sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Memória de Jorge de Sena.


 
 
 
 
 
 
I
 
(…). Também admirei a obra de Jorge de Sena (1919-1978), tanto o romancista, sobretudo no seu admirável Sinais de Fogo (póst., 1979) como o ensaísta, dramaturgo e poeta, igualmente forçado a um longo exílio político nos E.U.A. até ao final dos seus dias. Uma grande obra romanesca fora escrita por este escritor que escolhera também o exílio americano, Sinais de Fogo (póstumo,1981). Romance histórico autobiográfico inacabado, situado no verão de 1936, na Figueira da Foz e em Lisboa, este extraordinário Bildungsroman permite narrar não só o impacto entre nós do início da guerra civil de Espanha mas ainda a fascização do nosso regime, com a criação da Legião Portuguesa, atentamente descrita, ao mesmo tempo que vai narrando a evolução dum jovem através da sua experiência pessoal, íntima, humana, política e amorosa – esta obra é, aliás, uma das mais ousadas na descrição da sexualidade da relação entre Jorge e Mercedes - em colisão com a sua família de burgueses acomodados à “Situação” (termo que então se usava como sinónimo do regime salazarista), ao mesmo tempo que esse adolescente se prepara para vir a ser o poeta, ensaísta e o romancista de enorme craveira em que ele mesmo depois se transformaria. Creio que a minha opção cultural e até profissional como historiador seria em larga medida responsável pela valorização que dou a estas duas obras maiores que acabo de referir, mas a verdade é que raros livros cimeiros da nossa cultura poderão ser apresentados como a-históricos – porquanto até o Menina e Moça tem, na filigrana etérea da sua escrita, toda uma história vivida subjacente, neste caso compreensivelmente camuflada e simbolizada de maneira aparentemente trans-histórica, dada a condição de cristão-novo de Bernardim Ribeiro. Devo ainda mencionar uma importante obra de Sena que referi nos meus estudos sobre o Sebastianismo, o seu O Indesejado (António Rei).[1]
 

 

 
II
 
Foi nas páginas da Vértice que sairia, em 1970, graças a generosidade do poeta neo-realista Joaquim Namorado (1916-1986), comunista convicto e meu amigo dedicado, embora exasperado pela minha não-adesão ao PCP - uma parte do meu primeiro romance A Ilha está Cheia de Vozes, logo editado como uma pequena novela em livro pela Atlântida em 1971 e, sete anos mais tarde, republicado pela Arcádia, num texto bastante revisto e ampliado, agora com o título completo de A Ilha está Cheia de Vozes ou Robinson na ilha dos Autómatos. Sob uma forma desinibida, este livro era uma parábola algo surrealizante do Portugal do marcelismo em luta contra a insurreição dos povos africanos mantidos sob nosso domínio, escrita sob a forma dum diário íntimo dum novo Robinson, náufrago também inglês, a tentar educar um jovem discípulo negro que ele queria tornar seu delfim político naquela ínsula onde só havia dois seres humanos e inúmeros animais, todos devidamente recenseados e dotados de nome. Esse rebelde Sexta-Feira escrevia poesia em francês e, à força de intensas leituras impostas por um pedagogo louco, acabaria por se revoltar contra o seu amo europeu e toda a sua cosmovisão cristã ocidental. No final da narrativa, Sexta-Feira desafiava o seu mestre e senhor, de modo que, depois de ter espalhado cartazes por toda a paisagem insular com dizeres contestatários, tais como “We shall overcome!”, “Le monde va changer de base!”, acabaria por partir num barco, fugindo de vez da ilha e da pedagogia ditatorial de Robinson, a cantarolar o hino italiano Bandiera rossa. O livrinho terminava com um anexo de sete breves fábulas chamadas “histórias plausíveis”, quase todas de cenário árabe, cheias de alusões metafóricas ao despotismo interno e ultramarino do regime ditatorial luso.
 Ao reeditá-lo em 1978, decidi tornar mais explícitas as intenções críticas políticas subjacentes ao texto inicial. Na contra-capa da sua segunda edição ampliada explicava-se que o livro era “uma sátira feroz contra o ocidente cristão e a sua cultura”, revoltando-se o negro Sexta-Feira “contra a tirania política e pedagógica do seu mestre”, pelo que se tratava de uma “narrativa «blasfema» e «subversiva»”. Na capa reproduzia-se parcialmente a célebre gravura anticatólica de Théodore de Bry mostrando o encontro inicial de Colombo com os índios do Novo Mundo, que ofereciam presentes ao Descobridor europeu, mostrando-se submissos e desnudos, enquanto o genovês estava soberbamente vestido, com um belo chapéu com pluma, uma espada à cinta e uma lança na mão esquerda. A crítica portuguesa da altura ignorou quase completamente esta minha estreia romanesca – uma excepção foi a revista jesuíta Brotéria, à qual eu enviara da Alsácia, por correio, um exemplar endereçado ao meu antigo professor Pe.Manuel Antunes - e a outra foi Jorge de Sena, que me mandou dos Estados Unidos uma carta elogiando o meu livrinho. A Brotéria publicou em Janeiro de 1976 uma curta recensão assinada M. Simões (seria o próprio Manuel Antunes que a teria feito?), oscilando entre uma certa admiração e uma evidente reticência religiosa: depois de afirmar que as coisas que de outro modo pareceriam “blasfemas, malcriadas, contraditórias, utópicas ou simplesmente ridículas, admitem-se e ganham sentido e até adequada moralidade no reino da fábula”, já que esta novela seria “uma espécie de libérrima fábula filosófica ou meditação existencialista sobre a barafunda que no processo histórico nos coube viver”, acrescentando ainda que, talvez ajudasse a compreensão do livro “saber que este foi escrito em Estrasburgo, enquanto o «exilado» autor preparava o seu doutoramento em Sociologia, depois do conturbado Maio-68”. Quanto ao acima citado Jorge de Sena, enviou-me ele, dos Estados Unidos, uma carta simpática sobre o meu livrinho, na qual me elogiava a imaginação e o pendor satírico. Ei-la:
 
