quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Diz-me quem é o teu inimigo, dir-te-ei quem és.


 
 
 
 Escrito nas vésperas do período mais negro do século XX, O Conceito do Político, de Carl Schmitt, foi testemunha profética de um mundo polarizado que, à época, ainda estava por chegar.
 
O Conceito do Político, de Carl Schmitt (1888-1985), publicado, originariamente, em 1927 sob a forma de artigo na revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, e, mais tarde, em 1932, em formato de livro, nasceu intimamente ligado ao seu autor e ao papel deste como inimigo jurado da República de Weimar e, depois, como filiado n.º 298 860 do Partido Nazi, ao qual aderiu em 1932, juntamente com Martin Heidegger. A fama – ou a infâmia – de que esta obra gozou nas primeiras décadas a seguir à sua publicação é quase indissociável destes eventos.
Contudo, desde que o Carl Schmitt caiu em desgraça no seio do Partido Nazi, a partir de 1936 – e, principalmente, desde que, afastado da vida académica e em virtude da recusa a submeter-se aos processos de desnazificação, se exilou na sua cidade natal na Vestefália, à qual se passou a referir como a sua San Casciano, numa óbvia referência ao lugar onde Maquiavel sofreu o seu exílio forçado de 1512 a 1520 –, a história deste livro mudou. O mundo da República de Weimar em que o livro nasceu e os horrores da Segunda Guerra Mundial que se lhe seguiram, dava agora lugar a um mundo novo, o da divisão da Alemanha, da construção do Muro de Berlim, da Guerra Fria, da ameaça nuclear, do terrorismo moderno. Todos estes eventos deram uma nova vida à obra de Carl Schmitt publicada entre as duas grandes guerras e, principalmente, a este livro que ressurgiu como uma visão profética de um mundo polarizado, mas, também, de um mundo em que a política é cada vez mais neutralizada pela economia e pelos mercados, tornando-o um dos vestígios mais fidedignos deste século de amizades e inimizades extremadas, o que justifica em grande parte a circunstância da sua obra se ter tornado, nas últimas décadas do século XX e no conturbado início do século XXI, com o 11 de Setembro e a guerra ao terrorismo, uma obra de referência do pensamento político para autores tão diversos como Leo Strauss, Jacques Derrida, Julien Freud, Giorgio Agamben, Antonio Negri ou Slavoj Žižek.
E por falar em inimigo, este é, aliás, um dos conceitos fundamentais não só desta obra, mas de todo o seu pensamento político. Contudo, falar sobre o inimigo em Carl Schmitt é uma tarefa espinhosa. Enquanto conceito político, este termo é construído no seu pensamento a partir de uma das mais emblemáticas e discutidas afirmações de toda a sua obra. Diz o autor, num dos primeiros parágrafos do capítulo segundo desta obra, que “a diferenciação especificamente política, à qual se podem reconduzir todas as acções e motivos políticos, é a distinção de amigo e inimigo”. Com esta afirmação, o autor inaugurou caminho de um dos corolários da sua teoria política: a distinção/oposição entre amigo e inimigo (Freund-Feind), que atravessará grande parte da sua obra e regressará em força, anos mais tarde, na sua Teoria do Guerrilheiro (1962).
A distinção entre amigo e inimigo é, de facto, indissociável da situação política e social da Alemanha durante período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, nomeadamente durante o período da República de Weimar. Schmitt desconfiava profundamente da organização democrática da comunidade e dos resultados mais imediatos, considerando que esta implicava uma indesejável amálgama entre os interesses do Estado e os interesses da sociedade. Segundo o jurista alemão, “esbatia-se”, assim, a fronteira entre estas duas realidades. Neste contexto, Schmitt questiona-se sobre a essência do político. A esta pergunta, contudo, a sua obra não procura fornecer verdadeiramente uma resposta directa. Ao invés, o autor parte para a distinção entre amigo e inimigo. Schmitt adopta, assim, três ideias fundamentais que se inserem numa certa tradição do pensamento político ocidental, na qual escolhe Hobbes como o elemento de comunicação privilegiado: o pessimismo antropológico; a segurança como principal função do político; e o princípio da protecção/obediência.
 
 
 
Por outro lado, esta distinção descreve tanto a função como a essência do político. No primeiro aspecto, ela insere-se numa linha de continuidade com uma tradição do pensamento ocidental que assume como principal preocupação da entidade política a segurança. Contudo, quanto à essência do político, Schmitt quebrou profundamente com as correntes do pensamento político que o precederam; é que para o autor, a distinção entre amigo e inimigo não é aquilo que a política faz, mas sim aquilo que a política é. O político, nesta perspectiva, tanto contém a possibilidade de paz, como a possibilidade real de guerra; daí que Schmitt afirme, de forma particularmente radical e quebrando com a tradição hobbesiana, que se sobre a terra não houvesse mais que neutralidade, não só teria terminado a guerra, mas também a neutralidade em si mesma, de igual forma que desapareceria qualquer política, incluindo a de evitar a luta, se deixasse de existir uma luta em geral.
Esta distinção evoca, também, a relação de identidade ou de conflito que subjaz às formas de agrupamento ou de oposição entre os homens. No domínio político, estas caracterizam-se por corresponderem ao grau máximo de intensidade possível de união ou de separação. Qual a origem deste grau máximo de intensidade? A resposta reside na possibilidade real de que as relações de identidade ou de conflito subjacentes aos conceitos de amigo e de inimigo se consubstanciem numa guerra. Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem o seu sentido real precisamente por fazerem referência à possibilidade real de matar fisicamente, e, por isso mesmo, a guerra não é mais do que a realização extrema da inimizade.
Finalmente disponível aos leitores portugueses, esta tradução do texto de 1932, que segue de perto a estrutura das edições norte-americana e espanhola, é completada pela notável introdução e pelas indispensáveis notas do tradutor, Alexandre Franco de Sá, um especialista reputado na obra de Schmitt, tornando mais acessível um dos textos mais polémicos e mais comentados da teoria política do século XX.
 
David Teles Pereira
 
(publicado originalmente no jornal i, republicado no Malomil com permissão do autor: obrigado, David, um abraço!)


1 comentário: