sábado, 17 de dezembro de 2011

O que eu diria a Deus.

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....Ao longo dos anos, as tentativas para encontrar provas da Tua existência não resultaram. Sei que é absurdo interpelar-Te, mas é isso que vou fazer, até porque este tipo de exercício é aprovado nas Universidades. No chamado contrafactual, os académicos interrogam-se como seriam as coisas se, em vez de ser como são, fossem outras. Eis alguns exemplos: o que se teria passado se Hitler tivesse ganho a II Grande Guerra, se em 1968 Salazar não tivesse caído da cadeira ou se, no século XIX, o nosso país tivesse exibido taxas de alfabetização iguais às europeias.
Imaginemos que Deus existe e que, durante as minhas caminhadas terapêuticas, eu O encontrava no Jardim da Estrela. À cabeça das minhas interrogações estaria a crise mundial. Como sabemos, tudo começou com a bancarrota dos Lehman Brothers, nos EUA, quando o universo tropeçou em credit default swaps e em subprimes, tendo-se espatifado.
De bancos, nada percebo. É para isso, pensava, que existiam banqueiros, pessoas em quem podia depositar a minha confiança. Imaginei  tratar-se de gente responsável, coisa que a realidade tem vindo a demonstrar não ser verdade. Enquanto, nos EUA, rebentava o escândalo Madoff, por cá sucediam-se, em cadeia, os do Banco Português de Negócios, do Banco Privado e do BCP. Não tendo conta em qualquer destes estabelecimentos, notei apenas que o banqueiro americano fora expeditamente julgado e preso, enquanto os responsáveis pelos bancos nacionais por aí andavam, e andam, à solta. Ora, sendo Tu Omnisciente, como deixaste que isto acontecesse?
Ando baralhada. Se nem os governantes, nem os banqueiros nem Tu me podem garantir que o dinheiro que consegui amealhar ao longo dos anos está seguro, não sei que fazer. Claro que o podia legalmente transferir para o país da União Europeia onde, desde 1971, vou todos os anos, e que, entre outra vantagens, tem a de não usar euros, mas sendo reduzido o meu tesouro não sei se valerá a pena. Seja como for, gostava que me desses um sinal de que vale a pena trabalhar, sabendo que, no fim, ninguém me rouba o que tiver poupado.
 Se eu, que faço parte da elite nacional, me sinto insegura, como  hão-de estar os milhões de compatriotas com salários que não atingem os 1.000 Euros? O destino desta gente não Te preocupa? Não amaldiçoas os políticos que fizeram do governo um trampolim para cargos chorudos em empresas privadas, onde nada mais fazem do que traficar influências? Não Te indigna o estado em que os últimos governantes deixaram o meu país?
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Dorothea Lange, Man in Dust Storm, New Mexico, 1935.
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Foi ao escrever este parágrafo que me lembrei de recorrer aos Evangelhos, a fim de relembrar o que estes dizem sobre o dinheiro. Vejamos o que nos diz o Evangelho de S. Mateus (6:24): «Ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou há-de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro». Até aqui, estou de acordo. Note-se contudo o que se segue: «Não podeis servir a Deus e à riqueza». Esta frase deixa os ricos em péssimos lençóis. Compreendo a razão por que aparece – o Cristianismo era inicialmente a religião dos pobres – mas não a aceito. Não sou rica, mas não é por serem ricos que desprezo as pessoas. Se há ricos, muitos, que abomino, há outros, menos, que admiro.
Com a conversão do Imperador Constantino, a Igreja Católica, Apostólica, Romana mudou. Os Papas logo começaram a interpretar os Evangelhos de forma diversa: desde que fruto do trabalho, a riqueza passou a ser considerada legítima. O problema residia nos banqueiros, cujo trabalho parecia ser nulo. Ter dinheiro, emprestá-lo e sentar-se ao lado de um «banco» – daí a designação – aguardando que o credor pagasse a quantia que levara, acrescida de juros, surgia como uma actividade condenável.
Começava um longo debate sobre a legitimidade da usura. Ao princípio, a lei canónica rotulou o empréstimo com juros um acto ilícito. Pertencendo o tempo a Deus, quem emprestasse dinheiro era um pecador, uma vez que se arrogava um poder que apenas a Ti pertencia. No cadeirão celestial, Tu mantinhas-te calado, enquanto, cá em baixo, os Teus discípulos se defrontavam com a tarefa de continuar a discutir até que ponto era possível emprestar dinheiro, a juros, sem pecar. Até que, na Summa Theologica, S. Tomás de Aquino concluiu que, desde que o juro fosse o mais baixo possível, os empréstimos se poderiam fazer sem que os banqueiros fossem parar ao Inferno.
Será que interpreto bem a Tua doutrina se pensar, como S. Tomás, que o juro tem de ser razoável? Será que posso concluir que os grupos financeiros, que estão a extorquir juros altos aos países frágeis, são pecaminosos? Ou será que, ao delapidaram muito do que tinham pedido emprestado, estes se tornaram cúmplices?
Deixemos a pergunta sem resposta, para ver o que diz o Teu Sermão da Montanha. Nele, há coisas de que gosto e outras que abomino. Concentro-me nas últimas. A que mais me irrita é a frase: «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra». Eu não sou mansa, a minha mãe não o era, muito menos a minha avó. Aprendi desde cedo que, perante as injustiças do mundo, a nossa obrigação é a revolta. Que seria do mundo sem o contributo de Galileu, de Orwell e de Rosa Parks?
Como saberás, no final da adolescência, aderi à tradição humanista, racionalista e empírica, afastando-me da Tua fé. Como Eva, desejei comer o fruto da Sabedoria. Claro que sabia ter a serpente advertido que, no dia em que provasse a maçã, se lhe abririam os olhos «e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal» (Génesis, 3). Era isso mesmo que  pretendia. Considerando Eva ser o fruto «precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele a seu marido, que estava junto dela, e ele também o comeu». Esta passagem bíblica revela, sem margem para dúvidas, a superioridade da mulher sobre o pateta que andava a deambular pelos campos elísios como uma criança. De uma assentada, Eva minou o monopólio que Te permitia declarar onde estava o Bem e o Mal. Na minha opinião, em vez de ser punida, devia ter recebido uma medalha, uma vez que nos deu a possibilidade de dirigirmos a vida segundo os nossos princípios.
Já que estamos a falar da Queda Original, há outra pergunta que gostava de Te fazer. Lembras-te da passagem em que escolhes as punições a dar ao homem e à mulher? Ao primeiro, condenaste-o a ter de ganhar o pão com o suor do seu rosto. Nada que me choque, o que já não sucede no caso de Eva. Além de afirmar que doravante as mulheres procurariam, ainda por cima com paixão, um marido, a quem ficariam sujeitas, acrescentas: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores».


