sexta-feira, 15 de junho de 2012

Sangue na água.

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Ervin Zádor, Melbourne, 1956

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A Hungria tinha duas especialidades: o pólo aquático e o repatriamento de restos mortais. No pólo, eram os melhores do mundo. No regresso de cadáveres de nomeada, também, no que foram ajudados pelo facto de, ao longo da sua História, as circunstâncias terem forçado ao exílio vários dos heróis nacionais.
O corpo de Lajos Kossuth, líder da revolução de 1848 na Hungria, regressou a Budapeste em 1894 depois da sua morte em Turim, após quarenta e quatro anos no exílio. Em 1900, foi a vez do corpo de Mihály Munkácsy, o mais famoso pintor húngaro do século XIX, viajar de Paris, onde viveu toda a vida de adulto, até Budapeste. Em 1906, regressou o Príncipe Ferenc Rákósy II, líder da guerra da independência (1703-1711), que falecera na Turquia há uns consideráveis cento e quarenta e cinco anos. Pela vetustez, teve direito a um tour pela  Hungria, que durou três semanas. Em 1988, os restos mortais de Béla Bártok foram exumados no cemitério Ferncliff, em Nova Iorque, para que pudessem retornar a casa. Disse-se então que, embora Bártok nunca mencionasse a vontade de finalmente descansar em Budapeste, para os húngaros é quase uma inevitabilidade repatriar post-mortem os seus heróis.
Sendo assim, é provável que o pólista aquático (será assim que se diz?) Ervin Zádor, falecido no passado dia 28 de Abril, nos Estados Unidos, também regresse a casa.


Ervin Zádor (1934-2012). Com a fotografia de 1956


Quem é Ervin Zádor, perguntarão os leitores? Pois bem, é o herói de Melbourne. A vítima da sanha soviética cujo sangue manchou a piscina olímpica. O jogador de pólo aquático que, nos Jogos de 1956, defendia a honra pátria contra a União Soviética, urso cuja gigantesca pata acabara de esmagar a revolução húngara. A imagem do seu rosto ensaguentado percorreu o mundo. O agressor, Valentin Prokopov, ficou para sempre com o estigma da infâmia.
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Valentin Prokopov

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Ora, como quase sempre, a história é um pouco diferente da lenda. E, acreditamo-lo, neste caso a realidade é mais interessante.
A Hungria tinha a melhor equipa de pólo aquático do mundo. A Federação soviética, invejosa dos métodos do parceiro do Pacto de Varsóvia, impôs a presença dos seus jogadores junto dos húngaros para um estágio destinado a aprender todos os seus segredos de treino e de jogo. Copiaram tudo e passaram a fazer exatamente o mesmo. Como se não bastasse, meses antes dos Jogos há uma partida “amigável” em Moscovo, ganha pelos russos com a prestimosa ajuda de um árbitro local.
Quando se deu a sublevação em Budapeste, os jogadores húngaros já se encontravam concentrados. Isolados num centro de estágio, nem sequer lhes era dado conhecimento pormenorizado do que se estava a passar. Partiram para a Austrália, numa viagem de três semanas que começou na Jugoslávia, tendo a vaga noção de que Imre Nágy tinha conseguido o acordo de Moscovo para continuar a dirigir os destinos do país.



