Apresentação de Asilo Político em Tempos de Salazar,
de Luís Bigotte Chorão
Espero que o Luís me dê o oneroso e
operoso privilégio de continuar a apresentar os seus livros, o que, dado o
ritmo e o volume da sua produção, se vai convertendo quase numa ocupação a
tempo inteiro.
Mas
essa carreira profissional de apresentador dos livros do Luís Bigotte Chorão,
devo esclarecer os presentes, até porque entre a distinta audiência pode estar
alguém da Autoridade Tributária, essa carreira profissional, dizia, é
excepcionalmente remunerada – e a pronto – pela amizade de uma pessoa que todos
nesta sala, e a quem saúdo, reconhecem como um cultor único, absolutamente
único, daquilo a que Raïssa Maritain chamou, num livro hoje pouco lido, les grandes amitiés.
Dispenso-me
de lhe fazer o retrato a sépia ou de tentar dar-vos sequer um esquisso tosco da
personalidade do nosso Autor, que conhecem tão bem ou melhor do que eu,
abstendo-me também de falar da sua produção pretérita, até porque não quero roubar
o tempo nem esgotar a paciência dos presentes que vieram cá, obviamente, para
ouvir o Dr. José Pacheco Pereira, a quem saúdo muito calorosamente.
Nas
apresentações de livros – e falo, uma vez mais, como apresentador profissional
ao serviço do Doutor Bigotte Chorão – há dois erros diametralmente opostos em
que caem os apresentadores.
O
primeiro erro que muitos apresentadores cometem é o de se tornarem arguidos,
vendo no autor um catedrático arguente, e sentirem-se, portanto, na necessidade
de, perante o autor e perante o auditório, fazerem a prova plena, por vezes a prova pleníssima, de que leram o livro
de fio a pavio, que percorreram todas e cada uma das notas de rodapé, que compulsaram
a bibliografia nacional e estrangeira, que atentaram nos dados surpreendentes trazidos
pela obra. Pois bem, este livro tem uma tal abundância de informações novas,
uma erudição de tal forma esmagadora, o autor, como é seu bom costume, fez um
trabalho de tal forma exaustivo nos arquivos, no levantamento da bibliografia,
até no contacto com protagonistas ou seus descendentes – como é o caso da
família do embaixador Ernesto Pablo Mairal – que um apresentador fazer a prova
de que leu este livro é uma tarefa muito árdua.
De
todo o modo, e à cautela, e para vos poupar à maçada de relatar o muito que
aprendi aqui, fiz questão de, numa longa conversa telefónica com o autor, na
tarde do passado sábado, lhe ter apresentado, espero eu, provas concludentes de
que o livro foi lido no muito que nos traz, como, por exemplo:
-
uma importantíssima carta enviada por Salazar a Juscelino Kubitschek, e a
resposta deste, não menos interessante, e, a par disso, outras provas do
envolvimento pessoal e directo de Salazar em todo o processo (por exemplo,
corrigindo uma importante carta do ministro Marcello Mathias para o embaixador
argentino, de Março de 1959);
- a
revelação da enigmática personalidade que Álvaro Lins trata com as iniciais
L.C.F., e o papel do Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira no apoio moral e
amigo e até técnico-jurídico ao embaixador brasileiro, que era, ele próprio, convém
dizê-lo um jurista de mérito, formado na prestigiada universidade do Recife;
-
a correspondência trocada entre Álvaro Lins e Henrique Galvão, que demonstra
até que ponto se dera em Lins uma transformação ideológica profundíssima
(recordemos de onde vinha – e para onde foi!) e que para essa evolução a
passagem por Lisboa foi o momento-chave – aliás, uma passagem pela capital de
um país que sempre amou, ao contrário do que tentará dizer a propaganda
salazarista;
-
a desmontagem do mantra mirabolante
de que teria havido uma concertação ou uma conjura entre os embaixadores
brasileiro e argentino, mas ao mesmo tempo a consciência de que o apoio de Lins
a Mairal foi essencial para este ter actuado como actuou após Henrique Galvão
lhe ter pedido asilo;
-
a percepção clara de que o asilo de Delgado e Galvão foi um momento de uma
importância política crucial na evolução do regime, e que a partir daí nada
seria como dantes; explicando melhor, e acho que esta é a razão pela qual este
livro, talvez não parecendo (os mais desprevenidos julgarão, porventura, que
este é um livro apenas sobre o asilo de Delgado e Galvão, esmagador nos
pormenores, que encerrou definitivamente esta micro-questão), é um livro
fundamental que dá um contributo decisivo e um impulso totalmente inovador para
a compreensão da oposição ao salazarismo e para o diagnóstico do salazarismo
naquela altura. E a questão é a seguinte: a historiografia deste período, ou se
quisermos a historiografia das oposições ao Estado Novo, salienta, e bem, as
eleições de 1958, o golpe da Sé (sobre o qual, pasme-se, não há ainda uma
monografia!), etc., e o pedido de asilo de Delgado e Galvão, mas falando agora
sobretudo de Delgado, é encarado como um intermezzo
ou um fugaz percalço de chancelaria sobre o trânsito do General Sem Medo de Portugal para o Brasil, quase uma bizantinice jurídico-diplomática
destituída de relevância política, um simples sobressalto episódico, que se
arrastou por três meses, um pouco mais do que era devido, mas que no final se
