Tejo,
Um cruzeiro religioso e cultural, por Ana da Cunha,
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025, desvenda-nos uma assombrosa viagem
que ocorre todos os anos em maio, Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo vem em
cruzeiro, percorre 325 quilómetros e o leitor vai de surpresa em surpresa percorrer
comunidades ribeirinhas, um universo onde pairam os saberes e a cultura dos
pescadores avieiros, tudo começa num interior raiano, ainda espanhol, a última
etapa será Porte Brandão, Paço de Arcos e Oeiras, ouviremos depoimentos
tocantes de familiares avieiros e nascidos dessa cultura palafítica, não
faltarão belas paisagens que atestam a diversidade do Tejo, boa comezaina,
danças e cantares, e, de um modo geral, Nossa Senhora é acolhida em triunfo e
com carinho. Atenda-se ao que a autora nos procura elucidar: “O Cruzeiro
Religioso e Cultural do Tejo tem por missão preservar a cultura dos pescadores
vindos da Praia da Vieira. A viagem, que percorre 325 quilómetros pelo Tejo,
surgiu em 2012, no âmbito da candidatura da cultura avieira a património nacional
e da UNESCO. O cruzeiro não passa só pela cultura avieira. ‘Unir margens’ é o
mote da viagem, que procura contribuir para consolidar a identidade das
culturas ribeirinhas do Tejo, levando-lhes uma imagem que simboliza essa união
entre povos e margens: a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, concebida a
partir dos contributos das comunidades avieiras.”
A
leitura que acompanha do princípio ao fim toda esta viagem é o romance Avieiros,
de Alves Redol, para conhecer melhor esta cultura viveu na aldeia avieira da
Palhota. E começa a viagem, vai-se de comboio em direção a Castelo Branco, o
destino é Vila Velha de Ródão, a autora tem à sua espera João Serrano, ele é um
dos voluntários que todos os anos põe de pé este cruzeiro religioso, Serrano
constituiu a Confraria Ibérica do Tejo, foi aqui que se iniciou a luta pela
elevação da cultura avieira a património nacional. Percorre-se a localidade, é
obrigatória a visita ao Castelo de Ródão, a viagem prossegue para o
Rosmaninhal, uma das freguesias de Idanha-a-Nova, infelizmente hoje localidade
com pouca gente, dos 437 habitantes que restam, 248 têm mais de 65 anos. Faz-se
a visita à imagem de Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, coroada de flores e
segurando um terço na mão.
Na
manhã seguinte, a imagem embarca na grande viagem, o destino é Alcántara e
Santiago de Alcántara, no Parque Natural del Tajo Internacional, imagem
descarregada para uma pequena embarcação, ouvem-se exclamações, dizem que a
Santa é muito bonita. No cais de Sever-Cedillo, que liga o município de Nisa ao
município de Cedillo, a comitiva é recebida com cânticos “Miraculosa Rainha dos
Céus”, não há fronteiras que separem os povos. Nova fase da viagem, cais de
Alvega, uma povoação do concelho de Abrantes, a Santa vai ser recebida com
grande alegria, a banda filarmónica recebe-a com tambores, tubas, saxofones e
clarinetes. O próximo destino: Mouriscas, vão em bateiras, há uma despedida em
que a comunidade acena com lenços brancos. Chegou a hora de falar da boa
comida, o comer será acompanhado de vinho tinto, a sobremesa também obedece às
tradições: a tigelada, a palha de Abrantes, o bolo lêvedo e as passas de figo
fritas. Vêm a propósito falar de histórias de amor e avieiros, chega-se ao
Travessão do Pego, sai-se da bateira, a imagem da Senhora é içada pela grua, na
Barca do Pego assiste-se a uma missa e depois à pândega, entra em ação o rancho
folclórico da casa do Pego.
No
dia seguinte os excursionistas encontram-se em Rio de Moinhos, o destino é o
Tramagal, há muitos testemunhos de quem aqui nasceu e viveu, saudades não
faltam. Do Tramagal vai-se a Constância, a autora percorre a povoação, sente-se
que está feliz, e depois a bateira encaminha-se para o Castelo de Almourol.
