segunda-feira, 23 de junho de 2025

Belgitudes - Parte I.

 



          

                                     Bénit le pays où tu gagnes ton pain  

                       (loja judaica no centro de Paris, 1er arrondissement, no ano 2000)

 

                                 Naquela malfadada terra de gente loira e amorfa, não poderia nunca passar despercebido.

           (Urbano Tavares Rodrigues, conto do volume «A Noite Roxa». A malfadada terra é a Bélgica)

 


Ao meu filho L.

À muito estimada Luísa Schmidt, minha 'mestra' no Expresso, com quem aprendi sobretudo o olhar jornalístico sobre o mundo que me rodeia.

 

 

 

                                     BELGITUDES. PARTE I

 

Cheguei a Bruxelas, capital da Bélgica, em Julho de 2006. Depois de um período de 7 anos a trabalhar como tratutor jurídico no Serviço de Tradução da Comissão Europeia, no Luxemburgo. Actualmente, a designação mudou e oficialmente sou funcionário da Direcção-Geral da Tradução. A chegada à Bélgica não correspondeu às minha expectativas. A minha intenção era fazer crescer os meus filhos num ambiente mais 'normal'. Os anos vividos no Grão-Ducado do Luxemburgo permitiram-me compreender que o país e a sua capital correspondem ao que muita gente chama «um bolha de prosperidade» em que nada corresponde ao resto do mundo. Para melhor e mais eficiente. Conheci vários colegas cujos filhos tiveram problemas ao serem confrontados com o mundo real quando, depois de crescer no Luxemburgo, tinha escolhido uma cidade 'real' para fazerem estudo universitários (até porque nesses anos, o Luxemburgo ainda não tinha universidade).

 

Sou de Lisboa e pensava que uma grande cidade não me assustaria e gostaria sem qualquer obstáculo. O mesmo não se passava com a minha mulher de então que vinha de uma bem pequena cidade italiana, de não mais de 40 mil habitantes. 

Isso portanto quis assegurar aos meus dois filhos pequenos: crescer numa terra mais normal, para se habituarem ao mundo tal como ele é.

Pessoalmente, gosto muito do Luxemburgo e defendo que deve ser escolhido para trabalhar aos 35-45 anos, depois de se ter ganho 'calo' noutras partes do mundo.

 

Então, para minha grande surpresa, passei os primeiros seis meses em Bruxelas muito infeliz e com várias dificuldades de adaptação ao novo país e sua capital.

 

Depois consegui compreender um pouco esta dificuldade. Um amigo e colega holandês que já lá vivia aconselhou-me um ensaio, para mim essencial, de um admirado intelectual flamengo sobre o país em que vivia. O título é «O Labirinto Belga». O original é neerlandês é chama-se Het Belgische Labyrinth. Está traduzido em inglês e francês, e mais línguas seguramente, e trata-se de um texto muito bem escrito e muito claro sobre a realidade do país. Os motivos que levaram à sua formação oficial em 1830, os conflitos, ódios e concorrências entre as duas principais comunidades linguística da Bélgica: os flamengos e os valões. Os portugueses emigrantes costumam designar os primeiros como «os flamões»!! E não esqueçamos que há uma terceira comunidade, a germanófila.

A Bélgica é, portanto, um país trilingue.

A única vez do meu período de residência em que se falou seriamente da separação do país foi devido ao político da extrema-direita flamenga, Bart de Wever, nos princípio dos anos 2010. Até promoveram um graça televisiva, num dia 1 de Abril (não das mentiras, em francês, mas poisson d'avril, peixe de abril) em que num telejornal anunciou que havia sido decidido que a Bélgica, como país, tinha acabado. As reacções choveram em catadupa e foi a única vez que os jornalistas, políticos e o povo em geral se puseram a debater afincadamente o problema. E houve até habitantes do país que puseram bandeiras na varanda, ou janelas, que defendiam a permanência do país.

 

A estrutura administrativa prevê desde a reforma dos anos 80 uma estrutura tripartida: 3 comunidades linguísticas, com o seu Parlamento e as suas regras, mais a região-capital de Bruxelas, e mais um Parlamento Federal. O que significa que é um país com uma população semelhante à de Portugal, mas com 4 parlamentos! Imagine-se o dinheiro público necessário para sustentar e fazer funcionar estes organismos.

Tudo isto contribui para fazer da Bélgica um país estranho e complicado, que não se entende à primeira e em pouco tempo, tais são as suas especificidades...

Qualquer obra pública que envolve duas ou mais comunidades é um quebra-cabeças.

Um exemplo: o elécrico até ao aeroporto, do centro de Bruxelas. Chegou ao limite de Bruxelas-Capital mas não avança mais por oposição da comunidade flamenga. O que deixa os habitantes de um serviço obviamente muito útil para chegar ao aeroporto de forma rápida e sem trânsitos, sem o dito. 

 

Com o ensaio referido do flamengo Van Istendael percebe-se uma série de coisas, o que facilita o encontro de uma forma de viver no país. Em primeiro lugar, a sua criação. Foi o resultado de um jogo diplomático que desejava obter uma espécie de tampão, naquela região da Europa, para travar os desejos alemãs, de um lado, e franceses, do outro. Uma coisa muito parecida com a nascença do Grão-Ducado do Luxemburgo. Também destinado a ser um tampão.

Com a diferença, porém, que a realidade social ser muito diferente. Sendo mais pequeno, e falar o mesmo dialecto, o Luxemburgo foi muito mais fácil de unir. O território belga, com gente muito diferente e com línguas variadas foi muito mais difícil de unir. Para dar só um exemplo, a região flamenga, onde se fala a mesma língua, a um nível educado e urbano, tem mais de 20 dialectos diferentes, entre região e região. As pessoas de uma aldeia não entendem os moradores de outra aldeia a poucos quilómetros de distância! Coisa que para um português é realmente um elemento de estranheza.

