domingo, 29 de setembro de 2019

Serenidade.

 
 

 
 
           Há muito tempo que não ouvia Serenity, um dos últimos discos gravados por Stan Getz antes de morrer. Stan Getz teve um início de vida complicado, era viciado no álcool e nas drogas, foi preso quando jovem por assaltar uma farmácia em busca de morfina. O final da vida também não foi fácil, Getz morreu minado por um cancro. Ainda assim, entre a morfina juvenil e o tumor dos últimos dias, conseguiu deixar-nos um disco que nos deslumbra pela imensa serenidade, no título e não só.
Este blogue já existe há vários anos, talvez há tempo demais, e volta não volta abate-se sobre ele uma luz crepuscular, fruto do desalento de quem não talento – e que há muito deveria reconhecê-lo, de uma vez por todas. Qualquer que seja o desfecho, confesso que gostaria que o imenso adeus ocorresse precisamente como o de Getz, e com a palavra serenidade.
Nos últimos tempos, tenho falado muito aqui de alterações climáticas e temas conexos. Talvez mais do que a conta, certamente mais do que a paciência dos leitores aguenta. Não me motiva qualquer ambição de cruzada nem sectarismo radical. Já há muito que ouço falar de aquecimento global, e até houve um tempo em que podia sorrir, quase concordar, quando lia um livro sobre a década de 1970 em que o autor, David Frum, relativizava o problema dos gases-estufa recordando que nessa década dos 70 o pânico era o arrefecimento global e o surgimento de uma nova Idade do Gelo. Também houve um tempo em que lia The Skeptical Environmentalist, de Bjorn Lomborg, e, mesmo não concordando, ia reconhecendo, aqui e acolá, que ele talvez tivesse alguma razão num ou noutro ponto. Mas depois vemos o que aconteceu a Lomborg e sabemos que ele tinha uma organização com um orçamento anual de um milhão de dólares, dos quais 750 mil eram o seu salário, e depois vemos que uma organização de cientistas como a Climate Feedback detectou os inúmeros e gravíssimos problemas do que Lomborg escrevia – crítica que este nunca foi capaz de rebater – e começamos a duvidar do cepticismo do dinamarquês.
Esse tempo passou. E, sinceramente, não sei quantos mais relatórios e mais notícias e mais tragédias serão necessários para mostrar que esse tempo passou. E é por isso que a palavra serenidade nunca foi tão necessária como agora. Dirão que o discurso de Greta Thunberg foi tudo menos sereno, e eu até posso concordar. No que não posso concordar é que, a propósito desse discurso, se publiquem comentários alarves e machistas em que se fazem trocadilhos ordinários com o nome da miúda. Há uns anos, o Herman José fez uma piada em que dizia que a Greta Garbo era a greta mais famosa do mundo, o que, não primando pelo bom gosto, sempre era uma tirada humorística. Agora, não: muitos não hesitaram na piadinha rasca e boçal, de jaez taberneiro. Nas páginas do jornal i,  um tal de Rodrigo Alves Taxa lá publicou uma prosa intitulada «Coimbra, Vacas e Gretas», em que dizia coisas como «isto do ambientalismo, tal como está a ser conduzido, não é mais do que uma moda que não nos leva a lado nenhum» (!). «Para piorar, ainda me aparece agora uma catraia de 16 anos, catapultada a estrela mundial da matéria», disse Taxa, acrescentando: «ora que diabo, o que apetece dizer perante isto é: Oh rapariga, vai-te lá acabar de criar e depois logo falamos». Não contente, o articulista do i incomodou-se com o «palco que se dá a uma catraia de 16 anos que nada sabendo da vida quer ensinar os outros como governar» (jornal i, de 27/9/2019). Perante um nível de argumentação como esta, compreende-se a profunda crise da imprensa portuguesa, fruto da indigência de quem nela escreve. Já no Observador, Alberto Gonçalves não se inibiu de perguntar, com o habitual bom gosto: «As Gretas saíram à rua?».
