domingo, 3 de junho de 2012

Quando Ferro foi entrevistar Hitler.

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Em Novembro de 1930 o repórter internacional do Diário de Notícias António Ferro, que três anos antes tinha publicado o livro Viagem à Volta das Ditaduras, deslocou-se a Munique para entrevistar Hitler. O futuro condutor da Alemanha era então o líder de um partido de oposição chamado Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores. Justificava-se o interesse do aventureiro repórter português, ou de outro de qualquer nacionalidade, pela entrevista? Justificava-se. Capitalizando a grande insatisfação popular provocada pela depressão iniciada em 1929, os nazis tinham finalmente saído do gueto político. Em Setembro de 1930, dois meses antes de Ferro partir para a Alemanha, o partido nazi tinha-se tornado o segundo maior do Reichstag, elevando a sua votação de 2,6% para 18,3 %. Dois anos depois, em 1932, duplicariam essa percentagem de votos, ficando a dois passos do poder. Não se pode negar o grande sentido de oportunidade de Ferro. Já tinha entrevistado Mussolini duas vezes, em 1923 e 1926, bem como Primo de Rivera, e ambicionava juntar o candidato a ditador alemão ao seu palmarés. Em 1932 juntaria Salazar ao rol, numa operação promocional muito útil, tanto para o ditador como para a carreira de Ferro. O problema com Hitler, como Ferro bem sabia, era que ele detestava dar entrevistas, desconfiava de todos os jornalistas (sobretudo dos que falavam francês), desprezava os países latinos e vivia cercado de agressivos colaboradores fardados, a que Ferro chamou a “camisaria castanha”.

Chegado a Munique, berço e sede do partido, Ferro contactou alguém cujo nome lhe tinham dado em Berlim – um tal Ernst Hanfstaengl, que lhe descreveram como “chefe do protocolo”, mas que era, na verdade, o encarregado das relações do partido nazi com a imprensa estrangeira. O fulano, um bávaro bastante alto e corpulento que mal arranhava o francês, foi de imediato ter com Ferro ao hotel. Submeteu logo no hall o jornalista a apertado interrogatório, insistindo depois em subir ao seu quarto, que passou a pente fino, fazendo perguntas impertinentes. Depois desta intrusão, Hanfstaengl acabou por engraçar com Ferro, que por sua vez engraçou com o “bom gigante”.
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Hanfstaengl com Hitler

A entrevista de três minutos, se tanto, que Hitler, depois de retorcidas negociações, acabou por conceder, sem nunca se sentar, posto em sentido diante do repórter, não valeu a viagem de António Ferro a Munique. “Três perguntas rápidas e expressivas!” – exigira o chefe nazi, soltando faíscas dos olhos claros. As respostas foram tão curtas quanto as perguntas, declarando desafiadoramente, com as mãos metidas nos bolsos do fato azul, que o partido nazi era o partido da paz, mas não da paz de Versalhes, que os nazis deviam ser reconhecidos como a única verdadeira barreira ao comunismo e que o seu partido não era nem monárquico nem republicano, apenas queria a Alemanha para os alemães, como Monroe quisera a América para os americanos. Seguiu-se, sem mais, a saudação de braço espetado, sublinhada por uma pancada seca de calcanhares. Meia volta e ala que se faz tarde!

Como prémio de consolação por tão minguada colheita, Hanfstaengl declarou que Ferro tinha conseguido ser o primeiro jornalista do mundo a dirigir-se a Hitler em francês. Nem tudo foi em vão, portanto… O repórter do Diário de Notícias foi ainda obrigado pelo seu “bom gigante” a assinar um papel humilhante com a transcrição fiel das três perguntas e das três respostas. Começou logo ali, porém, a sentir remorsos, por imaginar que a sua reportagem “exacta” a publicar em Lisboa, previsivelmente pouco simpática para Hitler, iria causar embaraços em Munique ao seu recente amigo Hanfstaengl – presunção típica do alto conceito que Ferro sempre teve de si próprio e dos seus feitos jornalísticos, literários ou políticos.
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O “furo” de António Ferro
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Nada impediu que a 23 de Novembro de 1930 o Diário de Notícias colocasse em primeira página, com continuação na segunda, um triunfante e bem esticado relato das magras vicissitudes muniquenses de Ferro, sob o mirífico título “Agitada e sensacional entrevista com Adolfo Hitler, chefe dos nacionais-socialistas”. A peça, que não foi avidamente lida em Londres, Paris ou Washington, deve ter ecoado apenas pelas mesas de café do Chiado e do Rossio. “Mais um furo jornalístico do Ferro!” Mas na Alemanha, na Europa e na América, se ninguém sabia até então o que era o Diário de Notícias, continuaram a não saber. Ferro, compreende-se porquê, nunca reeditou este alegado “furo”, ao contrário de dezenas de outras entrevistas com celebridades reunidas em vários volumes.