resolveu a contento de ambas as partes e, portanto, não é por aqui que passa o
essencial do percurso biográfico ou político do general Delgado (ou do capitão
Galvão). Ora, o que este livro mostra é que, muitas vezes na surdina das
chancelarias ou dos corredores da diplomacia, no silêncio dos gabinetes
perfumados, a questão do asilo de Delgado e de Galvão tem uma importância – uma
importância política – essencial,
fulcral, para compreendermos até, e não estou a exagerar, porque é que Humberto
Delgado teve o fim trágico que teve às mãos de uma brigada da PIDE. E para
compreendermos, de caminho, até que ponto a questão dos asilos se transformou
num instrumento de fazer oposição ou uma saída de escape para a oposição que
era feita. Até à publicação deste livro, e acreditem que não estou a exagerar
por amizade ao autor, tudo isto esteve na penumbra por duas razões: a primeira,
e mais óbvia, é que o essencial deste caso se jogou, como disse, em telegramas
confidenciais, em cartas secretas ou muito reservadas, discretíssimos diálogos
singulares, em discussões infindas sobre tecnicalidades jurídicas ou aspectos
quase caricatos, como, por exemplo, o que resultou na saída do ex-candidato
presidencial num táxi, da embaixada do Brasil. Em contraste com a estridência,
ou com a estridência possível, da actividade oposicionista, tudo aqui se
processou na suave penumbra das chancelarias ou dos chamados contactos ao «mais
alto nível». E, por isso, o que sobra dessa memória está hoje soterrado em
arquivos silenciosos, arquivado na memória de protagonistas extintos ou em vias
de extinção, protegido pelo sigilo de Estado e pelas regras da civilidade
diplomática. Esse é um dos motivos pelos quais a importância política deste
caso permaneceu em larga medida na penumbra ou, pior ainda, esteve ensombrada
por reminiscências que, por deliberada má fé ou erosão do tempo, acabam por
contaminar uma leitura adequada dos acontecimentos, como sucede, por exemplo,
com a afirmação de Franco Nogueira, que Luís Bigotte Chorão contesta, e bem, de
que teria havido um grave desentendimento entre o embaixador Álvaro Lins e o
general Humberto Delgado. Assim, o facto de a memória deste caso estar soterrada
– e só agora ver a luz do dia na sua plenitude, ou na plenitude possível – torna este livro ainda mais valioso, pois a
menorização deste episódio decorria, em larga medida, de ignorância dos factos,
agora finalmente vencida. O segundo
motivo que leva, ou levava, à menorização dos asilos prende-se com uma visão
historiográfica das oposições ao salazarismo que sobrevaloriza, por assim
dizer, os grandes confrontos já conhecidos ou os confrontos que tenham uma
dimensão pública notória e que tenham, se quisermos, causado escândalo e fragor,
geralmente envolvendo um número elevado de pessoas (como a campanha de 58) ou de
pessoas que, pela sua posição ou outras características (por exemplo,
conspirações de militares), poderiam abalar o Estado Novo ou até mesmo, no
limite, precipitar a sua queda.
Se
quisermos, o estudo do oposicionismo tem estado concentrado (1) em grandes movimentos, legais,
para-legais ou conspirativos; (2) em
gestos com elevado potencial subversivo, como assaltos a bancos, desvios de
aeronaves, de navios; (3) em acções
de partidos, de movimentos, de grupos mais ou menos inorgânicos; (4) em momentos emblemáticos de grande
simbolismo, que vão sendo alvo de um trabalho regular de rememoração ou
comemoração por parte dos seus protagonistas ou afins. Ficam, portanto, de fora
gestos protagonizados por indivíduos singulares ou isolados, que na aparência
não têm um potencial subversivo muito elevado ou pelo menos comparável ao das
acções colectivas, grupais ou tribais que acima enunciei.
Ora,
é justamente o que sucede nos pedidos de asilo que são protagonizados por um
homem solitário, um atirador isolado, um sniper
que pede abrigo e amparo e, com isso, transfere o seu problema do nível mais micro (um indivíduo só) para o nível
mais macro (as relações entre dois
Estados soberanos no contexto internacional). Ou seja, não há níveis «meso»,
níveis intermédios, o tema do asilo passa da acção individual para a esfera
geopolítica sem passar por fases ou escalões de mediação, como seriam os tribunais,
o Estado, a sociedade civil, associações, grupos ou partidos, o que quer que
seja.
É
isso que confere ao asilo um potencial de dano infinitamente superior ao gesto ou
ao poder de quem o pratica ou solicita, o asilo é uma bomba atómica fabricada e
detonada por um homem só.
Simplesmente,
do ponto de vista historiográfico – e se a historiografia estiver muito
concentrada, como está a nossa, no nível «meso», do Estado, dos partidos ou
grupos, das igrejas, das organizações – esta dimensão letal, de David contra
Golias, do asilo diplomático acaba por passar ao lado.
A
par da ignorância ditada por aqui não existirem fontes muito sonoras, mas sim
papéis confidenciais que só a paciência e o labor de pessoas como o Luís são
capazes de resgatar, a par dessa ignorância há também um enviesamento
cognitivo, digamos assim, da historiografia das oposições que leva a perder de
vista o alcance, o tremendo alcance, de um caso como o destes dois asilos – e
dos que se lhe seguiram.
