segunda-feira, 6 de julho de 2015

Um futebolista no Panteão Nacional.

 
 
 
 

 
 
Eusébio da Silva Ferreira (Moçambique, 1942 – Lisboa, 2014), jogador de futebol no Sport Lisboa e Benfica desde 1960 a 1976, foi 64 vezes internacional, tendo uma estátua sua diante do Estádio da Luz, em Lisboa. Ganhou a Bota de Ouro pela sua actuação no campeonato do mundo de futebol (1966). Era conhecido pela sua velocidade, técnica e poderoso remate do pé direito. A sua autobiografia, redigida pelo jornalista Fernando F. Garcia, foi publicada em 1967 em português e traduzida em inglês com o título de My Name is Eusébio (Londres, Routledge & K.Paul, 1967), ajudando o regime salazarista a servir-se do álibi de que esse jogador negro seria a prova da nossa alegada ausência de racismo colonialista. Alcunhado de “Pantera Negra”, na sua morte foi decretado luto nacional por três dias.
Depois do 25 de Abril, a urna com os restos mortais de Eusébio receberia a excessiva e anómala homenagem de ser levada numa charrete puxada a cavalos, do cemitério do Lumiar, onde jaziam desde 2014, para o Panteão Nacional, em 3-VII-2015, após um extenso desfile fúnebre, passando pelo parque Eduardo VII e pela Assembleia da República, em cerimónia de grande pompa, trasladação acompanhada por forças da PSP e da GNR. [1]
O decreto instituindo a finalidade da panteonização fora definido pela Lei nº 28/2000, onde se lia que esse acto se destinava “a homenagear e a perpetuar a memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa de valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade.” Em nenhuma destas linhas do diploma se pode incluir o caso em apreço, já que um jogador de futebol, mesmo venerado pelas turbas dos seus admiradores, não cabe nestes excelsos parâmetros que definem a relação entre o Poder político e a Glória nacional, o apreço de um país e a acção de um dado indivíduo, neste caso um simples jogador de futebol, mesmo que muito idolatrado nesse campo, pelo que Eusébio não chegou de modo algum às alturas que o tornassem digno de ser levado para o Panteão.
O facto de a sua panteonização ter sido aprovada por unanimidade dos legisladores só prova que um acto de reconhecimento público e consagração cívica desta importância pode ser decidido de modo unânime por uma multidão de cegos voluntários, incapazes de compreenderem que o famoso jogador nascido em Moçambique nada tem a ver com a gloriosa dimensão de outras figuras, culturais ou políticas, acolhidas ou túmulos ou cenotáfios no templo católico de Santa Engrácia, em l.isboa, tornado desde 1966 templo da memória nacional,  ou, a partir dos finais século XIX,  no Mosteiro dos Jerónimos, em Belém, em redor dos seus grandes homens representativos que essa mesma grei reconhecia e acarinhava como os seus majores, vultos como Camões (panteonizado em 1880),  Garrett, Herculano, João de Deus, Arriaga, Sidónio Pais, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e, depois do 25-IV-1974, Humberto Delgado, Amália, Aquilino e Sophia de Mello Breyner. [2] O referido diploma de 2000 não parece ter sido tomado a sério pelos deputados então eleitos que o aprovaram, muitos dos quais seriam os mesmos que o tinham redigido década e meia antes, o que parece indicar que quem legisla sobre as funções da Memória parece sofrer de uma imperdoável amnésia.
Esta panteonização de um futebolista, além de ser redutora das demais formas de desporto entre nós praticadas − porque esquecer os ciclistas, os atletas, os jogadores de hóquei em patins ou os(as) maratonistas?  − comprova ainda que, no amnésico Portugal pós-Abril, a noção de lídima Memória nacional tem mais a ver com o aberrante e sem dúvida excessivo destaque psicológico e mediático que o mundo do futebol ocupa na nossa sociedade e no nosso imaginário do que com legítimas noções de verdadeira Glória que nos merecem os nossos Maiores. Num país acéfalo onde a imprensa desportiva diária, consagrada ao omnipotente jogo da bola, é tão (ou mais) importante que a demais imprensa de informação política ou económica, já sem falar de uma televisão que abre os telejornais dando primazia ao noticiário do futebol sobre a demais informação mediática, tanto nacional como mundial, se compreende que a deplorável transferência dos restos mortais de um futebolista para o Panteão se faça sem atender  aos grandes vultos culturais de escritores, artistas das mais diversas artes (cinema, teatro, cinema, artes plásticas), vultos científicos, políticos ou militares, etc. Em vão se procuraria entre os já panteonizados os corpos de Egas Moniz, Miguel Torga, António Silva, Manoel de Oliveira, António Sérgio, Mouzinho da Silveira e tantos outros, já que, em vez deles, está desde há dias o cadáver intruso de um futebolista.
                                                                                         
                              João Medina
 


[1] Veja-se Diário de Notícias de 4-VI-2015, pp. 56-57, com diversas fotos coloridas.
[2] Veja-se, no vol VIII da História de Portugal (Ediclube, 1993, pp.283-311),  o nosso  texto “O Poder e a Glória: o Panteão português desde o Liberalismo aos nossos dias”.
 

5 comentários:

  1. Pão e circo.Assim foi e assim será.A propria ideia de um Panteão é absurda se ainda não o compreendeu já não vai a tempo.Paciencia .

    ResponderEliminar
  2. Um post escrito com muita azia.
    Não é Eusébio o culpado de terem abandalhado o Panteão, começou com Amália continuou com uma poetisa com alguns livros publicados e segue-se este. Presumo que a fasquia ainda pode baixar um bocadinho mais.

    ResponderEliminar
  3. Pos pode.Cavaco para o Panteão mas já...

    ResponderEliminar
  4. Por mim, a próxima seria a Maria Barroso.

    ResponderEliminar