Tudo
terá começado em 3 de março de 2016, em Nova Iorque, um jesuíta e teólogo,
Padre Antonio Spadaro, encontrou-se com Martin Scorsese em sua casa para
discutir Silêncio, filme que o realizador italo-americano dedicou à
perseguição aos jesuítas no Japão, e a relação do cineasta com a fé. Este livro
compendia um conjunto de conversas sobre as motivações do cineasta, ele é
questionado sobre a fé e a graça que, mais ou menos subtilmente, emergem das
suas obras. O mínimo que se pode dizer do todo desta obra é que ficamos com o
retrato de uma das principais figuras contemporâneas da sétima arte, Conversas
Sobre a Fé, Casa das Letras, 2024.
Nesse
primeiro encontro de 2016, Scorsese fala da sua juventude, era acólito e por
vezes ao sair para a rua no fim da missa perguntava a si próprio: “Como é
possível que a vida continue como se nada tivesse acontecido? Porque é que o
mundo não é abalado pelo corpo e pelo sangue de Cristo?” Questão que o
realizador tratou no cinema em filmes como O Touro Enraivecido, A
Última Tentação de Cristo e o Silêncio. Padre e realizador irão
encontrar-se durante o período da pandemia, falarão de pessoas e livros que influenciaram
o realizador que continua obcecado em filmar sobre Jesus.
Fala-se
inicialmente de Silêncio, dos jesuítas perseguidos no Japão. Scorsese é
assumidamente católico, inquieta-o a questão da graça, algo acontece ao longo
da vida e comenta: “Não se consegue ver através da experiência de outra pessoa,
apenas da nossa. Por isso, pode parecer paradoxal, mas relacionei-me com o
romance de Shūsaku Endō.” Contará ao entrevistador o que pensa das fascinantes
e intrigantes personagens do romance, padres que perderam a sua fé, padres que
descobriram o rosto de Cristo. Questionado se a compaixão é instinto ou humor,
responde que a chave é a negação de nós mesmos, ele dá-se como obcecado pelo
espiritual. “Estou obcecado com a questão do que somos. E isso significa olhar
para nós de perto, para o bom e para o mau. Será que podemos cultivar o bem
para que, num momento futuro da evolução da humanidade, a violência possa,
possivelmente, deixar de existir? Mas, neste momento, a violência está cá. É
importante mostrar isso. Para que não se cometa o erro de pensar que a
violência é algo que os outros fazem.” Reflete demoradamente sobre o tempo da
pandemia, os livros que releu, os filmes que viu e fala do que ressoou em si a
mensagem do Papa Francisco:
“Durante
muitos anos, tentei compreender como Jesus vive no mundo que o rodeia e como a
sua presença pode viver em mim e ser expressa por mim. Durante muito tempo
cometi o erro de pensar que estava a exprimir Jesus quando, na verdade, estava
a estragar as coisas – era uma questão de orgulho e de ego, de me deixar levar
pelo papel de grande realizador de cinema e pelo poder de fazer arte. Lendo o
texto do Papa Francisco, fiquei entusiasmado.” E fala do seu passado e da sua
juventude, em Little Italy¸ Nova Iorque, zona de crime organizado, frequentou
uma escola católica, conheceu o padre Francisco Príncipe, influenciou-o muito.
“Ele representava uma forma de pensar e uma forma de lidar com a vida que era
muito, muito diferente do mundo cruel, duro e julgador que me rodeava. Olhava
para nós e dizia: ‘Não têm de viver assim’.” Era uma época de movimentos de
direitos civis e o padre Príncipe dera-lhe uma abertura para o mundo, teve um
efeito poderoso sobre Scorsese. Pensou que estava destinado a seguir a vida sacerdotal,
cedo descobriu que estava a tentar esconder-se da vida e do medo, apercebeu-se
que queria estar com os outros, e então apareceu a paixão pelo cinema.
Há
um outro momento decisivo na sua vida quando, em 1964, viu o filme Evangelho
Segundo Mateus, de Pasolini, o filme era para ele num planeta diferente, o
rosto de Jesus aparecia nada que tinha visto antes. “Os outros filmes sobre
Jesus que tinha sido feitos até essa altura eram muito, muito piedosos, e
sempre que Jesus aparece é o centro das atenções em todos os sentidos. É
destacado do resto da humanidade na sua maneira de falar, na sua maneira de se
mover, na sua perfeição física e no enquadramento, na encenação, na encenação,
na iluminação. Mantém uma longa tradição de representar Jesus na pintura de
forma absolutamente idealizada. Mas o que Pasolini fez foi tornar Jesus um ser
humano, uma pessoa, alguém que se pudesse conhecer e com quem se pudesse falar.”
Respondendo
a comentários sobre os seus filmes lembra que A Última Tentação de Cristo
toca em toda a iconografia da igreja. “Apercebi-me que tinha de ir mais longe
na história de Jesus quando fiz este filme. Havia uma parte de mim que se
sentia compelida a lidar com a iconografia – tinha de criar a crucificação,
tinha de criar a ressurreição de Lázaro, tinha de criar o sermão da montanha,
mas acho que essa não é realmente a história de Jesus.” E, mais adiante: “Jesus
abraça toda a humanidade, e Jesus é realmente toda a humanidade. Mostra-nos a
todos o caminho, a forma de viver, de lidar com a raiva, a vingança e a
retribuição, com o amor, o perdão, a redenção e tudo o mais que existe em nós e
entre nós.”
E
conta-nos o que o acicatou a filmar Assassinos da Lua das Flores. “Por
volta do início do século XX, os Osage descobriram petróleo na sua reserva.
Rapidamente, tornaram-se o povo mais rico do mundo. Depois, como é óbvio, os
brancos especuladores e vigaristas e oportunistas e ladrões e assassinos
desceram. Sentiram o cheiro do dinheiro fácil. Houve um esforço concentrado
para matar praticamente toda a comunidade Osage em troca do dinheiro do
petróleo, por todos os meios imagináveis: tiroteios, atentados à bomba, a
bebidas alcoólicas e envenenamento lento.” Confessa que procura compreender e
aceitar a violência que existe em nós, procura aprender sobre a vida interior
dos outros observando o seu comportamento exterior. Volta a falar sobre a
hecatombe que caiu sobre os Osage: “O reinado de terror dos Osage foi uma
questão de poder e ganância. Foi muito fácil para Bill Hale e todos os outros
assassinos desumanizarem os Osage, mas estes homens e mulheres não foram
assassinados por serem Osage, foram assassinados pelo seu dinheiro. No final,
os assassinos não escaparam com nada a não ser dinheiro. Os Osage têm a sua
cultura extraordinária, agora em processo de renascimento e reconstrução.
E
Scorsese despede-se deixando um argumento para um possível filme sobre Jesus,
belíssimo texto a coroar esta longa conversa sobre a fé, medos e inspirações,
sempre presentes no cinema de um dos maiores realizadores do nosso tempo.
Mário
Beja Santos