“Jorge de Sena
939, Randolph Road
Santa Barbara, Cal, 93111, USA
Meu caro João Medina:
24 de Fevereiro de 1972
Recebi a sua carta e muito lhe agradeço a sua «Ilha», e não quero deixar de escrever-lhe antes de partir para a Europa celebrar o Camões em Paris(…) – não passarei porém por Aix, ou iria bater-lhe à porta. Desculpe pois a pressa de algumas palavras que não queria retardar. Deliciei-me com o seu Robinson e as numerosas alusões por todos os lados, que por lá pululam (será que muita crítica portuguesa  entenderá as ironias e de muitos dos seus nomes próprios?). Está escrito com uma desenvoltura cultural que é sem dúvida rara na nossa literatura de pés de bois, ainda com muito do ranço eclesiástico como dizia o Eça. Dos três contos finais, o dos gatos é excelente. [2] E o pequeno interlúdio dos dois papas é uma delícia (agora mesmo, folheando o volume, me tornou a saltar aos olhos). O Sexta-Feira é talvez a melhor criação satírica do livro, que creio superior ao próprio ao seu Robinson. Não sei porquê, senti que talvez tivesse sido melhor que o seu Robinson não fosse tão declaradamente um Robinson britânico mais ou menos – mas sem ele ser isso, como podia o preto ser Sexta-Feira?). Não gosto de fazer profecias e menos dar conselhos, mas suponho que, de futuro, terá V. que contrariar a sua excelente exuberância e o evidente prazer com que brinca com as alusões literárias e outras – precisamente para as suas qualidades de satírico e de moralista (no ínclito sentido da palavra) ressaltarem mais, mas V. apoia-se demasiado naquelas. Fico, creia, extremamente curioso de ver o que V. fará no futuro, se prosseguir neste caminho de ironizar tanto que precisa de ser desmitificado. V. é muito jovem (menos 20 anos do que eu, que inveja) para ter assistido ao uso e abuso desta palavra que os profetas do neo-realismo nascente nos 30 ou 40 fizeram ad nauseam – e escapa-lhe de experiência vivida, pois o peso que a palavra tem para mim no sentido mais positivo, o que é preciso tomem mesmo a sério, para serem mais sérias – e quando alguns agora brincam de ser desenvoltos só de analfabetismo para baixo, bem necessários são os escritores como V., usando da cultura para rir-se da pedantaria ( que é a forma  letrada do analfabetismo).
         Como vê, não faltei à minha palavra, e só tenho pena de que o nosso encontro em casa do Machado da Rosa, em Sintra, tenha sido tão rápido. Outra vez será. E receba as mãos cordiais saudações do sempre ao su dispor
                                                                                                Jorge de Sena.”
 
