terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa




 

 



Propósitos do estudo

 

Para se entender a mentalidade dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição criada em 1875, e que se veio a tornar a matriz do conhecimento do interior das colónias africanas, tendo mesmo gerado, pela agregação de figuras exemplares da política e da ciência, não só explorações audaciosas como estudos geográficos e coreográficos que se revelaram da maior importância para a fundamentação dos ideais do III Império, é preciso ler nos documentos da época. Nada melhor que ler as atas das sessões da Sociedade de Geografia, ir ao volume I onde estão coligidas as reuniões que ocorreram entre 1876 e 1881. Um aviso ao leitor: centramos este despretensioso estudo nas atas, mas há que complementar com a leitura dos boletins da Sociedade no tempo correspondente e sugere-se, no final do trabalho, um pequeno capaz de leituras, que em anexo se sintetizam. As atas têm o condão de revelar o pensamento dos homens num tempo circunscrito e numa atmosfera. Acresce que um bom número delas saiu do punho da figura tutelar da Sociedade, Luciano Cordeiro, só pela morte se apartou deste sonho que ele tornou realidade.

 




As primeiras sessões

 

Estamos em 7 de julho de 1876, aberta a sessão presidida pelo visconde de S. Januário, alguém propõe que se apresente ao governo de Sua Majestade a conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa, prestando-se a sociedade a promover uma subscrição nacional para auxiliar este empreendimento. A alocução de Luciano Cordeiro, figura capital da Sociedade de Geografia e seu primeiro secretário durante anos a fio, é extremamente reveladora:

“O Sr. Luciano Cordeiro disse que uma das ideias principais que haviam presidido à fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa fora o reconhecimento da urgente necessidade e do imperioso dever imposto a Portugal pelas suas tradições, pela sua situação de segunda potência colonial da Europa, pelos seus interesses económicos e políticos além-mar, de entrar definitivamente no movimento espantoso que as ciências, os estudos e as explorações geográficas estão exercendo lá fora; e que sendo uma das fases mais interessantes e mais acentuadas desse movimento o problema africano, desde os primeiros passos no trabalho desta fundação, ele e outros fundadores da sociedade tinham reconhecido e assentado que uma sociedade geográfica portuguesa deveria necessariamente começar por ocupar-se vivamente daquele problema que encerrava para a nossa pátria uma questão vital (…) Que era necessário levantar o espírito público à compreensão dos grandes interesses e dos impreteríveis deveres que o problema africano significava para nós. Que a necessidade de Portugal empreender urgentemente uma expedição científica ao interior africano, no intuito de o conhecer melhor e de o abrir ao comércio, ao prestígio português e à civilização europeia, era por tal forma axiomática que ele se dispensava de fundamentar a proposta que acabava de ler”.

Noutras sessões irão ser levantados problemas e situações para os quais os sócios da Sociedade de Geografia entendem dever encontrar resposta mediante sugestões para o governo de Sua Majestade. Um sócio, numa sessão em 1878, fala da qualidade da administração colonial, revelava-se indispensável preparar um centro de estudos para preparar tais funcionários:

“O Sr. J. M. Pereira declarou que tinha estado por algum tempo na costa ocidental de África, e por isso a experiência o levava a fazer algumas considerações. Que a circunstância de nos termos limitado a ocupar somente o Litoral fazia com que a língua portuguesa não estivesse ali mais desenvolvida; e que não sucederia assim se tivéssemos alguns estabelecimentos comerciais mais para o Interior. Que era certo não serem suficientemente habilitados os funcionários que vão para o Ultramar, porém, julgava como principal motivo disso a má remuneração que lhes dá o Estado; e que as empresas particulares nacionais e estrangeiras ofereciam um bom exemplo, pois elas tinham ali empregados tão hábeis como os melhores dos países civilizados. Que se havia aludido ao vexame e ao prejuízo que o Estado sofria por os seus empregados não conhecerem as línguas coloniais, e sem querer negar as vantagens resultantes do conhecimento dessas línguas, afirmava que, se metermos em linha de conta o estado da nossa civilização e o da civilização africana, havemos de concordar que nós é que vexamos os indígenas e não são eles que nos vexam a nós”. Interveio seguidamente Adolfo Coelho que juntava uma proposta sua à de Teixeira de Vasconcelos para a criação de um instituto colonial onde se ministrasse o ensino das seguintes matérias: Geografia e Etnografia de África e da Ásia; Geografia e História das Colónias Portuguesas; Gramática Comparada das Línguas bantu e Ensino Prático do nbundo e zulu; Gramática Comparada dos Dialetos Modernos da Índia; Fauna e Flora das Colónias Portuguesas, Agricultura com Aplicação às Mesmas; Direito Administrativo Colonial. Luciano Cordeiro juntou o seu nome aos de Adolfo Coelho e Teixeira de Vasconcelos.

