praia' como na Península Ibérica, todo o ano.

 

 

Luís Seabra