-
outro ponto que referiria, se tivesse de provar que li o livro de fio a pavio,
é uma das imagens de marca do Luís Bigotte Chorão, a atenção aos aspectos
jurídicos que, se num caso como este são fundamentais, como é óbvio, têm um
valor importantíssimo para a reconstrução de redes de influência e
movimentações ao mais alto nível do Estado e com uma influência que os
historiadores – todos os nossos historiadores, à excepção do Luís Bigotte
Chorão – têm desprezado ou, se quisermos, menosprezado. Existem, naturalmente,
distintíssimos historiadores e distintíssimos historiadores do Direito, muito
dos quais se encontram nesta audiência. O que escasseia é quem perceba a
importância histórica e histórico-política não das leis ou de aspectos
estritamente jurídicos (códigos, sentenças, etc) mas de dimensões ligadas ao
periodismo jurídico (por exemplo, a composição das redacções das grandes
revistas jurídicas e o que isso nos diz para a compreensão das teias e redes de
elites), aos corpos universitários ou outros (e o Luís é um atento leitor das listagens
de antiguidade dos magistrados, da composição dos corpos dirigentes da
advocacia e demais profissões forenses, dos elencos dos órgãos universitários,
etc. etc.), e, a par disso, de colóquios ou realizações ligadas ao ensino e à
investigação do Direito e que à distância nos parecem de pouco alcance mas que
na Lisboa paroquial de um país periférico dominado por juristas tinham uma
importância enorme, que dificilmente poderá ser sobrevalorizada. Veja-se, por
exemplo, e cá estou a demonstrar a leitura do livro, o modo como o Luís
«descobre» a amizade entre Cavaleiro de Ferreira e Álvaro Lins através do
colóquio Luso-Brasileira ou a importância do Congresso Hispano-Luso-Americano
de Direito Internacional, reunido em Madrid em 1951, e em que estiveram os mais
eminentes jus-internacionalistas. Ou a importância dos textos que Marcelo
Caetano escreveu sobre o asilo, bem como de um estudo – ou de dois, um deles
permanece por descobrir – que o embaixador Carlos Fernandes dedica ao assunto.
–
a propósito deste parecer do embaixador Carlos Fernandes, feito na sequência de
um estudo que foi publicado na revista O
Direito, não resisto a contar o seguinte: na conversa que tive com o Luís
no passado sábado, em que ele me instruiu sobre os elogios que devia fazer à
obra e sobre os pontos fracos que devia ocultar, nessa conversa às tantas
envolvemo-nos numa discussão sobre a probabilidade de o famoso parecer do
embaixador Carlos Fernandes não ter existido e de ser, porventura, um lapso de
memória do diplomata, pois o facto é que o famigerado parecer não aparece em
lado nenhum. Estávamos a trocar argumentos e contra-argumentos, falando de um
livro do embaixador (Recordando o Caso
Delgado e Outros Casos), e, às tantas, ao fim de alguns minutos eu digo ao
Luís - «se alguém estiver a escutar esta conversa sobre um parecer com dezenas
de anos de um embaixador, uma conversa entre dois sujeitos de meia-idade, um
eminente jurista do Banco de Portugal, outro um modesto servidor da Presidência
da República, se alguém, ou serviço secreto ou assim, estivesse a escutar esta
conversa a meio de um sábado à tarde chuvoso que pensaria?, perguntei eu.
Respondeu o meu querido Luís, de imediato: «dois tarados!»
Pois
é esta insanidade dos papéis, esta insanidade feliz dos papéis, que faz a
delícia e é o traço distintivo da historiografia de Luís Bigotte Chorão,
atrevendo-me eu a dizer – e o Dr. Pacheco Pereira perdoar-me-á – que hoje têm
diante de vós um trio de tarados dos papéis velhos dos quais, se permitem, eu
sou o menos qualificado e, logo, o menos tarado de todos.
Já
agora, e um pouco a talhe de foice, ou como diria o jurista Luís a latere, eu geralmente orgulho-me da
dimensão quilométrica da minha biblioteca, mas hoje encontro-me aqui um pouco
esmagado e entalado entre duas das maiores bibliotecas privadas do país, quase
me apetecendo lembrar a anedota que se contava de Ronald Reagan, creio que
era dele, de que tinha apenas dois livros na biblioteca e um deles já tinha
acabado de colorir...
Mas,
enfim, desculpem, regresso a temas sérios, porque o livro, além do mais, é um
livro de enorme seriedade intelectual.
E,
por isso, perante esse livro eu poderia cometer o outro grande pecado dos
apresentadores. O primeiro como vimos, é quando o apresentador toma as vestes
de arguido perante o autor-arguente e sente a obrigação de fazer a prova, a
prova diabólica, de que leu o livro. O segundo pecado é o oposto, é quando o
apresentador enverga as vestes doutorais de arguente e coloca o autor á prova,
esquadrinhando as falhas, as omissões, até as gralhas, os defeitos de tipografia.
A propósito de gralhas e erros de escrita, seja-me permitido, já agora, contar
uma petite histoire, creio que
verídica e creio que passada com o Professor Adelino da Palma Carlos, julgo que
no seu doutoramento, mas o Luís corrigir-me-á. Na sua discussão de
doutoramento, perante um catedrático que não parava de apontar ao candidato as
gralhas da sua tese terá o Adelino Palma Carlos objectado, com a corajosa
frontalidade que muitos de nós conhecemos, que estava ali a fazer exame para
professor de Direito e não para revisor da Imprensa Nacional-Casa da
Moeda.
Portanto,
e porque o Luís não está a prestar provas académicas nem a fazer exame para
revisor da Casa da Moeda, e, já agora, porque se dá a feliz coincidência de,
dos três membros desta mesa, nenhum ser historiador académico, não irei cometer
o segundo erro dos apresentadores, o de se figurarem desastradamente como
arguentes universitários.
Mas
cometerei, e assumidamente, o terceiro erro, o erro maior e mais grave das
apresentações de livros, que é o que ocorre quando o apresentador não fala do
livro que está escrito e publicado, pronto a ser comprado e assinado no final
da cerimónia, mas fala antes de um livro-outro, o livro que o apresentador
gostaria que o autor escrevesse ou, pior ainda, o livro que o apresentador
gostaria de ter escrito mas não escreveu, nem nunca seria capaz de escrever.
Não
vou, como é evidente, dizer o que não está no livro mas deveria estar, não é
nada disso, mas apenas apresentar alguns tópicos muito sumários e telegráficos
sobre coisas em que me pus a pensar a partir da leitura do livro do Luís e que,
como é óbvio, são reflexões sem qualquer sentido.
