Bénit le pays où tu gagnes ton pain
(loja
judaica no centro de Paris, 1er arrondissement, no ano 2000)
Naquela malfadada terra de gente loira e
amorfa, não poderia nunca passar despercebido.
(Urbano Tavares Rodrigues,
conto do volume «A Noite Roxa». A
malfadada terra é a Bélgica)
Ao
meu filho L.
À
muito estimada Luísa Schmidt, minha 'mestra' no Expresso, com quem aprendi
sobretudo o olhar jornalístico sobre o mundo que me rodeia.
BELGITUDES. PARTE I
Cheguei a Bruxelas, capital da Bélgica, em Julho de 2006. Depois de um
período de 7 anos a trabalhar como tratutor jurídico no Serviço de Tradução da
Comissão Europeia, no Luxemburgo. Actualmente, a designação mudou e
oficialmente sou funcionário da Direcção-Geral da Tradução. A chegada à Bélgica
não correspondeu às minha expectativas. A minha intenção era fazer crescer os
meus filhos num ambiente mais 'normal'. Os anos vividos no Grão-Ducado do
Luxemburgo permitiram-me compreender que o país e a sua capital correspondem ao
que muita gente chama «um bolha de prosperidade» em que nada corresponde ao
resto do mundo. Para melhor e mais eficiente. Conheci vários colegas cujos
filhos tiveram problemas ao serem confrontados com o mundo real quando, depois
de crescer no Luxemburgo, tinha escolhido uma cidade 'real' para fazerem estudo
universitários (até porque nesses anos, o Luxemburgo ainda não tinha
universidade).
Sou de Lisboa e pensava que uma grande cidade não me assustaria e
gostaria sem qualquer obstáculo. O mesmo não se passava com a minha mulher de
então que vinha de uma bem pequena cidade italiana, de não mais de 40 mil
habitantes.
Isso portanto quis assegurar aos meus dois filhos pequenos: crescer numa
terra mais normal, para se habituarem ao mundo tal como ele é.
Pessoalmente, gosto muito do Luxemburgo e defendo que deve ser escolhido
para trabalhar aos 35-45 anos, depois de se ter ganho 'calo' noutras partes do
mundo.
Então, para minha grande surpresa, passei os primeiros seis meses em
Bruxelas muito infeliz e com várias dificuldades de adaptação ao novo país e
sua capital.
Depois consegui compreender um pouco esta dificuldade. Um amigo e colega
holandês que já lá vivia aconselhou-me um ensaio, para mim essencial, de um
admirado intelectual flamengo sobre o país em que vivia. O título é «O
Labirinto Belga». O original é neerlandês é chama-se Het Belgische Labyrinth. Está traduzido em inglês e francês, e mais
línguas seguramente, e trata-se de um texto muito bem escrito e muito claro
sobre a realidade do país. Os motivos que levaram à sua formação oficial em
1830, os conflitos, ódios e concorrências entre as duas principais comunidades
linguística da Bélgica: os flamengos e os valões. Os portugueses emigrantes
costumam designar os primeiros como «os flamões»!! E não esqueçamos que há uma
terceira comunidade, a germanófila.
A Bélgica é, portanto, um país trilingue.
A única vez do meu período de residência em que se falou seriamente da
separação do país foi devido ao político da extrema-direita flamenga, Bart de
Wever, nos princípio dos anos 2010. Até promoveram um graça televisiva, num dia
1 de Abril (não das mentiras, em francês, mas poisson d'avril, peixe de abril) em que num telejornal anunciou que
havia sido decidido que a Bélgica, como país, tinha acabado. As reacções
choveram em catadupa e foi a única vez que os jornalistas, políticos e o povo
em geral se puseram a debater afincadamente o problema. E houve até habitantes
do país que puseram bandeiras na varanda, ou janelas, que defendiam a
permanência do país.
A estrutura administrativa prevê desde a reforma dos anos 80 uma
estrutura tripartida: 3 comunidades linguísticas, com o seu Parlamento e as
suas regras, mais a região-capital de Bruxelas, e mais um Parlamento Federal. O
que significa que é um país com uma população semelhante à de Portugal, mas com
4 parlamentos! Imagine-se o dinheiro público necessário para sustentar e fazer
funcionar estes organismos.
Tudo isto contribui para fazer da Bélgica um país estranho e complicado,
que não se entende à primeira e em pouco tempo, tais são as suas
especificidades...
Qualquer obra pública que envolve duas ou mais comunidades é um
quebra-cabeças.
Um exemplo: o elécrico até ao aeroporto, do centro de Bruxelas. Chegou ao
limite de Bruxelas-Capital mas não avança mais por oposição da comunidade
flamenga. O que deixa os habitantes de um serviço obviamente muito útil para
chegar ao aeroporto de forma rápida e sem trânsitos, sem o dito.
Com o ensaio referido do flamengo Van Istendael percebe-se uma série de
coisas, o que facilita o encontro de uma forma de viver no país. Em primeiro
lugar, a sua criação. Foi o resultado de um jogo diplomático que desejava obter
uma espécie de tampão, naquela região da Europa, para travar os desejos alemãs,
de um lado, e franceses, do outro. Uma coisa muito parecida com a nascença do
Grão-Ducado do Luxemburgo. Também destinado a ser um tampão.
Com a diferença, porém, que a realidade social ser muito diferente. Sendo
mais pequeno, e falar o mesmo dialecto, o Luxemburgo foi muito mais fácil de
unir. O território belga, com gente muito diferente e com línguas variadas foi
muito mais difícil de unir. Para dar só um exemplo, a região flamenga, onde se
fala a mesma língua, a um nível educado e urbano, tem mais de 20 dialectos
diferentes, entre região e região. As pessoas de uma aldeia não entendem os
moradores de outra aldeia a poucos quilómetros de distância! Coisa que para um
português é realmente um elemento de estranheza.
