Trata-se de um ensaio feito por um jornalista
credenciado, trabalho mais do que pertinente, crónica de um desastre anunciado,
uma viagem com muitos testemunhos, não se escondem os riscos que impendem sobre
a liberdade de expressão, mas o autor manifesta-se esperançoso: “Numa altura em
que os jornais parecem moribundos, desacreditados e o saco de pancada onde se
descarregam frustrações sociais, espero que este livro possa de alguma forma
dignificar a luta de todos os jornalistas que resistem e que continuam a
acreditar na profissão, mesmo ameaçados quase diariamente de despedimento. A
nossa luta. Coragem, camaradas.” E entramos na leitura, empolgante e
movimentada da vida dos jornais, o título do ensaio é O Jornal e o seu
autor, Rui Frias, é jornalista, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025.
Antes de falarmos das redações que estão à míngua,
importa passar em revista que já houve o sonho de oferecer jornais grátis, na
expetativa de serem pagos pela publicidade, tudo falhou clamorosamente, o
digital, com os jornais online e as redes sociais fizeram secar a venda de
jornais, estes continuam embaraçados à procura do melhor modelo de negócio que
permita assegurar jornais em papel, introduzindo no negócio livros de cultura
variada e numa caterva de iniciativas. Mas os números de jornais vendidos diariamente
em Portugal são eloquentes: de 315.139 exemplares em 2011 para 108.500 em 2021.
O que se passou com o Covid também ajudou à festa, mas naqueles dez anos
desapareceram jornais e jornalistas. E continua premente a questão da
reinvenção do jornalismo. Rui Frias escreve e ninguém o contesta nesta paisagem
desoladora: “Os perigos são óbvios e saltam à vista: crescimento da
desinformação, do populismo e de uma certa bipolarização social cada vez mais
extremada. E tornam mais necessária do que nunca a intermediação do jornalismo,
numa altura em que, paradoxalmente, este se encontra mais fragilizado.
Sobretudo entre os jornais, outrora território nacional da grande reportagem,
do jornalismo de investigação e das notícias incómodas para os poderes. As redações
são debilitadas. Perderam sangue, perderam músculo, perderam massa cinzenta.
Das centenas de jornalistas divididos por secções, gabinetes de reportagem,
equipas de investigação, especialistas em política, saúde, educação, ciência e
ambiente, críticos de arte, literatura e gastronomia que povoaram as redações
até ao virar do século, sobram agora na maioria delas, ‘pequenas equipas
multidisciplinares’ – como passaram a chamar os gestores -, com gente obrigada
a dividir-se entre alhos e bugalhos ao longo do dia, às vezes na mesma hora,
para manter a máquina da atualidade a funcionar na voragem do imediatismo
digital. Com isso, perde-se, inevitavelmente o rigor, a intermediação, a
verdade. E apressa-se o caminho para a morte.” E desfilam os testemunhos, desde
os tempos em que os jornalistas não tinham cursos, quando a redação era um
ambiente extraordinário. Não são esquecidos os choques tecnológicos, lembra-se
a máquina de escrever e a tipografia, as secções regionais e a Sociedade,
lembra-se a importância da fundação do Expresso como Público,
viragens de significado como também acontecera com o Diário de Notícias,
em 1864, marcando a entrada na era do jornalismo industrial. Recorda-se os
entusiasmos da década de 1980, a era da liberalização do setor, os novos títulos,
a atração pelos assuntos europeus, a proliferação dos enviados especiais e, de
repente, o choque com a informação na hora, a crescente capilaridade na
internet, o aparecimento da redação digital dos jornais, até a ilusão de que se
poderia replicar no digital o modelo de negócio que suportara o jornal em
papel. Tudo mudou: “Em pouco mais de dez anos, os jornais feitos com jornalismo
de rua, reportagem no terreno, contactos diretos, relacionamento com as fontes
e tempo para cruzar informação deram lugar a sites alimentados ao minuto por
notícias de agências acabadas de chegar, soundbytes apanhados nas
televisões e fait-divers com potencial para viralizar nas redes sociais
replicados há exaustão por todos os órgãos de media, sem tempo para se zelar
minimamente pela veracidade dos factos.” É o triunfo do tabloide, entretanto
acentua-se a crise financeira, já tinham morrido os jornais vespertinos, os
despedimentos coletivos nunca mais pararam, os jornalistas tornaram-se
precários, os jornalistas procuraram mudar de profissão (num estudo do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa sobre os
jornalistas, em 2021, dos cerca de 800 jornalistas inquiridos, metade ganhavam
menos de mil euros).
O relacionamento do jornalista com o mundo faz-se,
regra geral, com recurso à prótese digital. “Se os jornalistas nas redações são
hoje metade (ou nem isso) do que eram no final do século passado, agora cada
jornalista tem pelo menos dois monitores na sua secretária, dividindo-se entre
plataformas, sites, agências, cada vez mais amarrado à cadeira e de olhos
fixados nos ecrãs.”
Rui Frias não esquece de fazer a apologia do
jornalismo investigativo, lembra o caso Watergate, hoje em dia uma raridade,
conta mais histórias de camaradas que procurar medrar no jornalismo de
investigação, a necessidade de ter tempo para escutar as fontes, para conviver
com as pessoas. E chega a hora de abandonar o ritmo das penúrias e vocações que
sucumbem para acende o facho da esperança, tocar a trombeta da inovação em
tempos de crise, seguem-se depoimentos de quem se lançou na aventura, caso dos
jornais locais, projetos a evoluir para o jornalismo de investigação, fazendo
ganhar a confiança dos leitores usando da transparência, trocando a velocidade
pela profundidade, fazendo recurso de media multiplataformas (papel, áudio,
vídeo, redes sociais…) usando podcasts ativos. Como alguém observa ao autor: “O
jornalismo é cada vez mais um serviço em constante mutação de produtos. E o que
nós tentamos é ter um serviço completo, que cruze variadas dimensões. Os
jornais ganham com a multiplicidade de plataformas para chegar aos leitores, ou
ouvintes, ou o que seja. Precisamos de ter uma componente 360 graus, para que
as pessoas que estão do outro lado possam chegar até nós da forma que mais
gostam.”
É nesta constante luta pela sobrevivência que ganha
realce a inovação. Diga-se o que se disser, a missão dos jornalistas está mais
atual do que nunca, a despeito dos despedimentos e da falta de salários. E
assim o autor se despede: “Continuo a acreditar que o bom jornalismo pode mudar
o mundo.”
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos
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