Respondi-lhe prontamente, numa carta, escrita de Aix, em 27-III-1972,  agradecendo-lhe a generosidade dos seus simpáticos elogios ao meu livro, assim como compreendia a afirmação de Sena ao dizer que Robinson talvez ganhasse em não ser inglês, explicando eu porque não o imaginei como um colono moçambicano ou angolano,  lembrando ainda que, apesar de eu ser natural de Moçambique e filho dum português de Cabo Verde, além de ter vivido parte da minha infância em Joanesburgo, no meio de uma cultura calvinista e inglesa, preferi manter britânico o herói tirado de Defoe, já que dar-lhe a cidadania lusa suscitaria a imediata desconfiança e represália previsível da Censura.  Sublinhei que o meu livro era intencionalmente “uma paródia da Cultura cristã escrita sob a forte impressão de Maio-68 (eu estava lá e participei em alguns «desmandos»”). Sena respondeu-me então num curto cartão, datado de 7-IV-1974, onde dizia que eu não tinha que lhe agradecer o seu interesse pelo meu livrinho pois, pois “se ele não me tivesse interessado não o teria escrito.” Embora eu o tivesse convidado para um novo encontro, na região de Sintra, nesse verão de 72, dando-lhe a minha morada em Galamares, onde vinha passar as férias de verão, nunca mais tive oportunidade de o voltar a ver ou trocar mensagens com esta grande figura cultural que tive o privilégio de conhecer, ainda que de modo tão breve mas relevante. Reeditei, em 1978, A Ilha… numa versão ampliada e muito revista, poucos meses depois de Sena ter falecido na Califórnia. Fui, pouco tempo depois, um dos primeiros e mais entusiastas leitores do seu póstumo Sinais de Fogo (1979), obra que durante anos recomendei aos meus alunos na Faculdade de Letras, chamando-lhes a atenção para o facto de este ser, como o Milagre segundo Salomé, de Miguéis, um dos maiores romances históricos portugueses.
 
 
Excertos referentes a Jorge de Sena no meu livro
Memórias de um Estrangeirado, obra inédita
 
João Medina

 




[1] Vide o nosso estudo “Sebastianismo: exame crítico dum mito português”, na nossa História de Portugal, Amadora, Ediclube, 1993 (citamos a primeira edição, vol.VI, pp.251-326, onde mencionamos O Indesejado (António Rei) de J. Sena, isto é, D.António I, oposto ao mítico Desejado, D. Sebastião,  referido na p.257; na p. 266 citamos um poema seu ridicularizando o nosso país de escravos, funcionários e prostitutas, todos “de cu para o ar ouvindo / Ranger no nevoeiro a nau do encoberto”(ver uma nota sobre este poema, na p.373); veja-se ainda, no Dicionário de Literatura portuguesa, org. por Álvaro Manuel Machado (Lisboa, Presença, 1996), o nosso estudo “Sebastianismo”, pp.556-560.  Por fim, falando do mito sebastiânico, no nosso livro Portuguesismo(s) (Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006), referimos a peça de teatro de Sena, O Indesejado, nas pp.65-66 (utilizámos a reedição desta peça publicada em 1951,  em Lisboa, Paisagem Editora, 1974).
 


[2] Sena refere-se ao conto “Um gato é um gato”, parábola sobre a censura num regime despótico oriental, narrando a decisão que o sultão de Ogubul tomara de mandar matar todos os gatos e ainda  proibindo que nos livros se mencionasse a palavra “gato ” porque os demónios se tinham refugiado nos corpos de felinos, donde resultava que a língua desse país se foi tornando cada vez mais confusa e equívoca, o que contaminaria  a vida de todos os dias; falecendo o sultão de apoplexia, os gatos foram soltos e a linguagem restabeleceu-se sem anomalias proibitivas (cf. A Ilha…, 1ª edição, Coimbra, Atlântida Editora, 1971, pp. 99-102).


Sem comentários:

Enviar um comentário