quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O Tempo e o Modo, ou o impossível «centrismo»




 
 


Surgida em 1963, a revista O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção cedo se tornou uma referência cultural e ideológica na década de sessenta, mantendo o seu projecto original até finais de 1967. Em Outubro de 1969, tem início a Nova Série da revista, com uma orientação muito distinta, mantendo-se a publicação da mesma até, pelo menos, Setembro de 1977.  
 
A revista foi produto de um projecto cultural que em seu torno agregou um conjunto de outras iniciativas, como a Livraria Moraes Editora e a edição portuguesa da Concilium. Revista Internacional de Teologia. Nascido a partir do dinamismo generoso e do saudável aventureirismo utópico de António Alçada Baptista, teve como núcleo fundador uma geração mais nova oriunda meios católicos (como a Juventude Universitária Católica, o jornal Encontro e o Centro Cultural de Cinema), onde se destacavam os nomes de João Bénard da Costa, Pedro Tamen e Nuno de Bragança. Desde os seus alvores, a revista possuía, pois, uma matriz católica de intervenção na vida pública, realizada em «diálogo» com outras tendências e outros protagonistas. Procurava ser um lugar de convergências: geracionais, ideológicas, políticas, mundividenciais.
 
 
António Alçada Baptista
 
De facto, uma das grandes questões suscitadas nos primórdios de O Tempo e o Modo foi justamente a de abrir ou não a revista à participação de não-católicos. A cooperativa Pragma havia resolvido a questão optando pela via «ecuménica» e o mesmo sucedera com o seu modelo, a Esprit. «Seria [O Tempo e o Modo] uma revista só de católicos? Se assim fosse, seria uma traição em relação a Mounier, que se demarcara em 1932 de Maritain nesse ponto», escreve Guilherme d’Oliveira Martins («O Tempo e o Modo. Dos sinais dos Tempos e dos seus Modos», in O Tempo e o Modo. Antologia, Lisboa, 2003, p. 13).
 
Que fazer, então, com O Tempo e o Modo? Para resolver a dúvida, conta Bénard da Costa, decidiu rezar-se, por proposta sua, uma Avé-Maria antes da votação, curiosíssimo indício do enraizamento da fé católica no espírito dos presentes. No final, venceria democraticamente a opção pelo pluralismo (João Bénard da Costa, «Meus tempos, meus modos», Diário de Notícias. Revista de Livros, de 9-XI-1983). Perante esta deliberação, Alçada Baptista propõe a entrada de Mário Soares e de Francisco Salgado Zenha, agregando-se posteriormente Adérito Sedas Nunes, Mário Murteira, Francisco Lino Neto, Orlando de Carvalho, Mário Brochado Coelho, Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Manuel dos Santos Loureiro e até Mário Sottomayor Cardia. Pouco depois, entrariam Vasco Pulido Valente – com a missão de controlar os «desvios de direita» de Bénard da Costa nos domínios das artes e das letras, segundo o testemunho deste último –, João Cravinho, Francisco Ferreira Gomes e Vítor Wengorovius. Numa fase posterior, Luís Salgado de Matos conduzirá mais uma etapa de abertura da revista, nela fazendo entrar Alfredo Barroso, Jaime Gama, José Luís Nunes, Alberto Costa, António Reis, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo, Nuno Júdice ou Manuel Gusmão.