1
– A primeira tem um pouco a ver com a leitura que fiz do último livro de Jared
Diamond, Como se Renovam as Nações, e
uma recensão que publiquei sobre ele a semana passada no Público.
O
livro de Diamond – e, antes e melhor do que eu, esse problema foi notado há um
par de semanas por Niall Ferguson no Times
Litterary Supplement – o livro de Diamond faz uma analogia um pouco
excessiva entre comportamentos individuais e comportamentos colectivos,
estaduais ou nacionais, e resvala num certo antropomorfismo que, como sabem,
marcou muito as noções de corpo da nação, etc.
A dado passo, Jared Diamond quase chega, ou chega mesmo, a dar conselhos
de autoajuda ou de coaching para as
nações em crise, dizendo que devem ser resilientes, autoconfiantes e algo do
género.
Pois
o livro do Luís Bigotte Chorão não comete obviamente este erro, eu é que o vou
cometer – como disse, as minhas reflexões são muito desastradas – ao ligar a
questão do asilo, acima de tudo, a uma questão de honra, de honra nacional e de
honra individual, da honra dos protagonistas e dos intervenientes.
Esta
é a tal dinâmica David e Golias a que atrás me referi. Um indivíduo solitário,
mesmo que apoiado por uma organização mais ou menos vasta, assim, que entra
numa embaixada e pede socorro sob a forma de asilo está a abrir um problema de
honra internacional – e o direito internacional, juridicamente precário, com
uma codificação incipiente, com poucas leis unanimemente aceites e de escassa
força vinculativa (por exemplo, sobre o asilo, em que havia uma «tradição»
sul-americana diversa da «tradição» europeia e em que se buscaram afanosamente
«precedentes», exaustivamente recenseados neste livro como o dos integralistas
brasileiros e o embaixador Martinho Nobre de Melo, o que permitirá ao autor,
como desejamos, escrever em breve uma
obra sobre os asilos diplomáticos no século XX português), o direito e as
relações internacionais são muito feitos à base da imagem, da reputação, da
honra de cada Estado soberano, e, ao longo dos séculos, é isso que tem
alimentado as guerras e feito milhões de mortos, o pundonor nacional.
Um
indivíduo que pede asilo cria um problema tão grande ou maior ao país anfitrião
do que ao Estado de onde está a fugir. Pela simples razão de que, com o seu
gesto, coloca duas honras nacionais em disputa e abre, portanto, uma guerra,
mas uma guerra travada dentro do território do seu país. E aqui até poderíamos
inverter os termos da célebre fase de Clausewitz, dizendo que não é tanto a guerra que é a continuação da política por
outros meios, mas a diplomacia que se
torna a substituição da guerra por outros meios, tentando remendar ou
reparar o orgulho ferido de uma nação – que vê o seu cidadão pedir o refúgio
não de uma ONG ou de uma igreja mas de outra nação.
A
partir daí, a partir desse momento, todo o relacionamento bilateral entre os
Estados – tudo, pescas, comércio, cooperação militar, visitas oficiais, como a
de Kubitschek a Lisboa – tudo, mas tudo, passa a ser feito em torno e à luz do
caso do cidadão A ou B, chame-se Humberto Delgado ou Julien Assange, que
colocou um pauzinho na engrenagem,
como dizia a música de 1972 do José Mário Branco. Depois de resolvida a
questão, num sentido ou noutro, há cerimónias e gestos reparadores, como o
convite a Juscelino nas comemorações do quinto centenário do Infante, proclamações
de eterna amizade, banquetes, trocas de condecorações, mas as feridas demoram a
sarar e fica um espinho encravado ou um pauzinho na engrenagem durante muito
tempo.
Aprofundando
um pouco este meu exercício de psicologia barata, há um livrinho hoje
esquecido, e provavelmente justamente esquecido, que se chama Games People Play, precisamente sobre os
jogos nos relacionamentos interpessoais, amorosos, entre pais e filhos, com
figuras de autoridade, nestas liturgias das apresentações de livros, etc., etc.
E
eu pus-me a reler o livro do Luís um pouco nesta perspectiva da honra, do
ultraje, dos jogos e artifícios, das encenações e ritos que são gerados em
torno do pundonor nacional e há coisas que são, de facto, muito curiosas e até
nos permitem ler o livro do Luís sob um novo olhar. Por exemplo, é muito típica
a reacção de menorização do caso, tratado como um «incidente», justamente para
tentar minimizar o seu impacto na honra nacional. Porque o asilo, sendo um acto
solitário, é um gesto público, amplamente publicitado, um psicodrama que se desenrola
a um tempo no silêncio das chancelarias mas, a outro tempo, sob os holofotes da
imprensa e dos noticiários. Mesmo que num dos Estados envolvidos haja censura à
imprensa, os ecos do outro lado, do que se passa no outro Estado, acabam por se
disseminar, bem como o efeito bombástico em fóruns ou areópagos internacionais.
É aí que se cria, e uma vez mais cá estamos num domínio bélico e psicológico,
uma comunidade de inimizade ou, melhor dizendo, duas comunidades ou
fraternidades, alinhando uns Estados a favor de uma nação, outros a favor da
outra, para não falar das respectivas opiniões públicas. Este era um ponto
essencial para o modo de fazer oposição no pós-guerra, com uma permanente busca
da atenção da opinião pública internacional para a ditadura portuguesa e com a
tentativa de trazer a Portugal nomes influentes como Aneurin Bevan, Pierre
Mendès France, Joe Grimond. Também qui, no caso do asilo de Delgado, há uma
intervenção externa, a da Comissão Internacional de Juristas e de Norman Marsh,
e igualmente do escritor Erico Veríssimo, vindo a Lisboa onde se encontrou com
as notabilidades culturais da oposição, mas o que me parece curioso, a menos
que tenha sido erro meu de percepção, é que os Estados Unidos, que pouco antes
haviam manifestado interesse na situação do general, depois não pareçam
acompanhar o caso com muita intensidade.
