domingo, 23 de outubro de 2016

Lisboa, 1942.

 
 
Cecil Beaton (1904-1980)
 
 
         Em Junho de 1942, o fotógrafo e artista britânico Cecil Beaton (1904-1980) passou uma temporada em Lisboa, onde fotografou a cidade e, sobretudo, as suas elites (à excepção de Salazar). Vinha de Lagos, em África, tendo desembarcado num hidroavião, como conta nos seus diários (The Years Between. Diaries, 1939-1944), aqui parcialmente traduzidos e transcritos, na parte relativa a Portugal. A sua faceta de esteta e amante das artes fica bem patente nestas páginas, onde são frequentes as referências a pormenores arquitectónicos ou a mestres da pintura. A dado passo, Beaton refere-se ao «aspecto Rip van Winkle» de Lisboa, numa alusão à personagem do conto homónimo de Washington Irving; e, noutro momento, alude à famosa família Sitwell, sendo estas duas referências, porventura, as únicas que carecem de uma nota complementar que facilite a compreensão de um texto traduzido sem preocupações de rigor e fidedignidade. A passagem de Beaton por Lisboa é sobejamente conhecida, tendo já merecido até uma exposição, cuja crítica de Alexandre Pomar pode ser lida aqui.
 
 
Marcello Caetano, fotografado por Cecil Beaton
 
 