Budapeste, 1956. Estaline deitado por terra
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O choque foi terrível quando chegaram a Melbourne em 20 de Novembro e o único membro da comitiva que arranhava o inglês comprou um jornal, através do qual ficaram a saber que os tanques russos tinham esmagado a revolução dez dias antes. Ervin Zádor, naquele preciso momento, afirmou perante todos que não regressaria à Hungria. Os dirigentes da comitiva poderiam ter prescindido dele. Mas Zádor era a estrela da equipa. Além do mais, ainda não tinham bem a certeza do desenlace da situação húngara. E Zádor participou nos Jogos.
A cerimónia de abertura foi no dia 22. Nesse mesmo dia, Imre Nágy saiu da embaixada jugoslava onde estava refugiado, porque o novo líder, Janos Kádar, garantira a sua segurança. Não cumpriu a palavra: ao sair da embaixada. Nágy foi  preso de imediato e posteriormente levado para a União Soviética, onde foi julgado e executado em 1958.
Entretanto, na Austrália a equipa técnica e os jogadores reuniram-se. Estavam preocupados porque, apesar de serem considerados a melhor equipa do mundo, a sua posição era muito difícil. Por um lado, há um mês que não punham os pés dentro de uma piscina. Todas as outras equipas estariam, seguramente, em muito melhor forma do que eles. Por outro lado, fragilizados psicologicamente, precisavam de encontrar forças para se superar. Também estavam divididos: uns regressariam, outros já se imaginavam no exílio. Resolveram esquecer tudo o mais e fazer o possível e o impossível para defender a honra da pátria.
Decidiram, então, que só teriam hipóteses se revolucionassem a sua tática de jogo. A equipa mais ofensiva do mundo jogaria da forma mais defensiva que alguma vez se vira numa piscina. Passariam a marcar homem a homem todos os adversários menos um, o mais fraco rematador. Todos os adversários que tivessem a bola seriam marcados nessa ocasião por dois húngaros. Inevitavelmente, a bola acabaria nas mãos do jogador sem marcação que teria em cima de si toda a responsabilidade de decidir do destino da equipa. Pela frente encontraria então o melhor guarda-redes do mundo.
Esta tática deixou as equipas adversárias perplexas e sem reação. Foram avançando até que chegou o jogo das meias-finais com a União Soviética. A lenda diz que foi uma batalha campal, em que os húngaros se quiseram vingar e o russos pretenderam castigar a traição ao comunismo dos seus camaradas da véspera. Mas não foi nada assim.
Muito friamente, os húngaros decidiram que a melhor maneira de vencer adversários que seguiam as suas táticas e os seus métodos de treino e que, ainda por cima, se encontravam melhor preparados e mais frescos, teria de assentar num único método: a provocação. Segundo disse Zádor: “Concluímos que, se eles ficassem zangados, iam começar a lutar, se lutassem não jogariam bem, se não jogassem bem nós ganharíamos o jogo e se ganhássemos o jogo ganharíamos a medalha de ouro.”
E o plano resultou. Desde o início que, perante uma multidão de imigrantes húngaros e de australianos indignados e com um árbitro sueco complacente, iniciaram as provocações em russo, nas quais os húngaros eram versados pois tinham sido forçados a aprender a língua na escola. Diz Zádor que passaram o jogo a dizer: “Reles canalhas, Vieram deitar bombas no nosso país!” Não parecem imprecações muito imaginativas... É certo que Zádor também acrescentou que diziam qualquer coisa sobre os próprios jogadores e suas famílias... Arriscamos a alvitrar que também diriam alguma coisa em particular sobre as profissões das mães dos jogadores russos.
A verdade é que, logo no primeiro minuto, um russo reagiu e foi excluído. Havia briga acima da água e abaixo da água, confirmou Zádor. Em pouco tempo, os húngaros, com a sua tática defensiva, venciam por 4-0, perante russos cada vez mais perturbados. Quando faltavam dois minutos, o treinador ordenou a Zádor que marcasse o melhor jogador russo. “Chamei-lhe vencido e que a mãe dele também era uma vencida e tudo o mais.” Julgamos que a essência da coisa terá estado no “tudo o mais”, porque  Prokopov perdeu a cabeça e deu-lhe um murro na cara que o pôs fora do jogo e fora da final em que a Hungria venceu a Jugoslávia.
Como o sobrolho sangrava e as fotografias correram mundo, criou-se a lenda da piscina maculada pelo sangue dos inocentes húngaros. Aquele ficou como o jogo do “Sangue na Água”. Mas a realidade é bem diferente. Basta recordar que o único murro que as câmaras de televisão registaram foi dado por um húngaro, o capitão de equipa Dezsö Gyarmaty. Mas o que ficou para a História foi outra estória.
Ervin Zádor cumpriu a palavra. Um dos melhores jogadores do mundo refugiou-se nos Estados Unidos onde, ao tempo, não havia polo aquático. Dedicou-se à profissão de treinador de natação. Teve um aluno chamado … Mark Spitz.
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Mark Spitz, Munique, 1972






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Em 2006, Quentin Tarantino produziu o filme “Freedom´s Fury” que conta o episódio. O filme é narrado por Mark Spitz. No mesmo ano, os húngaros fizeram o filme Szabaság, szerelem, que juntava o pólo aquático e a revolução de 1956. O título significa “Liberdade, Amor”, verso sem dúvida muito original de Sándor Petofi, poeta nacional húngaro e mártir da revolução de 1848. Morreu na batalha de Segesvár, contra o exército imperial russo. Como o seu corpo nunca foi encontrado, não pôde ter as mesmas homenagens dos colegas repatriados post mortem. Assim se quebram as tradições…



José Luís Moura Jacinto

1 comentário:

  1. Hoje os meus alunos fizeram teste em geografia (5 min antes de vos escrever).
    Agora, só, na sala de aula vazia, lamento as minhas aulas não poderem ser como este vosso post

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