Note-se
que, sem haver propriamente uma combinação prévia, ao contrário do que quis
fazer crer a propaganda, o Brasil e a Argentina se articularam através dos seus
embaixadores. E Estados que estavam á margem, e até aí estavam silenciosos ou
passivos, passam a intervir, a favor de um beligerante ou de outro (veja-se a
posição do México ou da Guatemala sobre o memorando das Necessidades de Maio de
1959) – ou, tentando explorar uma oportuna «terceira via», procuram capitalizar
alguma coisa para si e para a sua honra ou reputação, oferecendo-se como
mediadores ou árbitros, na convicção correcta de que um mediador, por se situar
numa posição supra partes, em termos de honra ou prestígio fica sempre acima
dos dois beligerantes.
A
propósito desta questão da honra ultrajada do Estado, neste caso do Estado
português, na nossa conversa de sábado intuí talvez uma pequena divergência na
leitura que eu e o Luís, ou melhor, que o Luís ou eu fazemos, mas não é uma
questão de honra, garanto.
O
Luís entende que o regime e Salazar caíram na cilada e, estupidamente, em vez
de resolverem a questão Delgado em 48 horas, como pretendia o embaixador do
Brasil, em vez de esvaziarem o balão e matarem a questão à nascença, por
inércia e outras razões deixaram que o problema se avolumasse – e, de facto,
nesta questão da gestão do asilo os timings são fundamentais, havendo quase
sempre dois tempos – ou tudo se resolve em dias ou em numa semana, como os
sequestros (e o asilo tem muito de sequestro…) ou então os peticionários ficam
a apodrecer nas representações diplomáticas meses ou anos. Porquê? Uma vez
mais, por orgulho e enquistamento para evitar perder a face, que o mesmo é dizer,
hipotecar a honra.
A
minha pequena divergência com o Luís é que eu acho que esta leitura, a da
resolução em 48 horas do caso Delgado, assenta num wishful thinking retroactivo ou retrospectivo e será talvez um
pouco contaminada pela admiração que o Luís tem pelo embaixador Álvaro Lins e
pelo desprezo que nutre por Oliveira Salazar. No fundo, e desculpar-me-ás,
resolver a questão em 48 horas é o que tu achas, e muito bem (e que Paulo Cunha
também achava), que teria sido mais inteligente fazer, essa era o modo como tu,
Luís, um cavalheiro dialogante e pouco dado a melindres, terias resolvido o
caso, uma vez mais, como é teu timbre, com inteligência e com aquilo que é
muito mais raro do que a inteligência, o bom senso. É indubitável, aliás, que o
arrastamento do processo não impediu que, depois, por um efeito mimético ou de
contágio tenha existido uma vaga de asilados, que o livro muito bem descreve.
E
aqui se vê, com alegria, que as personalidades do doutor Bigotte Chorão e do
doutor Oliveira Salazar são muito diferentes, graças a Deus. Sem entrar ainda
mais em psicologismos de café, o que se passa é que o entendimento que Oliveira
Salazar tinha de honra nacional – e da sua honra pessoal, irmanada à da nação
portuguesa – não se compadecia com um pragmatismo desse tipo.
Salazar
terá sido dos dirigentes políticos mais pragmáticos da nossa História, mas o
seu pragmatismo situava-se na defesa dos interesses pessoais, quando conciliam
com os da nação (a neutralidade da 2ª Guerra era boa para Portugal porque,
acima de tudo, era boa para a sobrevivência política do ditador em qualquer dos
cenários). Aqui, no caso Delgado, e por se tratar de Delgado, estava ferida a
honra de Portugal, mas também, ou primordialmente, a honra do Presidente do
Conselho – e talvez isso nos ajude a iluminar o fim trágico do general, mas
isso são contas de outro rosário.
Tento
explicar-me: a concepção de honra nacional/pessoal de Salazar levou-o a actuar
como actuou na questão de Goa, punindo o general Vassalo e Silva e os que não
aceitaram oferecer-se em sacrifício pela pátria desonrada. Num regime que
segregava décadas de nacionalismo a questão da honra colocava-se de uma forma
muito específica, e, neste caso, ainda mais específica pois estava em causa o
Brasil, com o qual tínhamos, muito mais do que hoje, uma relação que era próxima,
mas também edipiana ou esquizofrénica, nos dois sentidos. O Brasil com uma
significativa e influente colónia portuguesa, o Brasil – e esse ponto é
decisivo – que passou a ser um actor de primeiro plano na questão da Índia, o
que obriga Salazar a despir por momentos a farda, fardão do orgulho e da honra
e a envergar com humildade as vestes do pragmatismo e a escrever a Juscelino
Kubitschek – uma carta, como sempre, notável na sua forma e no seu estilo.