Curiosas serão as intervenções que se seguem, vale a pena registá-las:

“O Sr. Gastão Mesnier declarou discordar da opinião de muitos consócios, pois estava convencido de que a África só se podia civilizar por meio dos missionários. A religião católica era a que melhor se podia implantar ali; e quer os mais acreditassem quer não, ele orador estava convencido de que o catolicismo tinha a representar um grande papel no continente africano. Pôs em paralelo o missionário da crença e o missionário da ciência; e concluiu afirmando que uma nação pequena como a nossa não se podia reger pelas mesmas leis das grandes nações, e que as cadeiras que se criassem teriam de fechar-se mais tarde por não haver discípulos para elas.

O Sr. Batalha Reis declarou que não se preocupava e que nem a Sociedade nem o Governo se deviam preocupar com o que se dizia de não haver discípulos para as novas cadeiras. Que uma nação civilizada e colonial tinha o rigoroso dever de conhecer as suas colónias; e que não havia nações pequenas nem nações grandes perante o desenvolvimento científico”.

Constituiu-se uma comissão de redação e a sugestão do Instituto Colonial foi por diante.

Em jeito de recapitulação, nesta digressão pelas atas iniciais das sessões da Sociedade de Geografia nos seus primeiros anos de atividade, o que se pretende mostrar ao leitor eram as principais preocupações dos fundadores, logo conhecer o interior africano, está latente o sentimento da cobiça de várias potências, dentro de alguns anos haverá a Conferência de Berlim e Portugal já se debate com as ambições da Bélgica sobre o Congo, da Alemanha com o Sudoeste africano e o Norte de Moçambique, as viagens de Capelo e Ivens e Serpa Pinto, de costa a contracosta, irão exacerbar a posição britânica de que não quer intrusões na linha entre o Cabo e o Cairo, chegaremos assim ao Ultimatum de 1890, com gravosas consequências para o regime monárquico.

Da leitura que iremos tentar fazer destas atas iniciais não surpreende não haver praticamente referências à Guiné, as primeiras reuniões estão polarizadas das explorações africanas em Angola e até Moçambique; haverá intervenções sobre a ocupação angolana, só mais tarde se irá falar de Moçambique; Cabo Verde e S. Tomé terão referências avulsas e pouco representativas nestes primeiros anos. E pelo adiante se verificará, até com a chegada de novos sócios declaradamente ligados a negócios, de que há grandes preocupações em ensinar o preto a trabalhar. Não faltarão referências às condições higiénicas e climáticas, os problemas das comunicações serão versados de forma continuada, e não faltarão críticas aos degradados enviados para África, como alguém sublinha:

“E que ele orador pudera verificar em África que o preto que não tinha convivência com um branco era muito mais honrado do que aquele que estava em contato com os europeus; devendo ainda assim ser muito boa a índole do negro para não estar completamente pervertida, visto que os condenados a degredo pelos mais horrorosos crimes são como que os professores que nós mandamos para ali. Se queremos introduzir a civilização em África, é urgente que se estabeleçam colónias penais, pois não pode nem deve consentir-se que o degredado tenha a mais completa liberdade. Tem dado péssimos resultados este sistema; e não é raro ver-se ali o condenado na melhor sociedade, e adquirir uma influência que por vezes embaraça o exercício do governo local. Devia também acabar-se por uma vez com o costume de mandar para o exército de África os soldados incorrigíveis do exército da metrópole; e que ele orador, quando estava em Luanda, passava sossegado e tranquilamente pelos negros indígenas que encontrava, não lhe sucedendo o mesmo quando tinha de passar por entre os soldados brancos do serviço policial, porque estes eram, na grande maioria, degredados e incorrigíveis”.

Impõe-se uma pergunta: em que contexto histórico-político se estão a mobilizar  estes fundadores da Sociedade de Geografia? Recorre-se ao que escreve o historiador Valentim Alexandre em Velho Brasil, Novas Áfricas, Portugal e o Império (1808-1975), Edições Afrontamentos, 2000. A propósito da emergência do nacionalismo radical, que preside a atmosfera destas reuniões, escreve o autor:

“Na década de 70, a política colonial portuguesa ganha um novo fôlego. Para isso contribuem elementos de vária natureza, uns de ordem geral, outros ligados mais diretamente à vida do Império. Conta-se entre os primeiros a conjuntura de relativa prosperidade financeira vivida após o fim da guerra entre o Brasil e o Paraguai, em 1870, que propiciou o aumento das remessas dos emigrantes, facilitando a aplicação de fundos, antes muito escassos, nas empresas coloniais, públicas e privadas. Quanto ao Império, o facto fundamental fora o fecho do mercado de Cuba às importações de escravos, pondo finalmente termo ao comércio negreiro transatlântico realizado a partir da costa ocidental de África. Assim se libertavam capitais e energias para outras atividades; em Angola, cresce a navegação no Quanza, como eixo de comunicação comercial com o Interior, dando-se início ao ciclo da borracha; em Moçambique abrem-se novas perspetivas por virtude da descoberta de diamantes e posteriormente de ouro no Transvaal e também da inauguração do canal de Suez, em 1869, que aproximava a região da Europa.