 
         Quando, finalmente, sobrevoámos a orla costeira montanhosa e descemos até à baía azul de Lisboa, a porta do nosso hotel flutuante abriu-se para um cenário ameno e soalheiro. Diante de nós, pequenas bandeiras agitavam-se ao vento e as ondas azul-turquesa desfaziam-se em espuma branca, como num quadro de Tissot. 
         De súbito, sentimo-nos de regresso à atmosfera anterior à guerra, ao tempo das férias passadas em Espanha ou no Sul de França.
         Saberiam alguma coisa da minha visita? Não, o adido de imprensa não sabia de nada. Mas dois jovens da embaixada, Stewart e Herbert, acompanharam-me com entusiasmo e empenho, e telefonaram para vários organismos públicos procurando saber se havia por lá algum trabalho à minha espera. Sim! O Ministério do Ar tinha procurado indagar da minha chegada, mas as investigações subsequentes nada revelaram. Tive a sensação de que talvez me encontrasse aqui por engano. Stewart era de opinião de que me deveria ir embora, uma vez que nada tinha para fazer em Portugal. Herbert, em contrapartida, afirmou que o melhor seria contactar o Ministério do Ar, pois seria péssima ideia regressar a casa para depois ser imediatamente chamado de novo a Lisboa. Stewart sorriu e marcou-me um hotel, fazendo questão de me levar pessoalmente até lá.
         Não admira que tivesse sorrido, pois o Hotel Aviz revelou ser um fenómeno. Assemelhando-se a uma mansão de um milionário vitoriano, era decorado com mobiliário de mogno ricamente trabalhado, estatuária medieval, azulejos portugueses, ferros forjados do século XVIII, enormes carpetes espanholas e terrinas incrustadas de prata, impropriamente cheias de flores horríveis. O ambiente era de tal forma opulento e diferente de tudo o que víamos desde o início da guerra que parecia que o desmesurado relógio barroco do átrio tinha sido atrasado uns vinte ou mesmo uns quarenta anos. Tendo perguntado quem estava no quarto ao lado (era uma alemã ou italiana), Stewart deixou-me ali, para que eu pudesse tomar banho, barbear-me, vestir roupa lavada e mais apropriada e, enfim, tomar uma refeição.
          O almoço era um acontecimento. Numa sala de jantar estilo Luís XVI, envolta em reflexos rosa, algumas mesas, poucas, eram ocupadas por um sortido de personagens de antes da guerra, e de várias nacionalidades. A um canto, de costas para a parede, sentava-se o Senhor Calouste Gulbenkian, rei do petróleo e do caviar e patrono das artes. Um silêncio completo dominava a sala, enquanto eram servidas as refeições mais sumptuosas e extravagantes. Os meus olhos quase saltaram das órbitas quando vi os carrinhos com as entradas a passarem diante de mim. Só as entradas já eram um banquete. Não sei como fui capaz de ingerir ainda mais três pratos, mas o certo é que quase nada comera nas últimas semanas; apesar disso, já não tive espaço para os morangos gargantuescos. 
         O meu quarto, com o seu mobiliário cor de alperce, os abajures forrados de seda na cabeceira da cama, e o marulhar das palmeiras vindo da varanda, era um oásis. A cela despida, fria e húmida da messe da RAF em Lagos foi esquecida até tirar o meu fato mais formal da mala; aí afluiu às minhas narinas o cheiro a mofo, o que me fez recordar a cama e a almofada onde dormira, pejadas de humidade e fungos.
         Como é óbvio, estava feliz por ter sido obrigado a parar aqui (ainda que continuasse a não saber por que razão!) Deambulei pela cidade e, saborosamente, saciei o meu apetite de turista. Os encantadores edifícios setecentistas e os ornatos decorativos rococó representavam algo pelo qual eu estava faminto desde que a guerra começara.
         Muitas fachadas eram pintadas com um vermelho-coral e um branco fortes, com ornatos em estuque brotando do cimo das pilastras. Nas balaustradas dos telhados, erguiam-se obeliscos e vasos de pedra. Por um acaso, passei por algumas praças gloriosas, de mármore branco, decoradas com arcos ornamentais e estátuas. Admirei jardins com bustos clássicos que surgiam de pilares completamente cobertos de folhagem. Foi delicioso sentar-me e gozar o verdor da sombra projectada por um Neptuno que contemplava a fonte formada com a água saída do cântaro que carregava num dos seus braços.