Se fosse só esta a história, não viria maçar os leitores com ela. O restante é, porém, mais curioso e gira em torno do nosso Hanfstaengl, que Ferro, se pudesse prever o futuro, teria longamente entrevistado para a posteridade, mandando às urtigas o intragável Adolf. Quando, uma hora e tal depois de ter conhecido Hanfstaengl, se despediu dele à porta da sede do partido nazi e o viu montar uma gigantesca bicicleta feita à medida, Ferro estava a anos-luz de poder imaginar o que o futuro reservava àquele personagem.

O jornalista português não sabia absolutamente nada sobre o avantajado personagem (sabemos que tinha 1,93m e mais de cem quilos), que se lhe apresentara apenas como “historiador”. Não sabia – nem, aparentemente, ficou a saber – que Ernst Sedgwick Hanfstaengl, filho de um famoso editor de livros de arte de Munique e de mãe americana, tinha estudado em Harvard. Não sabia que ele era um íntimo de Hitler, com quem tinha colaborado em 1923 no frustrado “putsch da cervejaria” em Munique e a quem depois apoiou nos tempos que se seguiram, com o julgamento e a prisão. Não sabia, tampouco, que Hanfstaengl era um pianista talentoso, cujas interpretações de peças de Wagner eram altamente apreciadas por Hitler e seu séquito. Como compositor, Hanfstaengl (“Putzi” para os amigos) escreveu várias marchas e hinos nazis, como “Camisas Castanhas”, “Juventude Hitleriana” e “Sieg Heil” – curiosamente enxertados em football songs que ele compusera em Harvard quando estudante! Suponho que Ferro nunca veio a saber que foi a mulher de Hanfstaengl quem impediu Hitler de se suicidar quando este, na sequência do esmagamento do putsch de 1923, se encontrava refugiado na residência do casal e soube que a polícia o ia prender. Hitler empunhou uma pistola e preparava-se para cometer o mais útil suicídio do século XX quando a senhora Hanfstaengl o desarmou com um golpe de judo que o marido lhe ensinara…
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Hanfstaengl, à direita, num encontro com antigos colegas em Harvard, 1934.


Hanfstaengl, cuja biografia se encontra em livros e filmes e disseminada pela Net, chegou a ter no regime nazi, graças à sua proximidade de Hitler, o cargo de chefe da Repartição da Imprensa Estrangeira, atribuições, aliás, que António Ferro também viria a ter no Secretariado da Propaganda Nacional a partir de 1933. Ao contrário de Ferro, porém, Hanfstaengl não aqueceu o lugar, sendo afastado logo em 1934, depois de entrar em colisão com o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, seu rival, por ele apelidado de “víbora”. Hanfstaengl tinha sido acusado de “cosmopolita” por Goebbels, o que na altura era um sinónimo light de traidor.
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A «víbora»



As coisas foram-se complicando até 1937, ano em que Hanfstaengl foi denunciado a Hitler como “elemento adverso” por uma inglesa das relações de ambos, Unity Mitford, cunhada do dirigente fascista britânico Oswald Mosley. O pianista fizera críticas à actuação (ou à falta de empenho) dos militares alemães na guerra civil de Espanha. Recebeu então ordem de Göring para se meter num avião que o esperava com instruções secretas que só podiam ser abertas em voo. O avião, soube ele no ar, rumava a Espanha! A tripulação, depois de o informar que ia ser largado de pára-quedas na zona controlada por Franco, revelou ter afinal outras ordens, mais secretas, devendo Hanfstaengl ser largado em zona republicana, onde teria se desenvencilhar sozinho e depois actuar como espião. O “bom gigante” entrou em pânico, convencido que Hitler, Göring e Goebbels o queriam assassinar. Tentou salvar a pele negociando com o piloto, mas este, a dado passo, disse que surgira uma avaria e que ia tentar uma aterragem. Na realidade, o avião tinha calmamente girado em círculos sobre a Alemanha e, depois de pregado o susto, aterrou em Leipzig como planeado. Tudo não passara duma sinistra brincadeira congeminada por Hitler e seus comparsas, que não se esqueceram de mandar filmar toda a cena dentro do avião.