Serenidade, impõe-se, por muito que não apeteça. Serenidade para reconhecer, par une fois, que, ao contrário do que tantas vezes sucede, José António Saraiva tem no jornal Sol um artigo intitulado «Carne de Vaca» que coloca questões interessantes e pertinentes. A mais importante é a saber até que ponto não é fácil e ilusória, e também ela confortavelmente simbólica, a adesão dos estudantes de Coimbra ao fim da carne de vaca nas cantinas universitárias. Merece reflexão a pergunta que Saraiva faz, a de saber se esses mesmos estudantes estariam e estarão dispostos a maiores sacrifícios, a sacrifícios que mais lhes custem e doam, como largar o automóvel a caminho das aulas ou consumir menos em viagens aéreas, em festas ou em roupa, tudo a bem do ambiente. A propósito disso – e essa vai ser uma prova de fogo para o reitor, para a universidade e para a comunidade académica – será interessante ver como a Academia se porta na próxima Queima das Fitas. Se a Queima vai ser como todos os anos é, um arraial de imundície em que, além dos neurónios e da inteligência, se desperdiçam milhares e milhares de copos de plástico. O Senhor Reitor, que tomou uma medida ousada e corajosa, e os alunos, que logo o apoiaram, foram sujeitos a um vendaval de críticas (quanto a mim, quase todas infundadas, mas adiante). Pois a melhor forma de mostrarem que são capazes de ir além do simbolismo dos bifes é imporem às cervejeiras e às comissões das fitas e das queimas que haverá um uso racional do plástico naqueles dias de loucura e «tradição»; por exemplo, como agora já se faz um muita festa jovem, premiando a reutilização dos copos de plástico ou mesmo – será pedir muito? – abolindo totalmente o seu uso. Faço daqui este modestíssimo apelo – que, de resto, não é original, Mário Ramires já falou disto nas páginas do Sol – com a legitimidade de quem apoiou a decisão do Magnífico desde a primeira hora.
E a decisão do Reitor deve ser apoiada porquê? Uma vez mais, por serenidade. Gozarão alguns, dizendo que aquela decisão foi tudo menos serena. Pois não me interessa se o foi ou não, como já estou cansado de tentar saber se a decisão tinha ou não fundamento «científico». Desde que rebentou, este caso pareceu-me muito mais importante e expressivo do que parece à primeira vista. Para uns, não passará de uma controvérsia pateta em torno de uma questiúncula menor, como tantas vezes sucede na esfera pública portuguesa. Não é. Foi, sem dúvida, uma questão menoríssima, quase caricata. E é por isso, paradoxalmente, que uma querela menoríssima se tornou, em meu modesto entender, numa questão de importância crucial, crucial. O facto de uma questão destas ter suscitado tanta celeuma é, quanto a mim, a prova provada de que não estamos nada, absolutamente nada, preparados para mudanças de maior vulto que, pelo que vou vendo e lendo, terão mesmo de ocorrer. Queiramos ou não. Muitas dessas mudanças até podem ser, concedo serenamente, pouco fundamentadas e apressadas, ditadas por um desejo de mostrar serviço e aliviar consciências pesadas. Julgo que não, mas admito que o sejam. Pois bem: quando mudanças maiores tiverem de ocorrer, estamos preparados para elas? Não, não estamos. Serenamente, temos de o reconhecer. Não estamos preparados para coisas como vão acontecer na Indonésia, em que 30 milhões de pessoas vão ter de abandonar Jacarta, em risco de ser afundada pela subida do nível das águas. Trinta milhões, leram bem. Esses vão ter de mudar de casa, emprego, etc., algo um pouco mais forte do que deixar de comer bife numa cantina de uma universidade. Estaremos nós preparados para coisas como essas? Não. Daí termos motivos para, sem perder a serenidade, ficar ainda mais preocupados. Daí a exemplaridade deste caso dos bifes da Lusa Atenas. À preocupação com as alterações climáticas junta-se uma preocupação adicional: não só temos de lidar com o aquecimento global como ainda temos de lidar com a resistência e a aversão à mudança, com a incapacidade de alterar as mais pequenas coisas do nosso quotidiano – como teremos de lidar ainda, e sempre com serenidade, com o sectarismo acéfalo de muitos opinion makers e com a tendência para converter tudo, mas tudo, num território de disputa e combate. Impressiona-me, sinceramente, o apreço que muita da nossa direita parece agora mostrar pelo marxismo da luta de classes, e pela facilidade com que se entrega e resvala numa lógica conflitual e confrontacional tão ao gosto da esquerda mais radical, da esquerda – e, pelos vistos, de muita direita – que é incapaz de alcançar compromissos e de encontrar consensos para além da sua trincheira e da sua barricada ideológica. É por estas e por outras, por falta de serenidade, que as sociedades estão cada vez mais polarizadas e maniqueístas, mais extremistas, sem centro equilibrante nem consenso possível. De um lado, Donald Trump, do outro Bernie Sanders. No meio, terra de ninguém.
