sábado, 5 de maio de 2012

Tia Agatha, por parte da Mãe.

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Depois de Shakespeare, Agatha Christie é o autor individual mais publicado de todos os tempos, com mais de quatro mil milhões de exemplares vendidos, romances, recolhas de novelas policiais, peças de teatro, etc. É ainda o autor mais traduzido de sempre, com obras em mais de cem línguas. Dos anos 60 para cá surgiu uma boa meia dúzia de novas “grandes senhoras do crime”, todas com fama de imperatrizes, mas Agatha, com a patine duma época, conserva um encanto que o êxito das séries televisivas de Poirot e Miss Marple tem consolidado.





 Acabo de ler a sua autobiografia, publicada postumamente em 1977, que nos foi agora servida em medíocre, para não dizer lastimosa, tradução portuguesa pela editora ASA. Escrita já em idade avançada da autora, bastante amnésica em relação a datas e acontecimentos desagradáveis, Uma Autobiografia é, todavia, um livro que se lê com grande prazer e que contém, surprise, muitas páginas divertidas e episódios hilariantes, como o namoro com o seu segundo marido, Max Mallowan. Uma revelação quiçá bem doseada do “lado humano” da grande dama, mas apimentada por numerosas observações e confissões inesperadas. Pessoalmente, esta leitura teve algo de epifânico, à falta de melhor termo, dado o modo como me desvendou a vida ignota de uma personagem que me foi quase tão próxima como um membro da família, uma tia de vida enigmática. Já explico.   




A maior fã de Agatha Christie que jamais conheci foi a minha mãe, que, se fosse viva, faria 100 anos neste 7 de Maio. Ao longo de três ou quatro décadas, ela leu e releu toda a obra da mestra do policial disponível em português, para cima de 50 livros, obra que colocava acima da de qualquer outro cultor do mesmo género. Infatigável consumidora de crime (salvo seja), a minha mãe leu também dezenas de outros autores, ao tempo publicados em Portugal em edições de bolso mal amanhadas e geralmente mal traduzidas, mas com capas sugestivas de bons ilustradores portugueses. Em nossa casa tropeçava-se nesses volumezinhos coloridos das colecções Vampiro, Xis e Escaravelho de Ouro, para já não falar do infalível Mistério Magazine de Ellery Queen, mensalmente publicado no Brasil. Entre muitos outros, Raymond Chandler, Georges Simenon, Dashiel Hammett, Dorothy Sayers, Rex Stout, Mickey Spillane, S. S. Van Dine, John Dickson Carr, Edgar Wallace, James Hadley Chase, A. A. Fair e seu ortónimo Erle Stanley Gardner foram nomes mágicos que decorei na infância e adolescência, antes mesmo de qualquer incursão minha nesse género literário. Numa casa transmontana católica dos anos 50-60, estes nomes rasgavam perigosos horizontes cosmopolitas de fantasia e mistério.





O meu pai, engenheiro do Estado, era singularmente dado a leituras pias. Em casa, obrigava-nos a rezar o terço diário e, para gáudio dos mais trocistas, recitava o Breviário a duas vozes. Espantou-me quando nos anos 60 reciclou o seu inglês para poder ler The Ascent to Truth, do trapista místico Thomas Merton, e o Book of Meditations and Prayers de Santo Anselmo de Cantuária. Permaneceu toda a vida um indefectível refractário ao romance policial e às belas letras em geral (a mais séria divergência de um casal muito unido), mas alguns de nós, os filhos, fomos inevitavelmente contaminados pela predilecção criminológica da nossa mãe, sobretudo quando ela nos tentou dissuadir disso, sob o para nós fraquíssimo pretexto da idade. Quando me viu, demasiado cedo, a farejar os volumes faiscantes da colecção Vampiro, orientou-me logo para as aventuras mais inofensivas de Sherlock Holmes. Comecei, assim, obedientemente, pela “Liga dos ruivos” e outros contos jurássicos de Conan Doyle, que durante um tempo me mantiveram a uma distância sanitária da insidiosa colecção de bolso editada pela Livros do Brasil.




Ainda hoje me maravilho quando penso que esta modelar mãe de sete filhos, educada desde os oito anos em Tuy e Vila Nova de Gaia pelas rigorosas Doroteias e toda a vida militante exemplar de organizações de apostolado católico, encontrava o seu grande escape das labutas e agruras diárias em viagens literárias pelo mundo violento e lamacento do crime – quando não optava pelos mais “sérios” Graham Greene, Chesterton, Claudel, Hervé Bazin, Eça de Queirós ou, para chorar a rir, P. G. Wodehouse, Pierre Daninos ou Wenceslao Fernandez Flores. Não sei se os conselheiros espirituais da minha mãe – que não deviam conhecer em pormenor a literatura policial de Mickey Spillane – alguma vez a interpelaram sobre esta matéria com eventuais intuitos censórios, mas, se o fizeram, foi completamente em vão. Graças a Deus. Se eles pudessem sequer imaginar que além de ser fã de Poirot, Maigret e Perry Mason, ela sabia de cor as letras das canções de Edith Piaff, Jacques Brel e Barbara, o assunto poderia ter chegado ao bispo ou mesmo a Roma...

José Barreto

2 comentários:

  1. Belo texto. Sobre Agatha Christie (e o policial "tradicional" em geral) a opinião dos leitores inteligentes e despretenciosos é infalivelmente mais acertada que a dos intelectuais e literatos.

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  2. Gostei imenso deste texto, da bela foto da escritora e de visualizar as capas dos livros.Obrigada José Barreto por partilhar estas memórias e que sorte a sua por as ter.Gosto muito dos livros da Agatha Christie, todavia só me apercebi da sua profunda humanidade a partir de uma certa idade. A maturidade(!) fez-me bem.O homem do fato castanho e um livro portentoso.

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