         É espantoso ver as lojas cheias de produtos alimentícios raros, guloseimas, bebidas alcoólicas, de todas aquelas coisas que não temos entre nós – meias de seda, relógios, batons. Estou também espantado com a quantidade de quiosques que vendem diversos jornais e revistas inglesas (muito mais do que aqueles que conseguimos encontrar em Inglaterra). Folheei um exemplar da Illustrated London News para ver se apareciam algumas das minhas fotografias de guerra, mas verifiquei apenas que na nossa terra os meses vão passando, que toda a gente está a usar agora roupas diferentes e que a Princesa Isabel cresceu, deixando de ser criança e tornando-se uma jovem senhora.  
         No Secretariado, percorri uma pilha de revistas de propaganda alemã. As suas fotografias de guerra, quer a cores, quer a preto e branco, são muito mais originais do que as nossas. Não só conhecem a necessidade de contenção no uso da cor como são muito mais ousados do que nós. Mostram apenas manchas trágicas – fotografias tiradas numa semiobscuridade, entre fumo, chuva ou nevoeiro, o que cria um tremendo efeito dramático. Ainda assim, é desconcertante ver que estas revistas, tão próximas do espírito contemporâneo, continuam a apelar à abolição da «arte decadente» quando, em simultâneo, o seu espírito e o seu gosto se mostram muito mais flexíveis do que o nosso.
         O aspecto Rip van Winkle de Lisboa tem as suas desvantagens. Portugal é indubitavelmente o refúgio das «ratazanas» e o Hotel Aviz é o epicentro dos colaboracionistas, que aqui vêm fazer os seus negócios. Talvez a cegueira face à situação mundial tenha custado a Portugal a perda da sua antiga grandeza, sendo este um país que vive actualmente o crepúsculo da sua existência. Mas, devo reconhecê-lo, talvez estas elucubrações tortuosas tenham resultado do mero facto de não ter conseguido encontrar um táxi. Nesta terra de luxos, só falta uma coisa – a gasolina. As ruas estão quase vazias de trânsito, e uma vez que há racionamento de carvão, tem de se poupar na electricidade, pelo que até no Hotel Aviz as luzes são desligadas às 10 da noite.
         O Ministério da Informação acabou, finalmente, por mandar um telegrama dizendo estarem interessados em que eu fotografasse todos os membros do Governo e todas as celebridades locais. Mandaram uma lista das pessoas a retratar, desde o Presidente a Salazar, desde almirantes a cardeais. Julgo que isto não vai interessar a ninguém, e certamente não terá qualquer «importância»; em todo o caso, permitir-me-á fazer um contraste com as fotografias que tenho tirado.   
         A organização deste trabalho revelou-se uma tarefa terrível. No Secretariado, um homem chamado Almeida deveria dar-me uma licença para utilizar uma câmara (ao que parece, em Lisboa pode-se ser preso por andar com uma máquina fotográfica, e por vezes passam-se semanas na cadeia até se conseguir ser libertado). Porém, a primeira dificuldade foi encontrar o senhor Almeida à sua mesa de trabalho. Devido às políticas de austeridade impostas pelas reformas de Salazar, com vista a alcançar o equilíbrio orçamental após anos e anos de caos financeiro, muitos tiveram de fazer grandes sacrifícios, incluindo os funcionários públicos. Por isso, muitos deles acumulam funções com outro emprego, pelo que nunca chegam ao serviço antes das cinco da tarde. Quando, finalmente, o Senhor Almeida apareceu, sentado à sua secretária, tratou-nos de uma forma histriónica. Rodeado de telefones como se fosse um agente de Hollywood, tinha longas conversas sempre que recebia uma chamada. Passava o tempo a marcar números, incessantemente, gritava com a telefonista, desligava e de imediato voltava a marcar outro número. Enquanto falava ao telefone, gesticulava selvaticamente, fazendo esgares parecidos aos de um louco torturado. Tendo-nos deixado ali, a mim e a Herbert, a presenciar aquela cena durante uma meia hora, Almeida disse que iria chamar três polícias, para nossa protecção. Oh, como era difícil a sua vida, que tinha de estar a trabalhar até àquela hora, enquanto a maioria das pessoas já há muito tinha ido embora, para beber cervejas ou comer gelados nos cafés! Por fim, após a sua actuação histérica ao telefone ter ido em crescendo, exclamou: «As coisas estão a ir bem e depressa!» Eu não podia deixar de rir, mas Herbert explicou-me que era mesmo assim: ter paciência é a primeira coisa a aprender para quem vive em Portugal, uma vez que o tempo, como sabemos, não existe (nenhum correspondente de guerra consegue mandar notícias para casa sem que antes passem dez dias de insistência e obstinação).
 
