terça-feira, 1 de dezembro de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 77 - ALBERT AYLER


Fotografia de Jacques Bisceglia
 

 

 
Ninguém sabe o que se terá passado entre a noite em que Albert Ayler atirou o saxofone contra a televisão e desarvorou de casa, e o momento, vinte dias depois, em que foi reconhecido no cadáver pescado nas águas do East River de Nova Iorque. O relatório da autópsia conclui em morte por afogamento, mas como é deste estofo que são rendilhadas as lendas, de Novembro de 1970 até hoje persiste a especulação e a intriga. Que o seu corpo acusava 19 facadas, segredam uns, ou que tinha um buraco de bala na nuca, asseveram outros, ambos hesitando se foi a polícia ou o FBI, urdindo contra o que chamavam de “radicalismo negro”. Que, na verdade, o encontraram amarrado ao lastro de uma jukebox, e os culpados tanto podiam ser os Black Panthers, porque Ayler se desviara da paixão revolucionária, como a Mafia, porque se recusara a tocar música ligeira. Que estava deprimido, não só com o esgotamento nervoso do seu irmão Donald, mas também porque a mãe o culpava, por tê-lo atraído para os demónios do jazz. “Drogas”, alvitrou Gary Peacock numa entrevista em 1998.
Como de costume a explicação mais prosaica arrisca ser a mais provável – Albert Ayler suicidou-se. Chegado aos 34 anos, após a consagração em 1964 com “Spiritual Unity”, que o descomprometia com a tradição do jazz de forma ainda mais completa do que os paladinos do free, a inflexão de Ayler rumo a uma música simples e primitiva, além de não o ter popularizado, alienou os seus admiradores e levou a etiqueta Impulse! a cancelar-lhe o contrato. Ter-se-á atirado borda fora do ferry para a Estátua da Liberdade, lastimou em 1983 Mary Parks, que fora namorada, talvez musa, poeta e cantora em várias obras de Albert Ayler.
Esta morte ignóbil, e mistificada pelo véu da controvérsia e da incompreensão, corresponde em absoluto à vida musical de Ayler. Pode-se mesmo considera-lo a grande figura trágica do jazz, género musical que sempre teve tanto de dramático como escasseou notoriamente em tragédia, no sentido que ela tem de predestinação, onde o herói na própria tentativa de escapar à morte se aproxima dela, e em que as acções e os feitos prenunciam essa fatalidade.
Em meia-hora, “Spiritual Unity”, com um trio de saxofone tenor sem piano – isto já é um manifesto – depõe o que ainda restava de escalas, compassos, acordes e pautas, num jazz que se queria “free” destas coibições. Tempo suficiente para Albert Ayler cometer uma revolta sem quartel e de 180º. Num flanco repudiava as esgotadas derivações do bebop, abdicando da progressão harmónica, que era a sua matriz. Noutra trincheira, contraditava os mandarins da música contemporânea de índole europeia, que do alto do seu ascendente, como é típico das vanguardas, aquiesciam um ouvido esmolar e complacente ao jazz. O poeta Philip Larkin, jazzófilo convicto, que embora saudoso do swing era capaz de ouvir e perscrutar o que não gostava, apesar de lhe atribuir uma originalidade gótica, comparou a acústica de Albert Ayler à de um violoncelo raspado por uma galocha húmida; e mesmo ao ponderado crítico Gary Giddins ela lembra-lhe guinchos de almas penadas.
 
 
 
Love Cry
1967 (2011)
Impulse! / Verve – 5334699
Albert Ayler (saxofone tenor e alto, voz), Donald Ayler (trompete), Alan Silva (contrabaixo), Milford Graves (bateria), Call Cobbs (harpsicórdio)
[A Impulse! tem editado “Love Cry” em conjunto com “The Last Album”. Pelo preço de um, fica-se com dois.]
 
O que para estes foi um nadir, outros entenderam como um apogeu, equiparando Ayler a Cecil Taylor, Ornette Coleman e Archie Shepp. Mas “Spiritual Unity” é muito do seu tempo. Escutado 50 anos depois, o disco reúne condições para ser sobretudo o símbolo de uma época, das suas contradições, pulsões, empolamentos e ambiguidades, do que para prevalecer como um clássico, o qual, por natureza, é intemporal.
“Love Cry”, editado em 1967, foi bastante menos celebrado pelos críticos coevos e pelos adeptos geracionais, que esperavam encontrar Albert Ayler num quadrante musical e foram topá-lo noutro. A decepção tem diversas causas: a música do saxofonista era agora menos explosiva e mais (muito!) repetitiva, e este decréscimo de ferocidade parece expô-lo como um instrumentista de técnica rudimentar. É um equívoco habitual: a rudeza é aceitável se vier envolvida nas labaredas do arrebatamento, senão dir-se-á dela que é falha de sofisticação. Todavia Albert Ayler oferece as suas ideias com maior sinceridade, coerência e, até, clareza em “Love Cry”. Despejado o jazz das concepções musicais, ou a “tralha conceptual” segundo os rebeldes; despido das camadas harmónicas que a tradição nele foi envernizando; revolvidas as suas pedras melódicas basilares – sobra o quê? Sobra aquilo que Ayler quis retomar desde a fonte original as raízes fundas e compridas, como as do eucalipto, da música negra americana, no que tinham de primevo, primário, bruto e mesmo telúrico: os blues do delta do Mississippi, a soul da pobreza urbana e o gospel espiritual, palavra que Ayler estimava acima de todas.
Este propósito de “Love Cry”, que na essência é incompleto, ficou deveras inacabado com a interrupção da vida de Albert Ayler – foi o destino.
 
 
José Navarro de Andrade
 

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