A Bélgica é um país diferente de Norte a Sul. Diferente de Holanda, que é
um país bastante mais homogéneo. A parte norte, a Flandres, que faz fronteira
com a Holanda é mais plana e tem costa. As praias têm areais enormes e cores
bonitas. Devem é ser observadas de costas para as horrendas torres construídas
em quase todas as pequenas terras. Com a excepção de uma, Le Coq sur Mer (De Haan), que manteve casas do século
XIX e XX e tem um urbanismo muito mais harmonioso. No Inverno, e também muitas
vezes no Verão, a praia não tem cheiro. O que é sempre algo estranho para um
português, habituado aos bons e inabituais aromas das praias portuguesas, Verão
ou Inverno. Muitas vezes fui de carro e de propósito à costa flamenga (cerca de
100km de Bruxelas), sobretudo no Inverno, bem agasalhado, e ficava sempre
desiludido com a ausência de cheiros. O norte flamengo tem também aquilo que eu
chamaria uma «slopiness» inglesa. Um
desleixo, um deixar-andar, desde que funcione, e nada de coisas requintadas.
O sul, a Valónia, é mais verde e ondeado de pequenas colinas. Tem o lugar
onde os belgas preferem ir passear, as Ardenas. Onde já há verdadeiras alturas,
se bem que modestas, e pequenas aldeias bem engraçadas. Faz fronteira coma
França e tem habitantes mais simpáticos e menos desconfiados do que a Flandres.
Numa aldeia perdida num passeio de bicicleta até à região este, fui acolhido
muito humanamente numa casa de gente humilde para carregar o telemóvel, onde
até me ofereceram de comer... Um gosto. Coisa que provavelmente nunca
aconteceria na região flamenga, onde o comportamento mais habitual é terem medo
dos outros, não por ser estrangeiro mas também por serem outros flamengos...
Ainda como curiosidade, as autoestradas nacionais são designadas pelos
números da convenção rodoviária europeia, começados pela letra E, a E40, a
E411, a E42. É, a meu conhecimento, o único país da União Europeia que o faz.
Digamos, ironicamente, que indica o país mais europeísta da UE.
Outra curiosidade engraçada são as adaptações que os portugueses que
escolheram a Bélgica para viver fazem do português falado em Portugal, sendo
uma língua latina como o francês.
Os batimentos, as tracassarias, as cartas das tramas, a caixa de maladia,
a pubela, o muro (parede), as flechas (para setas de indicação estradal), e a
que ganha o prémio (para mim), a prima da segurança! Sendo que a palavra
francesa é prime, para o prémio do
seguro.
A região do país que acabei por preferir é a região Leste do país. Aquela
onde se fala alemão, colada a este país e ao Norte do Grão-Ducado do
Luxemburgo. É uma zona verde e mais montanhosa, mais calma, com poucos turistas
e vistantes nacionais (todos preferem a famosa zona das Ardenas, sobretudo os
vizinhos holandeses, que nelas encontram as altitudes que consolam os habitantes
do seu «plat pays». As cidades mais conhecidas são Spa e Malmédy, ambas
povoadas de gente invulgarmente afável e simpática neste país, numa zona em que
se pode passear e observar belíssimas paisagens, com toda a calma e solidão (o
que não acontece nas referidas Ardenas, frequentemente muito cheias). Tem a
famosa floresta das Haute Fagnes, onde no Inverno, com neve, se pode mesmo
esquiar.
Tem o melhor projecto ecológico do país, eu que gosto de bicicletas.
Transformaram uma velha linha ferroviária em via ciclável e pedonal, de Aachen,
na Alemanha, a Troisvierges, no Norte do Luxemburgo. São mais de 100km nos
quais nunca se sobe muito porque as subidas fora feitas originalmente para
comboios. E a paisagem é de sonho. Fiz algumas vezes apanhar o comboio até
Verviers, com bicicleta lá dentro e depois entroncar a meio do caminho.
Chama-se a Vennbahn.
Também aconselho as pessoas que tenham de se deslocar repetidas vezes
entre Bruxelas e o Luxemburgo de comboio a fazerem-no via Liège, se tiverem
tempo. A paisagem é soberba e o percurso menos 'enguiçado'. Em 21 anos que vivi
no Luxemburgo e depois em Bruxelas, nunca esta linha, essencial também para os
eurodeputados que se deslocam mensalmente a Estrasburgo, teve um dia sem
problemas. Do lado belga, sempre em obras, sempre confusões, atrasos, etc.
Vê-se que a vontade política inexiste para resolver o absurdo desta situação.
E, para fazer 210km, são ainda necessárias 3 horas, em pleno ano de 2022, bem
no centro da Europa do Norte. Ongelooflijk
diriam os holandeses: inacreditável.
Um último detalhe interessante: quando se percorre a autoestrada que vai
entrar na Holanda, a Flandres é desorganizada, sloppy (à maneira inglesa) e depois da fronteira dá ideia que o
mundo muda. A limpeza e beleza das paisagens, devidamente cuidadas, casa bem
pintadas e mantidas, sinalização impecável, ordem e beleza, em suma. Entrando
na mais bela das regiões holandesas, a Zelândia (Zeeland), na base do nome do país nas antípodas.
Uma última nota para os portugueses que me lêem e terão provavelmente a
mesma sensação.
Quando se tem saudades do mar, que rodeia Portugal e muitas das suas
cidades e se vai à costa no Inverno, os grandes frios matam todo e qualquer
cheiro, coisa que para mim foi estranhíssima. Não 'cheira a praia' como na
Península Ibérica, todo o ano.
Luís Seabra
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