 
Fernanda de Castro, fotografada por Cecil Beaton
 
 
         Quando, por fim, me libertei daquilo, Marcus Cheke apareceu para me mostrar a cidade. Estava livre? Claro, que outra coisa tinha para fazer senão esperar? O meu regozijo foi tanto maior quanto este meu companheiro, que escreveu uma obra romanceada sobre o Directoire chamada Papilée, tinha sido uma das mais surpreendentes descobertas literárias das minhas primeiras leituras. Nenhum inglês conhece tão bem Portugal como ele; escreveu há pouco uma biografia de Pombal, o grande ditador do século XVIII. Na verdade, Cheke é, ele próprio, uma personagem do século XVIII: elusivo, excêntrico, temperamental (o que passa por «artístico»), mas impregnado de um charme discreto.   
         Encontrei nele um excelente guia, detentor de informações fascinantes. Deleita-se com os Portugueses mas considera que os lisboetas estão contaminados pelos artifícios do mundo moderno. Apesar disso, continuam a ser pouco sofisticados, ineficientes e acriançados: um dos seus maiores prazeres é o fogo-de-artifício, a ponto de um aristocrata e toureiro, cujo apelido de família se destacou durante séculos pela sua coragem, ter como passatempo visitar duas vezes por semana o jardim zoológico, onde lança foguetes para a aldeia dos macacos.
         Hoje, o nosso táxi, por puro gozo, e animado por uma fúria que só os taxistas portugueses têm, subiu a toda a brida pelas íngremes calçadas de paralelepípedos do bairro mourisco, Alfama. Esta é a parte da cidade que sobreviveu ao catastrófico terramoto de 1755, quando dois terços de Lisboa desapareceram em apenas quinze minutos. Quando observado de cima, os telhados do casario assemelham-se a uma manta de retalhos feita de um tecido grosseiro. Por perto, o mercado de peixe, onde as mulheres, levando à cabeça enormes canastas, se exaltam e brigam permanentemente, esbofeteando-se umas às outras com rodovalhos ou lagostas.
         O táxi lançou-se depois pelas colinas abaixo. Correndo em duas rodas, navegava de forma alucinante por curvas apertadas, em ruas protegidas da precipitação da chuva por delicadas grelhas de ferro. Depositou-nos à porta da escola equestre do século XVIII, onde se encontra a maior colecção de coches [do mundo?]. Além dos coches, ficamos maravilhados pelos uniformes que eram usados nos cortejos pelos cocheiros, pelos arautos, pelos músicos e pelos criados a pé. Os trajes bordados da aristocracia eram de uma enorme riqueza, com fios de ouro e prata e botões de porcelana, mosaico, esmalte e jóias. Até as fivelas dos sapatos parecem molduras feitas de joalharia. Esta visita a um museu, a primeira desde que a guerra começara, trouxe-me a memória vívida daqueles dias longínquos em que, tendo os Sitwells «descoberto» o barroco, passávamos férias na Baviera em sua companhia.
         Será possível descrever o prazer que sentimos ao visitar o Palácio de Queluz pela primeira vez? Até mesmo Beckford, nas suas cartas, foi incapaz de fazer justiça a este palácio de Cinderela, pintado de rosa e verde-pistácio. É mais belo do que tudo quanto existe na Baviera, com mais liberdade criativa e fantasia de tudo quanto existe em França. É a apoteose da arquitectura «fondant». Um dos edifícios, com empenas holandesas e o telhado em dupla mansarda, exibe uma fachada ornamentada com esfinges, anjos tocando trompetas e varandas rendilhadas. Uma mostra desarmante de pirotecnia arquitectónica.
 