 
Segundo Bénard da Costa, foi «uma atitude corajosa de parte a parte», dos católicos e dos não-católicos (depoimento in: Os anos 60: factores de mudança. policop. Lisboa: Centro Nacional de Cultura/SEDES, 1990, Dossier 1). Se os católicos rezavam Avé-Marias, os não-católicos estavam desconfiados: quando Alçada Baptista convida Mário Soares e Salgado Zenha para escreverem em O Tempo e o Modo, e estes aceitam, há alguma hostilidade da parte de personalidades exteriores à revista, como Piteira Santos, Manuel Mendes, Gustavo Soromenho e Ramos da Costa (depoimento de Mário Soares in: António Alçada Baptista. Tempo Afectuoso – Homenagem ao escritor e amigo de todos nós, Lisboa, 2007, p. 174). Mas, como diz com justificado orgulho António Alçada Baptista, «foi talvez a primeira vez que católicos e não católicos pensaram conjuntamente em Portugal numa intervenção política» («Vida e morte da Moraes». Alter/Ego. Indivíduo, sociedade, cultura, 1988, p. 95). João Bénard da Costa tem uma visão algo distinta: «penso que a dimensão da utopia era mais importante do que a pragmática. Nunca pensámos em “O Tempo e o Modo” como um embrião de um futuro partido político». Mas o certo é que, como reconhece o próprio Bénard da Costa, dada a colaboração de não-católicos, «fomos logo vistos como o embrião de uma aliança ou tentativa de diálogo entre a democracia cristã e o Partido Socialista ou, como se dizia então, a social-democracia». Aquela colaboração entre católicos e não-católicos  foi um passo «extremamente importante», no balanço de Pedro Roseta. Sobretudo porque, de acordo com a memória de Bénard da Costa, estava subjacente uma «questão de honra»: não poderia colaborar na revista quem tivesse tido qualquer colaboração com o regime, mesmo que se tratasse de uma personalidade «liberal» (entrevista ao Público, de 15-XII-2003). Também existiu o propósito de não integrar membros do PCP, ainda que o Partido acabasse por estar informalmente representado através da presença de Mário Sottomayor Cardia. Este, de resto, abandonará O Tempo e o Modo decorrido pouco tempo depois, tendo ingressado na Seara Nova, onde logo encetou uma violenta polémica contra a revista de onde saíra, acusando-a de promover uma «aliança encapotada» entre os católicos progressistas e a social-democracia representada em Soares e Zenha (cf. Liberdade Sem Dogma. Testemunhos e estudos sobre Sottomayor Cardia, Lisboa, 2007, p. 86).

 
A revista pôde, assim, ostentar no seu primeiro número o nome de dois futuros presidentes da República, Mário Soares e Jorge Sampaio. Mas não foi propriamente a participação nas suas páginas de personalidades não-católicas que deu a O Tempo e o Modo a coloração «centrista» e a projecção pública que logo adquiriu entre as elites cultivadas da altura, designadamente entre os leigos que começavam a distanciar-se das posições oficiais da hierarquia da Igreja, tidas como demasiado próximas da linha política intransigentemente prosseguida por António de Oliveira Salazar. Mais do que um projecto aglutinador de crentes e não-crentes, a publicação animada por Alçada Baptista foi, em articulação com os livros lançados pela Moraes, o primeiro grande espaço cultural alternativo à «situação» e, no outro extremo, à hegemonia que, sobretudo através da Vértice e da Seara Nova, o neo-realismo afecto ao PCP possuía no domínio da cultura oposicionista. Seguindo a linha personalista de Mounier, obedecia a um programa de «humanismo interventor» e, só por isso, configurava-se como um projecto que, nascido à sombra da memória do «terramoto Humberto Delgado», possuía uma insofismável dimensão política, ainda que não estivesse nos imediatos planos dos seus fundadores intervir como tal na vida política portuguesa. Além disso, O Tempo e o Modo foi, por assim dizer, a escola de um escol, o local de formação e socialização de personalidades que viriam a desempenhar papéis de grande relevo na vida política e cultural portuguesa, antes e depois do 25 de Abril. Por outro lado, se O Tempo e o Modo não conseguiu realizar uma efectiva convergência entre católicos «progressistas» e agnósticos «sociais-democratas», mais por deserção destes do que por falta de abertura daqueles, nem por isso pode deixar de se considerar uma publicação plural e não-sectária, sem com tal lhe tenha feito perder a marca de catolicidade que a caracterizou desde os seus primórdios e que só é compreensível quando associada ao espírito do aggiornamento conciliar e às esperanças depositadas em João XXIII, o papa buono. Por fim, a revista actuou como modelo de um projecto reformista da sociedade, sem intuitos partidários mas tentando situar-se a um «centro» que, mais do que estritamente cultural, era sobretudo ideológico.

