O jornalista e escritor João Céu e Silva a quem se
deve um conjunto de entrevistas de grande significado a autores como Saramago,
Lobo Antunes, Cunhal, Filomena Mónia e Manuel Alegre, entregou-se a
investigação sobre a importância do livro do general Spínola publicado em 22 de
fevereiro de 1974 e que contribuiu para mobilizar a opinião pública para o
reconhecimento que não havia solução militar para as guerras que Portugal
travava com guerrilheiros em Angola, Guiné e Moçambique. Investigação sobre a
história da maior operação editorial que tornou o livro de Spínola num
adjuvante de bomba-relógio, o golpe de Estado que levou à queda do regime em
pleno Convento do Carmo, na tarde de 25 de Abril – O General que Começou o
25 de Abril Dois Meses Antes dos Capitães, por João Céu e Silva,
Contraponto, 2024.
Uma operação editorial em que este envolvido
Paradela de Abreu, a equipa que trabalhou com o general para se chegar à versão
final do ensaio, homens de marketing e comunicação, como Carlos Eurico da
Costa, um ardiloso jogo de cintura político cuja figura pivot foi o general
Costa Gomes, incluiu o jornalista António Valdemar que colaborou com o editor
da Arcádia. O trabalho de Céu e Silva inclui um punhado de testemunhos de
diferentes intervenientes, caso de António Valdemar, que refere, por exemplo,
que a partir de novembro de 1973 teve em casa de Spínola uma série de reuniões
quando fazia a revisão das provas tipográficas do livro.
Havia igualmente que proteger a obra até vir a
público, evitar que chegasse ao conhecimento da PIDE/DGS, contar com a
descrição da tipografia, organizar o lançamento em tempo relâmpago, junto de
livrarias influentes, procurar o apoio de jornais, capitalizar a aura de
prestígio que gozava de Spínola. E o espantoso disto tudo é que a matéria
explosiva do livro era já um anacronismo, o que nos obriga a refletir sobre a
atmosfera da época em que o livro foi um rastilho, meses antes realizara-se no
Porto o 1º Congresso dos Combatentes do Ultramar e em finais de março de 1974
Marcello Caetano fora aplaudido por dezenas de milhares de portugueses no
Estádio José de Alvalade, onde o Sporting defrontava o Benfica.
Há igualmente que entender o quadro circunstancial
em que Spínola decidiu escrever um livro onde sabia de antemão que ao dizer que
não havia solução militar para a guerra colonial levantaria uma discussão
pública que minaria o já combalido Estado Novo. Spínola leu um livro de Franco
Nogueira intitulado As Crises e Os Homens, aqui eram cinzelados
os argumentos de um Portugal de Minho a Timor, sem a menor contestação,
indignou-se com tal prosa e anunciou que ia responder, começou aí o trabalho de
ajuntamento de apontamentos que envolveu o círculo privado de Spínola, caso de
José Blanco e Nunes Barata, mais tarde o major Pereira da Costa.
Céu e Silva dá conta das peripécias da negociação
para que a Arcádia ganhasse o contrato, inclusive Natália Correia chegou a ir a
Bissau numa operação de charme e simpatia. Determinado o dia de lançamento do
livro, desencadeia-se o rebuliço político, Marcello Caetano recebe o livro a
18, leu-o na noite de 20, convoca para a manhã de 22 Spínola e Costa Gomes,
diz-lhes abertamente que devem falar com o Presidente da República, não lhes
esconde que o caminho da revolução está aberto. Thomaz também recebera das mãos
de Spínola o seu exemplar na véspera do lançamento. O ministro da Defesa, Silva
Cunha, não lera o livro, mas autorizara a publicação com base no parecer de
Costa Gomes. O livro vende-se instantaneamente aos milhares, a PIDE não
intervém, os responsáveis do regime consideraram que deviam manter o livro à
venda, era o mal menor.
Spínola irá sobrelevar-se a partir do momento em que
Caetano insiste em lhe transferir o poder, Costa Gomes era o nome preferido dos
capitães, toma a decisão de optar pelo cargo de chefe de Estado-Maior General
das Forças Armadas. Céu e Silva vai ouvir protagonistas do 25 de Abril, caso de
Vasco Lourenço, não hesita em menorizar o papel do livro Portugal e o Futuro:
“O livro tem importância em vários aspetos, mas menor do que a que muitas vezes
lhe querem dar, como se o livro estivesse na origem do 25 de Abril e da
democratização.”
O livro-reportagem irá inquirir o papel desempenhado
pela PIDE/DGS, a construção da representação cénica de Spínola, a constituição
do seu círculo privado na Guiné e depois do 25 de Abril, indo um pouco atrás
passar-se-á em revista aqueles meses quentes vividos por Marcello Caetano ainda
em S. Bento, depois o holofote foca-se em Otelo Saraiva de Carvalho, como este
estratega aprendeu a lição do falhado levantamento de 16 de março. Mais
adiante, um dos biógrafos de Spínola, Luís Nuno Rodrigues, não hesita em dizer
que o livro abriu caminho para o 25 de Abril. “Ao contrário do que na altura se
julgou na imprensa nacional e internacional, o 25 de Abril não foi o golpe de
Spínola, mas do MFA. Tanto que, quando Marcello Caetano chama o general para se
render, Spínola tem o cuidado de telefonar para o Posto de Comano do MFA e
perguntar a Otelo se autoriza a receber o poder das mãos de Caetano. O 25 de
Abril não é arquitetado por Spínola nem pelos spinolistas, que já tinham
tentado um golpe a 16 de março. Agora, sem dúvida, a publicação do livro é uma
pedrada no charco, e sem o Portugal e o Futuro provavelmente o 25 de
Abril não teria acontecido tão depressa.” O historiador não esconde que Spínola
acreditava na viabilidade do modelo federalista.
O nome de Spínola e o seu livro justapõem-se ao 25
de Abril, as teses do livro, rapidamente anacrónicas, provocaram um terramoto
político e abriram um mar de discussão sobre autodeterminações, matéria até
então tratada como heresia ou falta de patriotismo. Neste cortejo de
depoimentos também não se esquece o nome de empresários nacionais que
inicialmente aplaudiram o livro, mesmo que posteriormente se tenham
incompatibilizado com as teses e o comportamento político de Spínola. Em jeito
de conclusão, Céu e Silva recorda a bomba que foi a afirmação de Spínola de que
não era viável uma vitória exclusivamente militar, reduziu praticamente a
fanicos os apoios políticos a Marcello Caetano, muitos militares até então
indecisos vieram apoiar o MFA e pela primeira vez desde 1961 alastrou a
perceção de que havia uma alternativa política para aquele tão desgastante
conflito. Spínola nunca teve o propósito de escrever um livro para abrir as
portas a uma revolução, mas foi aí que vieram desembocar as teses do livro de
Spínola, aparentemente tão exequíveis e moldáveis aos sentimentos mais
populares.
Um belo trabalho de investigação, a ler sem falta.
Mário Beja Santos
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