É
a honra própria de uma nação, de uma comunidade
de destino multissecular, ou assim imaginada e projectada, que leva ao orgulhosamente sós e que explica, em
larga medida, a continuação por 13 anos de uma guerra colonial contra mundum, e quando dizem que
Marcello Caetano recuou nos sonhos autonomistas por ter ido a Africa ou por ter
sentido o vibrante apelo da população branca uma vez mais é o lado emocional da
honra que avulta, pois, a par de considerações sobre o destino dos portugueses
em África, Marcello sentia o frémito de uma honra construída por oito séculos
de História que, de resto, ele conhecia como poucos. E, mais ainda, sentia o
peso da honra imaculada que lhe fora legada pelo seu antecessor, que morrera com
Angola ainda nossa. Marcello Caetano não quis ficar com a desonra, para o País
e para ele próprio, de ser, como mais tarde lhe chamou a extrema-direita no
pós-25 de Abril, o «coveiro do Império». No fundo, e em poucas palavras, no seu
estertor, na sua agonia, o Estado Novo acabou por ser vítima da mitologia que
ele próprio criou e segregou durante quase cinco décadas. Dirão os cépticos que
estou a exagerar, que todos os Estados têm o seu conceito de honra e todos se
comportam mais ou menos da mesma maneira. Concordo, em parte, mas permito-me
acrescentar que a honra nacional autocrática e que a honra de um regime com um
ADN nacionalista têm um conteúdo muito particular e que não eram muitos os
Estados em que um governante carregava sobre os seus concidadãos, de uma forma
tão vincada, a memória da honra pretérita, dizendo-lhes que só havia um motivo
para chorar os mortos, que era não saber merecê-los, não estar à altura da sua
honra, da sua honra sacrificial,
tanto mais gloriosa quanto tombada e caída em combate.
Desculpem
se estou a perder muito tempo e a forçar esta nota da honra, mas ela é
importante para perceber que não era só a honra nacional a estar envolvida mas
também a honra de duas personalidades, digamos, agrestes, Humberto Delgado e
Henrique Galvão, imensamente atreitos, até por formação e ética castrenses, a
melindres e querelas de honra.
E,
já agora, o asilo também coloca questões de honra – e a vida diplomática, tanto
ou mais do que a vida militar, assenta muitíssimo nelas – dos embaixadores envolvidos.
Daí ser fundamental, para compreendermos o espaço cénico onde estamos e o teatro
que diante de nossos olhos se desenrola, daí ser fundamental conhecer a personalidade
dos actores, e o livro, até por isso, merece ser louvado, pois percebe que numa
questão como esta as questões pessoais ou psicológicas têm um papel decisivo,
nuclear.
É justamente por isso que, para usar
uma expressão do livro, creio que consagrada também na prática diplomática, se
tiveram de abrir «canais alternativos». Justamente para salvaguardar a honra
dos diplomatas acreditados em Lisboa ou para fazê-los, digamos assim, e usando
uma vez mais linguagem dramatúrgica, fazer sair de cena sem grandes custos para
o seu prestígio. É por isso que a dado passo começam a ter intervenção decisiva
os ministros dos negócios estrangeiros e o embaixador de Portugal no Brasil.
Havendo, ainda assim – e, uma vez mais por uma questão de honra – de evitar que
os canais alternativos não ofendessem o embaixador em Lisboa. Daí as
proclamações reiteradas de que o embaixador Lins liderava o processo, tinha a
confiança do seu governo, mesmo que depois as coisas no fossem exactamente
assim (e é curioso que esse aval ao embaixador foi dado logo no início do caso
pelo ministro Negrão de Lima, com a concordância do embaixador português no
Rio). Na abertura de canais paralelos havia que proceder com cautela, para não
fazer o embaixador perder a face nem para lhe causar melindres, o que, de certo
modo, veio a acontecer com Lins. Em todo o caso, havia que manter a fachada e
aparência de que dera ele que controlava as coisas, pois é disso que se faz, ou
é também disso que se faz, aquilo a que Lawrence Durrell chamou cenas da vida diplomática.
Por
tudo isto, e em suma, creio que dificilmente as coisas se poderiam ter processado
de outra forma e de uma forma mais célere, pois a gestão e a digestão da honra
exigiam impasses, compassos de espera, enquistamentos em querelas quase
caricatas, mas que quando a honra está envolvida têm um valor substantivo e
supremo, avanços e recuos, tudo para no final se chegar à solução que bem
poderia ter sido resolvida em 48 horas se imperasse a racionalidade. Só que,
quando o que está em causa a honra, não é a racionalidade que impera, mas, isso
sim, a irracionalidade das paixões e dos orgulhos feridos. A psicologia da negociação
é, de facto, uma filigrana ou uma ourivesaria muito complicada.
2
– Uma outra coisa em que me pus a pensar, e um pouco relacionada com a questão
da honra nacional, é a seguinte: a concessão de um pedido de asilo é sempre um
ultraje ao outro Estado porque, explícita ou implicitamente, envolve a
declaração de que esse Estado não é um Estado de direito, ou não é uma democracia
ou não é um regime que salvaguarde sequer a segurança dos seus nacionais.
Se isso é visível no caso Delgado,
torna-se ainda mais patente no caso Galvão. O regime afirmou repetidamente – e
bem – que os dois casos eram distintos, como de facto eram, pois sobre Delgado
nada impendia enquanto Galvão tinha sido condenado e apresentara-se na Avenida João
Crisóstomo depois de uma rocambolesca fuga do Hospital de Santa Maria, cujos
contornos nebulosos ou de tão inusitados nos fazem suspeitar ter havido alguma
cumplicidade das autoridades, ou de algumas autoridades. É um pouco a ideia do Luís
como me disse, e creio que não comento uma inconfidência, pois é também um
pouco a minha e sobre isso o Ico Teixeira da Mota poderá esclarecer-nos melhor,
mas a carta de Neves Graça, da PIDE, ao ministro da Justiça, de Novembro de
1958, e aqui publicada, é muito sugestiva.
Galvão era um foragido à justiça, que
para mais escrevera coisas bombásticas, literal e deliciosamente bombásticas,
contra Salazar e, cá estamos de novo a usar esta palavra, contra a honra
pessoal de Salazar, contra o seu orgulho e preconceito.
Note-se
como emerge aqui um estranho e singularíssimo bouleversement, que, na perspectiva da imagem e do prestígio do
regime de Salazar, aproxima tudo isto já não tanto de um simples bouleversement mas até mesmo de um
conceito muito mais trágico e germânico, o conceito de Ernstfall, de emergência catastrófica.