 
As dificuldades financeiras que ditaram o destino da revista nesta sua primeira fase foram espelho de uma incapacidade mais profunda, a incapacidade de manter uma posição «centrista» quando a voragem do tempo apontava para uma radicalização dos extremos, entre os partidários e os adversários do regime de Salazar. Quando a possibilidade de encontrar uma via intermédia entre esses dois pólos renasce efemeramente, com a chegada de Marcelo Caetano à Presidência do Conselho, não será já O Tempo e o Modo a ocupar aquele espaço duplamente alternativo, nem a exercer aquela função moderadora - a qual, de resto, também será condenada a prazo, como a experiência da «ala liberal» mostrou de forma eloquente. Tal não significa qualquer juízo de valor negativo quanto à importância de uma revista e de um projecto cultural de indiscutível relevo, sobretudo se tivermos presente o contexto histórico em que O Tempo e o Modo surgiu e se afirmou como publicação que dava à estampa textos que ainda hoje constituem um marco da vida intelectual portuguesa da segunda metade do século XX. Trata-se tão-só de uma constatação objectiva: a evolução do regime e da sociedade comprimiram significativamente o espaço onde O Tempo e o Modo se pretendia situar e mover. O «centro» desvanecera-se e, com ele, a revista deixara de possuir um modo para continuar naquele tempo.
 
 
Para saber mais
O estudo mais completo e aprofundado sobre a primeira fase de O Tempo e o Modo é, indubitavelmente, o da autoria Nuno Estêvão Ferreira, «O Tempo e o Modo. Revista de Pensamento e Acção (1963-1967): repercussões eclesiológicas de uma cultura de diálogo», in Lusitania Sacra, 2ª série, nº 6, 1994. Mais recentemente, foi apresentada por Mário Rui Gonçalves Dias a dissertação académica O Tempo e o Modo: um itinerário ensaístico de um receptor da modernidade, ainda inédita (Coimbra, 2006). Para a compreensão do percurso da revista são fundamentais as narrativas memorialísticas de Alçada Baptista, nomeadamente Peregrinação Interior (vol. 1, 1971; vol. 2, 1982) e, sobretudo, A pesca à linha. Algumas memórias (1998) e A cor dos dias. Memórias e peregrinações (2003). De Alçada Baptista é também essencial o texto «Uma aventura com O Tempo e o Modo», in Ler. Livros & Leitores, nº 36, Outono de 1996. A obra colectiva de homenagem ao editor da Moraes contém vários depoimentos de grande interesse: cf. António Alçada Baptista. Tempo Afectuoso – Homenagem ao escritor e amigo de todos nós. Dir. de Maria Helena Mira Mateus e Guilherme d’Oliveira Martins. Lisboa, 2007. São fundamentais os textos de João Bénard da Costa publicados no jornal O Independente e posteriormente reunidos em livro sob o título Nós, os vencidos do catolicismo (Coimbra, 2003), bem como o artigo «Meus tempos, meus modos», saído no Diário de Notícias. Revista de Livros, de 9-XI-1983 (onde foi igualmente publicado sobre a mesma temática um texto de Vasco Pulido Valente, «Éramos assim absurdos em 1963»). Bénard da Costa é ainda autor de um texto sobre a revista na importante obra colectiva A Aventura da Moraes, coordenada por Teresa Tamen (Lisboa, 2006). É bastante informativa a entrada «O Tempo e o Modo» na obra Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), vol. 2, Lisboa, 2000, da autoria de Daniel Pires. Em 2003, a Fundação Calouste Gulbenkian e o Centro Nacional de Cultura co-editaram uma antologia de O Tempo e o Modo, com um importante estudo introdutório de Guilherme d'Oliveira Martins.
 
 
Nota final: este texto, escrito com propósitos limitados e sobretudo informativos, foi originalmente publicado na obra colectiva Os Anos de Salazar, org. de António Simões do Paço, Lisboa, 2008, vol. 20, pp. 148ss, não se tendo procedido à sua actualização; assim, as referências bibliográficas reportam-se a essa data, não contemplando obras entretanto saídas).
 
 
 
António Araújo
 
 

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