Ao contrário dos chefes nazis, que partiram o coco a rir, Hanfstaengl odiou a piada, compreendeu o aviso e, pouco depois, conseguiu fugir para a Suíça. Os nazis puseram-no na lista dos mais procurados, na companhia de Freud e outros. Da Suíça rumou à Inglaterra, onde foi preso no início da guerra e enviado para o Canadá. Os ingleses achavam que ele continuava nazi e que, iniciada a guerra, representava um perigo em solo britânico. Em 1942 foi recambiado para os Estados Unidos, onde, sempre sob custódia, se tornou um auxiliar dos serviços secretos americanos e conselheiro informal e secreto do presidente. Deu informações sobre 400 responsáveis nazis, fez análises dos discursos dos dirigentes, descreveu as clivagens internas do movimento nazi, deu sugestões para propaganda e guerra psicológica e, sobretudo, escreveu um relatório de 60 páginas sobre Hitler, uma detalhada descrição da sua vida privada, hábitos, personalidade e idiossincrasias que foi leitura compulsiva para Roosevelt. O ex-nazi nunca se encontrou com o presidente, que outrora conhecera pessoalmente em Harvard. Mais tarde o alemão lamentou não ter podido aconselhar-lhe de viva voz um fim mais rápido para a guerra, que poderia ter sido alcançado, na sua opinião, sem a exigência de “rendição incondicional” do Eixo feita por Roosevelt em Janeiro de 1943. De qualquer modo, esse conselho tinha chegado aos ouvidos do presidente americano, que optou pelo tudo ou nada. Os serviços secretos ingleses, diga-se, consideraram durante todo o tempo Hanfstaengl um conselheiro perigosíssimo, ao qual Roosevelt não deveria ter prestado atenção. O irritante episódio chegou a ser tratado num encontro entre Churchill e Roosevelt, mas este não se curvou, mantendo o seu conselheiro. (Diga-se aqui que Churchill conhecera pessoalmente Hanfstaengl em Munique, em 1932, tendo-lhe então pedido um encontro com Hitler, que este recusou terminantemente.) A breve trecho, porém, com a derrocada das forças do Eixo no terreno de guerra, Roosevelt começou a ligar cada vez menos importância às análises e conselhos do ex-íntimo do Führer, bem como a marginalizar o papel da propaganda destinada a revoltar os alemães e a provocar uma imaginária “implosão” do regime. Estaline tinha entretanto adiantado bastante a solução do problema... Em meados de 1944 Hanfstaengl seria enfim devolvido pelos americanos a Inglaterra, que só o repatriou para a Alemanha em 1946.

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É visível, pela leitura da reportagem do Diário de Notícias, que António Ferro pressentiu em Hanfstaengl uma pessoa algo diferente da entourage do chefe nazi. Todavia, como não sabia rigorosamente nada sobre ele, como não tinha dotes de adivinho, como não o queria prejudicar e, de resto, como só se interessava por celebridades, passou ao lado da “sensacional entrevista” que naquele dia de 1930 podia ter feito, não com Hitler, mas com o avantajado intermediário. Para a posteridade, porque o Diário de Notícias não a teria publicado…


Ao piano em sua casa - Munique, 1957


No pós-guerra Hanfstaengl publicou vários livros memorialísticos, um dos quais foi traduzido para inglês: Hitler: The Missing Years 1922-1934, depois aumentado, em edição alemã, sob o título Entre a Casa Castanha e a Casa Branca: Memórias de um Outsider Político. Peter Conradi publicou em 2004 a biografia Hitler's Piano Player: The Rise and Fall of Ernst Hanfstaengl, Confidant of Hitler, Ally of FDR. O artigo de Steven Casey, “Franklin D. Roosevelt, Ernst ‘Putzi’ Hanfstaengl and the ‘S-Project’, June 1942-June1944” (Journal of Contemporary History, 35-3, Julho de 2000) esclarece os motivos e os meandros da colaboração de Hanfstaengl com Roosevelt, cujo valor questiona.



                                                                           José Barreto


7 comentários:

  1. Interessante o que vou aprendendo por aqui! Só não sei é pronunciar Hanfstaengl...

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  2. A história tem continuação: em Abril de 1932, o jornalista Belo Redondo tenta entrevistar Hitler. Segundo Belo Redondo após uma atribulada espera um secretário de Hitler informa-o que "Hitler tem as relações cortadas com o Diário de Notícias porque esse jornal publica coisas dos franceses contra ele e porque o senhor Ferro, que esteve há tempo em Munique, não foi agradável como devia." Fosse por causa daquilo que o DN publicava "dos franceses" ou por causa do "senhor Ferro" o jornalista Belo Redondo acabou a sair do Kaiserhof de forma apressada.
    Helena Matos

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  3. Na fotobiografia da família Ferro, em que se cita uma pequena parte da reportagem, não revelam a história que Helena Matos conta.

    Pelo que me diz, parece-me que ou o Ferro mandou um exemplar do jornal a Hanfstaengl e este se deu ao trabalho de mandar traduzir a coisa ou, então, que algum informador de cá, português ou alemão, lhe fez saber que a entrevista "não foi agradável como devia". A parte mais "desagradável" deve ter sido a descrição que Ferro fez da rusga ao seu quarto de hotel por Hanfstaengl, o qual certamente detestou o relato. Em 1932 deve ter sido ele que deu a nega a Belo Redondo.

    Hitler viria também a ser entrevistado por Félix Correia, um jornalista do Diário de Lisboa de consabidas simpatias nazis (foi depois redactor da revista de propaganda alemã Esfera). As "entrevistas" de Félix Correia com Hitler e Goebbels são bem reveladoras da subserviência do jornalista e vêm transcritas no seu livro "Quem vem lá", de 1940.

    Obrigado pela informação
    José Barreto

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  4. A revista dos 150 anos do DN publica hoje o histórico artigo de António Ferro . JPCC

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  5. E Ferreira Fernandes escreve aqui sobre o tema: http://150anos.dn.pt/2014/08/02/a-caca-a-hitler-pelas-cervejarias-de-munique JPCC

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