Isto vê-se em pequenas coisas que nunca pensei ver, em dias da minha vida, até aqui serena. Por exemplo, vê-se no modo como especialistas e universitários apareceram a falar numa questão de bifes. Pessoas que muito respeito, como Henrique Pereira dos Santos, ou outras que também merecem respeito, como Manuel Cancela d’Abreu, da Universidade de Évora («Carne de vaca - e porque não?»). O que me impressiona e aflige é que falem agora, apenas agora, a propósito de uma questão menoríssima mas que se tornou estupidamente numa querela política, com todas as críticas ao reitor a surgirem de forma alinhada da mesma área ideológica. Há meses, não muitos, o Governo aprovou e fez publicar no jornal oficial o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050). Ora, e como bem se assinala aqui, neste artigo de três professores do Instituto Superior Técnico especialistas em Ambiente e Energia, esse Roteiro preconiza «uma redução significativa do número de bovinos em Portugal em 2050 com base na constatação, correcta, de que constituem um significativo contributo para as emissões de metano, um gás com forte efeito de estufa». Este artigo aconselha ponderação e louva as pastagens biodiversas, na linha do Roteiro para a Descarbonização, que contou nessa parte com a assessoria técnica da Agroges e de uma personalidade que muito admiro, Francisco Avillez, penso que insuspeito de ser um extremista da esquerda radical. Leiam o que diz, aqui.
Admiro-me, por isso, que os que agora criticam o Reitor, intervindo e politizando uma questão menoríssima, não tenham, ao que sei, criticado o que mais importa, porque de maior alcance, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica e a sua aposta numa redução, numa redução significativa, do número de bovinos. O Roteiro esteve em consulta pública, foi amplamente debatido, e o facto de a celeuma se ter instalado por causa da micro-decisão de um Reitor e não por causa desse Roteiro – que, insiste-se, aponta para uma redução significativa do número de bovinos – é a prova, mais uma, da indigência do debate público em Portugal.
E, no meio de tudo, a questão essencial fica sempre por responder, e é esta: reduzir o consumo de carne de vaca é ou não é positivo para a saúde pública e para o ambiente? Reduzir, como aqui se diz, é ou não positivo para o planeta e para a nossa vida?
Se a resposta for negativa, se não fizer sentido diminuir a produção e o consumo de carne de vaca, então porque é que o Roteiro para a Descarbonização fala disso? E, se fala, porque é que os actuais críticos do Reitor de Coimbra não o criticaram? Se as pastagens são boas para fixar carbono, e se só olharmos a essa realidade, deveremos então comer ainda mais carne do que aquela que comemos? Uma coisa parece-me evidente: o que o Reitor fez não foi mais do que um tímido contributo, na sua limitadíssima esfera de actuação, para concretizar objectivos inscritos numa Resolução de Conselho de Ministros de Portugal.  
Se a resposta for positiva, se se entender que a produção e o consumo de carne são danosos para o ambiente e para a saúde pública, que é necessário haver moderação, então para quê questionar o que foi decidido em Coimbra?
São estas perguntas que deixo, numa tentativa de abordar serenamente um tema que, convenhamos, bem merecia ser mais consensual e pacífico. Serenity, please.
 
 
 
 
 
 

3 comentários:

  1. Por favor não desista. É este um dos espaços de lucidez e bom senso, onde venho regularmente. Obrigado

    ResponderEliminar
  2. Muito bom. Obrigado por continuar a falar deste assunto.
    É um assunto muito importante e não percebo como é que as pessoas respondem e criticam tão levianamente sem terem o mínimo de noção das bases científicas que sustentam estas iniciativas.
    E nem se fala também que o consumo excessivo de carne, principalmente as vermelhas, é uma das maiores causas de problemas cardíacos a nível mundial.

    ResponderEliminar