A Bélgica é um país diferente de Norte a Sul. Diferente de Holanda, que é um país bastante mais homogéneo. A parte norte, a Flandres, que faz fronteira com a Holanda é mais plana e tem costa. As praias têm areais enormes e cores bonitas. Devem é ser observadas de costas para as horrendas torres construídas em quase todas as pequenas terras. Com a excepção de uma, Le Coq sur Mer (De Haan), que manteve casas do século XIX e XX e tem um urbanismo muito mais harmonioso. No Inverno, e também muitas vezes no Verão, a praia não tem cheiro. O que é sempre algo estranho para um português, habituado aos bons e inabituais aromas das praias portuguesas, Verão ou Inverno. Muitas vezes fui de carro e de propósito à costa flamenga (cerca de 100km de Bruxelas), sobretudo no Inverno, bem agasalhado, e ficava sempre desiludido com a ausência de cheiros. O norte flamengo tem também aquilo que eu chamaria uma «slopiness» inglesa. Um desleixo, um deixar-andar, desde que funcione, e nada de coisas requintadas.

 

O sul, a Valónia, é mais verde e ondeado de pequenas colinas. Tem o lugar onde os belgas preferem ir passear, as Ardenas. Onde já há verdadeiras alturas, se bem que modestas, e pequenas aldeias bem engraçadas. Faz fronteira coma França e tem habitantes mais simpáticos e menos desconfiados do que a Flandres. Numa aldeia perdida num passeio de bicicleta até à região este, fui acolhido muito humanamente numa casa de gente humilde para carregar o telemóvel, onde até me ofereceram de comer... Um gosto. Coisa que provavelmente nunca aconteceria na região flamenga, onde o comportamento mais habitual é terem medo dos outros, não por ser estrangeiro mas também por serem outros flamengos...

 

Ainda como curiosidade, as autoestradas nacionais são designadas pelos números da convenção rodoviária europeia, começados pela letra E, a E40, a E411, a E42. É, a meu conhecimento, o único país da União Europeia que o faz. Digamos, ironicamente, que indica o país mais europeísta da UE.

 

Outra curiosidade engraçada são as adaptações que os portugueses que escolheram a Bélgica para viver fazem do português falado em Portugal, sendo uma língua latina como o francês.

Os batimentos, as tracassarias, as cartas das tramas, a caixa de maladia, a pubela, o muro (parede), as flechas (para setas de indicação estradal), e a que ganha o prémio (para mim), a prima da segurança! Sendo que a palavra francesa é prime, para o prémio do seguro.

 

A região do país que acabei por preferir é a região Leste do país. Aquela onde se fala alemão, colada a este país e ao Norte do Grão-Ducado do Luxemburgo. É uma zona verde e mais montanhosa, mais calma, com poucos turistas e vistantes nacionais (todos preferem a famosa zona das Ardenas, sobretudo os vizinhos holandeses, que nelas encontram as altitudes que consolam os habitantes do seu «plat pays». As cidades mais conhecidas são Spa e Malmédy, ambas povoadas de gente invulgarmente afável e simpática neste país, numa zona em que se pode passear e observar belíssimas paisagens, com toda a calma e solidão (o que não acontece nas referidas Ardenas, frequentemente muito cheias). Tem a famosa floresta das Haute Fagnes, onde no Inverno, com neve, se pode mesmo esquiar. 

 

Tem o melhor projecto ecológico do país, eu que gosto de bicicletas. Transformaram uma velha linha ferroviária em via ciclável e pedonal, de Aachen, na Alemanha, a Troisvierges, no Norte do Luxemburgo. São mais de 100km nos quais nunca se sobe muito porque as subidas fora feitas originalmente para comboios. E a paisagem é de sonho. Fiz algumas vezes apanhar o comboio até Verviers, com bicicleta lá dentro e depois entroncar a meio do caminho. Chama-se a Vennbahn.

 

Também aconselho as pessoas que tenham de se deslocar repetidas vezes entre Bruxelas e o Luxemburgo de comboio a fazerem-no via Liège, se tiverem tempo. A paisagem é soberba e o percurso menos 'enguiçado'. Em 21 anos que vivi no Luxemburgo e depois em Bruxelas, nunca esta linha, essencial também para os eurodeputados que se deslocam mensalmente a Estrasburgo, teve um dia sem problemas. Do lado belga, sempre em obras, sempre confusões, atrasos, etc. Vê-se que a vontade política inexiste para resolver o absurdo desta situação. E, para fazer 210km, são ainda necessárias 3 horas, em pleno ano de 2022, bem no centro da Europa do Norte. Ongelooflijk diriam os holandeses: inacreditável.

 

Um último detalhe interessante: quando se percorre a autoestrada que vai entrar na Holanda, a Flandres é desorganizada, sloppy (à maneira inglesa) e depois da fronteira dá ideia que o mundo muda. A limpeza e beleza das paisagens, devidamente cuidadas, casa bem pintadas e mantidas, sinalização impecável, ordem e beleza, em suma. Entrando na mais bela das regiões holandesas, a Zelândia (Zeeland), na base do nome do país nas antípodas.  

 

Uma última nota para os portugueses que me lêem e terão provavelmente a mesma sensação.

Quando se tem saudades do mar, que rodeia Portugal e muitas das suas cidades e se vai à costa no Inverno, os grandes frios matam todo e qualquer cheiro, coisa que para mim foi estranhíssima. Não 'cheira a praia' como na Península Ibérica, todo o ano.

 

 

Luís Seabra

 



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