E o bouleversement é este: o mais importante da dupla, era o general
que tinha sido o candidato presidencial, não era o capitão que escrevia livros
sobre bichos e que fora comissário de uma exposição colonial e que em 1946 fizera
um estrondoso aviso prévio sobre o trabalho forçado nas colónias. Mas é sobre
Delgado, só sobre ele, que o governo português tenta serenar a Casa Branca,
através do embaixador em Washington, Luís Fernandes, antes mesmo de o general,
que estivera na América, pedir asilo aos brasileiros.
Simplesmente, e aqui voltamos ao David
e Golias (ou àquela imagem extraordinária do homem sozinho frente aos tanques
de Tiananmen), o David-Galvão contra o Golias-Estado Novo era um foragido à
justiça e daí que permitir a sua ida para a Argentina seria pôr em causa a honra
do poder político, mas também do poder judicial e mais do que isso, muito mais
do que isso, implicaria admitir que Portugal, ao contrário do que fazia crer, e
que era uma marca da sua honra perante o mundo ocidental do pós-guerra, não era
um Estado de direito nem um regime respeitador dos direitos, liberdades e
garantias. Deixar partir Delgado era deixar partir um dissidente, um dissidente
trovejante, mas um dissidente. Deixar partir Galvão significava dizer que as
suas condenações em sucessivas instâncias eram tão iníquas como os julgamentos-espectáculo
ou julgamentos-fantoches da URSS de Estaline e dos seus países satélites. O
livro termina, aliás, com uma citação do diário de Josué Montello em que se
traça um paralelo entre a Rússia da «implacabilidade da polícia de Stalin,
prendendo, matando, enterrando», por um lado, e,. por outro, o «meu querido
Portugal», onde se ouvia o «gemido dos presos políticos» nas imediações da
embaixada do Brasil, recordando Montello o nome de Álvaro Lins, um amigo com
quem se desentendera e reconciliara.
É que aqui, e prometo que é a última
vez que uso a palavra honra, colocava-se também uma peculiar questão de honra,
a honra da Guerra Fria, em que os dois blocos, não podendo digladiar-se
directamente e à bomba, à bomba atómica, se envolviam em controvérsias de honra
por todo o planeta – e a propaganda deste lado da Cortina de Ferro insistia,
vezes sem conta, que o lado de lá não respeitava os direitos humanos.
Portugal tornava-se assim o parente
incómodo do bloco NATO, abria uma brecha nas muralhas do humanismo ocidental, e
talvez eu esteja a exagerar e a levar longe de mais estas minhas congeminações,
mas veja-se o que desperta, a um nível macro, o caso de um cidadão isolado. Não
estou com isto a dizer que Galvão tenha sido um daqueles casos isolados que
marcam a Guerra Fria, como o Soljenitsine ou o Vladimir Bukovski, que morreu há
pouco, ainda que por cá pouco se tenha notado, até em termos mediáticos ou no
frenesi parlamentar dos votos de pesar. Mas li há uns tempos a grande e
monumental biografia do Nureyev da Julie Kavanagh – e realmente a importância
que teve a fuga dele em Paris – uma coisa muito parecida com o asilo – é
enorme, como tive ocasião de escrever há umas semanas numa crónica no Diário de Notícias.
Henrique Galvão era um homem de muitos
bailados, mas não era um Rudolf Nureyev, e o que eu pretendo dizer é que a
ferida que abriu foi, num certo sentido, mais funda do que a de Delgado, bem
mais funda do que julgamos.
Daí que o regime, inclusiva por via de
porta-vozes oficiosos como Marcello Caetano, tenha insistido vezes sem conta que
Galvão fora condenado num processo justo por tribunais comuns, e, claro, que os
partidários do capitão tenham dito que os tribunais que o condenaram eram, e
cito, «tribunais fantasma».
Ora, num Estado Novo obcecado pela
imagem – pela imagem honrosa, desculpem… – pela sua imagem honrosa de legalismo
nas formas e nos procedimentos, num regime que, a bem ou mal, sempre realizou eleições
nos prazos impostos pela Constituição, o caso Galvão era muito mais afrontoso do
que o caso Delgado, remetido este para meras considerações de divergência política.
Tudo isto era um espelho e um reflexo
do Estado Novo ou, se quisermos, tudo isto envolvia a imagem que o regime
projectava não apenas no mundo bipolar da Guerra Fria, mas também para consumo
interno, para tranquilizar a consciência dos conformistas e manter a sanidade
da ordem pública.
Até aqui, e realmente era uma
personalidade diabólica…, Galvão se mostrava o mais subversivo dos subversivos,
um homem capaz de subverter até as mais elementares regras de cortesia e civilidade,
que teve a ventura de ser acolhido para a Argentina e que, a caminho para esse
país, ao fazer escala no Brasil, disse à imprensa que onde gostaria de ficar era
no país-irmão, rumando contrafeito para o Estado que generosamente o recebera… Não
muito depois de se fixar nas pampas, já está a chamar à Argentina «um país de
loucos».