Terça-feira, 14 de Julho
 
         A batalha de Alamein permitiu um período de acalmia durante cinco dias. Conseguimos causar alguns danos nas linhas inimigas e até fizemos cerca de 2.000 prisioneiros. No entanto, o perigo continua a ser tão intenso como dantes. A natureza humana permite que nos habituemos a praticamente tudo. A proximidade do inimigo a Alexandria, que até há pouco era motivo de alarme, é agora aceite com tranquilidade.
 
Quarta-feira, 15 de Julho
 
         Acabaram-se as manhãs ociosas. Finalmente, conseguiu-se obter as autorizações para usar a minha câmara, um sinal de boa vontade. Uma primeira passagem pelo Gabinete de Imprensa fez-me adivinhar que iria ter de passar vários dias a adular as pessoas mais importantes de Lisboa.  Homens de Estado, marquesas vestidas de negro rodeadas de admiradores esvoaçantes, um almirante octogenário, o cardeal patriarca e outros dignitários da Igreja, os comandantes do exército, da defesa civil, da Cruz Vermelha, uma poetisa – todas estas figuras viviam num mundo à parte, só deles, muito distante do modo como intensamente então se vivia e morria em África.
         Num castelo inteiramente renovado no século XIX, o Presidente Carmona – a quem já chamaram o Botha de Salazar/Smuts – recebeu-me com a graciosidade do antigamente, apesar de ter dado havia pouco uma dolorosa piqûre na sua perna. Nascido na década de 1860, o Presidente Carmona liderou o coup d’État que em 1926 levou à fundação do actual Estado Novo português, Hoje, após quinze anos como Presidente da República, goza de tanto prestígio como um soberano regente, tem o exército como uma força unida atrás de si e é respeitado e amado por todas as classes sociais. O antigo revolucionário tornou-se um velho grand seigneur, apresentando-se com o seu modo delicado apesar do desapontamento óbvio de nenhum de nós ser o coronel que o Secretariado lhe disse que iria comparecer perante ele. Parecendo uma ilustração de Caran d’Ache com a sua figura esbelta e aprumada – uma herança dos tempos da tropa –, envergando um casaco preto e calças listradas, posava como um dândi doutros tempos. A decoração vitoriana do castelo prestava-se a fotografias maravilhosas, com as paredes forradas de brocado cor de mostarda, retratos parecendo oleografias, e um gigantesco relógio de pêndulo colocado sob uma campânula de vidro. Em algumas das muitas molduras de prata expostas, encontram-se fotografias de uma senhora que dizem ser a sua antiga cozinheira, com quem se casou recentemente. Será, porventura, boa cozinheira; não é, seguramente, uma mulher bonita.
         A cada dia que passava, mais personagens: homens idosos em uniformes resplandecentes, aristocratas em jardins forrados de azulejos azuis e brancos. Mas a cada dia surgiam também mais reservas por parte de Salazar. No fim, convenci os meus chefes que havia que pôr termo a este cansativo jogo de esconde-esconde, e autorizaram-me a regressar a casa sem o líder-Garbo [Garboesque] no meu portefólio.  
         Após a minha última sessão fotográfica (o chefe da Marinha, um almirante com um longo nariz entortado para a esquerda e cabelo cinzento cortado em franja), deixei cair a minha máquina numa escadaria de pedra. Este acidente freudiano fez com que me apercebesse da estúpida autoconfiança, mas também da incrível sorte que tive, ao ter embarcado para a minha viagem ao Médio Oriente munido apenas de uma câmara. A Rolleiflex, que me acompanhou incólume, com típica eficiência germânica, através de tempestades de areia e viagens de jipes aos solavancos, encontrava-se agora inutilizada, justamente quando eu, do ponto de vista psicológico, devia dar por terminada esta minha missão.
         Aguardo agora a autorização do Ministério da Informação para poder regressar a casa. As delícias setecentistas e frívolas desta linda cidade cor de pistácio, e os surpreendentes privilégios de uma atmosfera pacífica começam a desvanecer-se, sendo agora mais forte o desejo de regressar a casa. Além disso, não conhecendo naturais do país e sendo incapaz de falar a sua língua, sinto que abusei em excesso da hospitalidade de Marcus Cheke e de algumas pessoas da embaixada, onde sinto que começo a ser um estorvo.
         Hoje, em vez de comer sozinho, almocei no restaurante do hotel com uma jovem castelhana cujos pais tinham ido almoçar fora. Adoro a companhia de meninas desta idade, absolutamente fascinantes. Esta, então, era particularmente encantadora, dano um ar de desamparo pungente. «Oh!», disse ela, «é terrível ter catorze anos!» Não se importava de ter onze e ansiava por já ter dezanove anos – mas doze, treze, catorze, quinze, dezasseis, isso era terrível, pois pretendia assumir uma postura adulta sendo incapaz de disfarçar que era ainda uma criança. Está a escrever as suas memórias. Começam pelo «êxodo» da Alemanha quando ocorreu a rendição da França.
         É uma sensação estranha estar num país neutral e ouvir em primeira mão histórias dos territórios ocupados. A rapariguinha falou-me de Paris sob ocupação germânica e do facto de todos detestarem os boches mas não expressarem essa animosidade por receio de irem parar à prisão. Quando o seu pai a levou ao Luna Parque, dois alemães decidiram andar numas cabines que se moviam no ar como moinhos de vento. O dono da atracção viu aí uma oportunidade para se divertir e duplicou a velocidade com que a cabine se movia no céu. Uma multidão de franceses olhou para o céu, morrendo a rir à medida que os alemães iam subindo cada vez mais alto. No meio da multidão, um jovem soldado alemão virou-se para uma menina que gritava de alegria. «São muito engraçados, não são?», perguntou-lhe. A menina ficou calada, parecendo aterrorizada, e fugiu dali.  
         Os judeus têm de usar estrelas amarelas na lapela, que dizem «Eu sou judeu». A rapariga viu uma das suas colegas de escola usar o distintivo no jardim e ficou tão incomodada que não se atreveu sequer a falar com ela. «Mas os judeus não estão em pânico?», «Não, estão bem, são eles que controlam o mercado negro». A minha pequena amiga contou-me também uma série de mexericos sobre amigos comuns, sobre as suas inclinações políticas, sobre os efeitos da Ocupação no comércio («Os negócios vão de vento em popa – os alemães pagam bem!»). «Que dizem os franceses dos raids da RAF sobre França?», «Oh, estão muito divertidos!», «Não estão em pânico?», «Não, nada disso, julgam que a RAF apenas irá atingir as fábricas. Ouvem as bombas explodir e só depois é que toca a sirene de alarme». Rimo-nos juntos com histórias antigermânicas e observámos com espanto uma festa de oito hunos selvagens que estavam a devorar um almoço de oito pratos na mesa ao lado da nossa.
 
 Cecil Beaton
 
(tradução de António Araújo)
 
 

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