Paula Rego, Natividade, 2002.
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Faço parte da última geração a quem tal punição se aplicou. Em 1963 e em 1964, quando tive os meus dois filhos, frequentei, com o meu habitual zelo, aulas de respiração, supostamente destinadas a conduzir a um «parto sem dor», o que não se verificou. Tendo em conta a evolução da tecnologia médica, gostaria de saber qual a Tua posição no que respeita a epidural, a injecção que liberta a mulher das dores do parto. Faço-Te esta pergunta, porque estranho que, sendo o Teu castigo expresso em termos tão claros - «os teus filhos hão-de nascer entre dores» - o Vaticano nada diga sobre o assunto. É estranho que, enquanto proíbem, com uma obsessão maníaca, o uso da pílula anticoncepcional (assunto, note-se, sobre o qual a Bíblia nada diz), os Teus representantes não se pronunciem sobre o uso da epidural.
Como já expliquei, não pertenço aos «pobres de espírito», mas aos que «têm fome e sede de justiça», pelo que considero que Te deverias exprimir sobre o que se passa no meu país. Tantas e tais são as perguntas que gostaria de Te fazer que - Mark Twain é quem compreendeu Eva – acabei por me perder outra vez.
Retomo o fio à meada. Para alguns comentadores, seriam «os mercados» a impor os actuais cortes salariais, o aumento de desempregados e o decréscimo do nosso nível de vida. Depois da década gloriosa que se seguiu à entrada para a União Europeia, Portugal corre o risco de se tornar, mais uma vez, num país onde há gente a passar fome. No meio das notícias sobre os zeros que se acrescentam às dívidas bancárias, dos processos judiciais que terminam em prescrições, dos escândalos relativos à corrupção, é fácil esquecer as mães que não têm comida para os filhos, os pais que deambulam pelos subúrbios à procura de trabalho, os velhos que se amontoam nos lares. Alguém, algures, há-de ser responsável. Não, não é «o mercado», uma entidade mítica, mas os indivíduos, com nome, rosto e ideias, que regulam o mundo. Melhor do que eu, Tu és capaz de os identificar. Ao baterem à Tua porta, não os deixes entrar.
        
                   Maria Filomena Mónica

3 comentários:

  1. As dúvidas de Filomena Mónica são naturais.., porque não fala com Padres..., p. exp. os da Opus Dei que têm uma grande cultura..., e são coerentes, não tendo vergonha de se identificarem no meio da multidão anónima, contrariamante a outros, que nem se percebem o que são..., talvez porque são gente de pouca fé e ainda sintam o estigma que os republicanos em 1910 lhes lançaram!

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  2. Gostei imenso de ler. Parabéns. Quis partilhar este post no meu FB mas não consegui. Há restrições? Ou sou nabo? :)

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