E é a irrequietude de Galvão, o seu
desejo de ir para o Brasil, que começa a criar problemas na Argentina, como o
livro mostra. Porque um asilado nunca deixa de o ser, ou seja, mesmo após ter desembarcado
na Argentina Galvão continuava a ser um «problema». Possivelmente, problema
maior até do que quando estava cá, pois agora escapava ao controlo das autoridades
e da polícia política – uma polícia política que não hesitava sequer em ter sob
escuta embaixadores de países estrangeiros, ouvindo as conversas de Lins com
Assis Chateaubriand, uma polícia política que matava gente na sua sede, tendo
sido a visão de uma morte na António Maria Cardoso, o suicídio de Raul Alves,
presenciado por Heloísa Lins, que provocou o horror da mulher do embaixador
Lins e uma corajosa intervenção de Gonçalves Cerejeira junto de Trigo de
Negreiros (uma intervenção não tão corajosa como a da carta do bispo do Porto,
que abalara o país por aquela altura, mas ainda assim uma intervenção frontal e
digna de realce, até por não ser a única do Patriarca). Não quero exagerar, mas
na trajectória de Lins – que, como nos recorda o Luís, acabou a acolher em casa
um Carlos Marighella foragido e ferido à bala – na trajectória de Lins o episódio passado com
a sua mulher foi decisivo, talvez mesmo aquilo a que o fez mudar tão drástica e
sobretudo tão rapidamente. Os italianos chamam a isto irruzione, dificilmente traduzível por irrupção, um acontecimento
vulcânico, radicalmente transformador, e um homem que utilizou brilhantemente o
conceito de irrupção, de Einbruch,
foi Carl Schmitt naquele seu escrito sobre Hamlet ou Hécuba, ao qual já
dediquei umas dezenas ou centenas de insanas páginas, mas, como dizia, creio
que não é descabido pensar que a Einbruch
anti-salazarista do embaixador Álvaro Lins foi o episódio presenciado por sua
mulher Heloísa.
Repare-se
na velocidade vertiginosa dessa irrupção: em 1957 Lins recebe a Ordem de Cristo
e três anos depois, em 1960, já está a devolvê-la em termos cáusticos ao
embaixador Manuel Rocheta, e a abandonar a diplomacia e a romper com
Juscelino.
3
– Um último ponto que gostava de abordar telegraficamente – e desculpem, mas o
Luís fez o hara-kiri de me dizer «tu
tens o tempo que quiseres…» - prende-se com o paralelismo entre o asilo e o
sequestro, e com aquilo que atrás referi da psicologia da negociação.
A
leitura, há muitos anos, do livro A
Sombra, de Pacheco Pereira, levou-me a ler um livro apaixonante, aí citado,
que é Secrets, de Sissela Bok, filha
de Gunnar e Ava Myrdal, um livro extraordinário sobre a ética do segredo e da
revelação.
O
asilo apela, como poucos, para esta ética de segredo e revelação. Porque
convoca, no interior aveludado de uma embaixada, na discrição de uma
representação diplomática, segredos vários, o sigilo dos Estados e da sua arcanna praxis, o segredo da raison
d’État que levou Portugal a negar o asilo na metrópole enquanto o concedia
nas lonjuras de Timor, o segredo e o silencioso drama do ser humano que pede
refúgio, e a quem as regras e as praxes do asilo impõe a incomunicabilidade de sofrimento, mas também o resguardo da tensão
dos diplomatas e dos protagonistas políticos, que têm de contactar-se e
dialogar mantendo as aparências de normalidade numa situação que tem tudo menos
de normal e que todos aspiram seja resolvida o mais brevemente possível. Os
embaixadores e os adidos têm de manter-se imperturbáveis e fleumáticos, mesmo
quando se encontram num impasse de enorme tensão, e precisamente porque se
encontram num tempo suspenso de enorme tensão. E é aí, nesses momentos, que a dignidade
e a gravitas do Estado soberano têm
de ser preservadas ao máximo, na sua expressão mais majestosa, sereníssima.
Sobre
os processos de negociação em casos como estes, ou em situações de sequestro e
rapto, têm sido escritas bibliotecas inteiras, porventura bibliotecas maiores
do que as livrarias privadas de Luís Bigotte Chorão ou de José Pacheco Pereira.
Muito
se fala da síndrome de Estocolmo, em que o sequestrado se identifica com o seu
raptor, mas será talvez mais perturbador ainda pensarmos que essa síndrome
funciona num duplo sentido, e que a compaixão do sequestrador tantas vezes se
comunica ao sequestrado, mesmo que não seja capaz de o resgatar ou salvar de um
destino marcado.
O
que me assombrou foi ver o modo como, neste caso dos asilos de Galvão e
Delgado, a síndrome de Estocolmo actuou justamente nesse sentido, e é
extraordinário ver a compaixão e a paixão do embaixador pelo destino daqueles
dois homens efémeros, dois militares inflamados, intrépidos, à mercê do seu
país sombrio, vivendo o pior dos exílios, o exílio na própria pátria,
sequestrados por uma ditadura que sequestrara um povo inteiro. A carta que Lins
escreve a Galvão, oferecendo-lhe a sua ajuda, tratando-o por «mártir» e «herói»
exprime, também ela, um peculiar conceito de honra, mesclado com sentimentos de
piedade cristã a que a formação de Lins não era alheia. Como é evidente, e ao
contrário do que ventilou o regime, Lins não era um homem psicologicamente desequilibrado,
mas o facto é que a síndrome de Estocolmo se inverteu, em certo sentido, e
agora era ele que pedia asilo a Galvão, que se sentia sequestrado e aprisionado
na sua impotência para ajudar mais aqueles que via agora como seus camaradas de
armas.
Intersectado
por «factores emocionais de extrema sensibilidade», como escreveu Juscelino a
Salazar, tudo se processa, pois, num denso jogo de sentimentos, e, nas
entrelinhas, o livro capta de forma luminosa essa dimensão humana e o
rendilhado emocional que foi, ao cabo e ao resto, o elemento decisivo e fulcral
de todo este caso, do primeiro ao último minuto deste drama.
E
é também um jogo de sentimentos que aqui nos trouxe hoje, aqui, neste final de
tarde de Dezembro, que nos trouxe aqui para felicitar e abraçar o autor por
mais um livro seu, uma obra de enorme envergadura intelectual que é produto da
razão mas também – não duvidem! – da
terna e imensa emoção que o meu querido Luís coloca em tudo que é seu – e que,
a partir de agora, passa também a ser nosso.
Muito
obrigado.
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