Agora sim, entra-se em território de avieiros, é o Tejo dos mouchões e das
culturas agrícolas, é o Tejo de Lezíria, começa-se pelo Porto das Mulheres,
volta-se a falar de Avieiros, de Alves Redol, conta-se a história desta
gente oriunda da Praia da Vieira de Leiria, os avieiros construíram barracas em
estacas, no Porto das Mulheres havia aldeia avieira, já desapareceu. Temos
agora uma viagem atribulada até à Azinhaga, há receção pelo rancho folclórico nesta
terra de avieiros, cita-se mesmo José Saramago, que aqui nasceu: “À aldeia
chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da
nacionalidade (já tinha foral no século décimo terceiro), mas dessa estupenda
veterana nada ficou, salvo que lhe passa ao lado (imagino que desde a criação
do mundo) e que, até onde alcançam as minhas poucas luzes, nunca mudou de rumo,
embora das suas margens tenha saído um número infinito de vezes.”
No
dia seguinte chega-se à praia fluvial do Patacão, a comitiva tem direito a um
lanche, fala-se demoradamente das aldeias palafíticas fluviais e das origens da
aldeia do Patacão. E a viagem prossegue até ao Vale da Figueira, para-se em
Porto Carrapiteiro, nova referência a uma história de amor, desta vez entre
Xico, da Barreira da Bica, e Olinda, do Patacão, pouco resta dos avieiros
nestas localidades. E depois todos se encaminham para a Ribeira de Santarém,
aqui houve a aldeia avieira das Caneiras. A próxima paragem será no Porto dos
Cucos, uma antiga aldeia avieira na freguesia de Benfica do Ribatejo, no
concelho de Almeirim, nova receção festiva. E na manhã seguinte o novo destino
é Porto do Sabugueiro, na freguesia de Muge, em Salvaterra de Magos, mais
lembranças históricas destes locais, segue-se Porto de Muge, Valada do Ribatejo
e Escaroupim, mais bailarico, em tempos daqui se partia em fragatas,
transportando mercadorias para Lisboa. O Escaroupim está hoje gentrificado, a
bateira para por momentos em frente da Palhota, na freguesia da Valada, a
comunidade junta-se em peso para receber a Santa.
A
viagem agora encaminha-se para o concelho da Azambuja, para o Porto da Palha,
são citadas mais referências à presença avieira. E depois a viagem prossegue
para Vila Franca de Xira. “No dia seguinte à procissão na Azambuja, chego ao
Esteiro do Nogueira, um antigo bairro avieiro em Vila Franca de Xira. Vejo os
barcos a rasgarem o Tejo e a população a festejar. É uma massa de gente: as
mulheres com os lenços na cabeça, os homens com os barretes e as redes de
pesca, os pés descalços sobre a calçada na rua.” Estamos agora no cais de
Alhandra: “A Santa segue do cais, passando pelos anzóis e pelas embarcações dos
pescadores que ainda resistem nesta antiga freguesia de Vila Franca de Xira,
até chegar à Rua dos Avieiros, onde a imagem fica a repousar num altar junto à
associação de pescadores Rios e Marés.” Lembra-se Soeiro Pereira Gomes, o
nadador Batista Pereira e o médico Sousa Martins. Parte-se depois para Póvoa de
Santa Iria, daqui para o cais do Trancão (Sacavém), abandona-se o território
dos avieiros e entra-se no Tejo dos fragateiros, Sarilhos Pequenos, e depois a
Moita, o Barreiro e o Seixal, a Senhora terá direitos a passar por Alfama. E
chega-se ao último dia do cruzeiro, vai-se de Porto Brandão até Oeiras.
Fica-se
com uma vontade enorme de apanhar o comboio na Gare do Oriente e seguir para
Vila Velha de Ródão, Ana da Cunha saliva todo e qualquer viajante para este
cruzeiro sem rival onde se unem povos de dois países e se visitam porções tão
diversificadas do Tejo e suas gentes, apetece viajar e partilhar a alegria
desta espantosa cultura avieira, que continua a marcar as novas gerações.
Uma
belíssima reportagem.
Mário Beja Santos