É neste quadro que se insere a ação de Andrade Corvo, ministro do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros durante grande parte dos anos 70. A ideia central da sua política estava na abertura do Império ao exterior, associando Portugal às demais nações da Europa na tarefa de ‘civilizar’ a África (…) Andrade Corvo defendia igualmente um expansionismo moderado em África, não excedendo nunca os limites dos recursos disponíveis (…) O anti-escravismo de Corvo refletiu-se na lei de 29 de abril de 1875, que extinguiu o trabalho civil no Ultramar (…) Mas o nacionalismo imperial não tinha a sua única voz no campo político. Para além de influenciar as posições dos dois grandes partidos do constitucionalismo monárquico – o Regenerador e o Progressista – , a corrente nacionalista radical exprimia-se com a maior virulência nos órgãos do Partido Legitimista e sobretudo do Partido Republicano, recentemente formado, que ganha força e capacidade de mobilização precisamente na campanha contra o Tratado Lourenço Marques, por ele repetidas vezes atacado como uma manifestação de enfeudamento do país à Grã-Bretanha”.

Mais adiante, importa destacar um outro parágrafo:

“Do ponto de vista institucional, a resposta ao Tratado de Lourenço Marques encontrou expressão na Sociedade de Geografia de Lisboa, fundada em 1875, com grande peso na política colonial do último quartel de oitocentos. Em geral, a sua atividade era a de um formidável grupo de pressão, em defesa dos ‘direitos históricos’, resultantes das descobertas e de antigos atos de posse e de exercício de soberania no continente negro”.

 




O reconhecimento do pensamento e ação de Luciano Cordeiro

 

Estamos agora em 1882, a chamada Comissão Africana está ativíssima, quem preside à Direção da Sociedade já não é o visconde de S. Januário, é Barbosa du Bocage. Em janeiro, informa-se que Paiva de Andrada visitara a região de Zambeze e apresentara uma proposta com caráter de urgência para que um emissário de Sua Majestade fosse regular as questões de Manica e Sofala, propunha que fosse criado o Comando Militar de Manica, que ao capitão-mor de Manica, como ao capitão-mor de Inhambane fosse dada a graduação de coronel. Os sócios discutem que era dado como inadiável alargar a ocupação portuguesa pelo interior de Moçambique.

Neste enquadramento, aparece a proposta inédita do sócio senhor Alan para que se abandonasse o forte de Ajudá, para que a bandeira portuguesa não continuasse a sofrer certas afrontas. Atenda-se ao teor da proposta: “Considerando que a ocupação do Forte de S. João Baptista de Ajudá não tem objetivo algum, económico, político ou social; Considerando que essa ocupação só tem sido e é origem contínua de afrontas humilhações para a bandeira portuguesa e que se torna impossível desafrontá-la digna e briosamente, em consequência da especial natureza do terreno e difíceis comunicações com o mar, proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa consulte o governo acerca da inadiável necessidade de desocupar aquele ponto em nome da honra e do decoro nacional”.

Discutiu-se o parecer a enviar ao Governo sobre a construção do caminho-de-ferro de Lourenço Marques, houve debates acesos, mudando-se de agulha houve quem dissesse que o caminho-de-ferro em Angola era uma questão de vida ou de morte. E surgiu uma proposta para erigir em Lisboa, na Praça do Restelo, ou outro local, uma estátua ao Infante D. Henrique, que seria feita por subscrição nacional e para a qual se solicitaria ao Governo de Sua Majestade a cedência das peças necessárias, procedentes das nossas fortalezas e navios de guerra, dadas como inaproveitáveis para o combate. E que a meteorologia já fazia parte dos avanços da civilização, tome-se nota da proposta para criar um posto meteorológico na ilha de S. Vicente que estivesse em relações com o Observatório Meteorológico do Infante D. Luís, visitável no jardim botânico, ao lado da Escola Politécnica. Em 20 de junho de 1882 fala-se pela primeira vez da Guiné Portuguesa. Luciano Cordeiro acusou a receção de carta do governador Pedro Inácio de Gouveia manifestando empenho que se constituísse uma secção da Sociedade de Geografia de Lisboa para o que pedia que fossem nomeados sócios ou indivíduos da lista proposta pela mesa.

Em dezembro de 1882, a Sociedade de Geografia proclama Luciano Cordeiro como seu secretário permanente, como distinção especial. Um aspeto que não deixa de chamar a atenção nestas sessões é que os sócios também falam da metrópole, e foi calorosa e entusiástica a forma como alguém fez a exaltação do termalismo no Gerês, referindo que se trata de água para medicação de um grande número de doenças do fígado ou complicações gástricas. Mas são os debates sobre os caminhos-de-ferro que geram a apresentação de propostas bem substantivadas, é o caso do importante documento sobre a necessidade e urgência do caminho-de-ferro em Angola, vejam-se os seguintes parágrafos:

“Fácil é mostrar que a construção de algumas vias férreas naquela província ultramarina é não só necessária mas ainda urgente, como meio de assegurar o nosso domínio naquelas regiões, e como um dos instrumentos mais poderosos e essenciais da sua civilização e progresso. Em aqueles dilatados domínios portugueses falecem totalmente os meios de comunicação, que o mesmo é dizer que o transporte das coisas e pessoas se faz empregando o homem como animal de carga.

A ligação dos centros de ação e direção governativa e civilizadora com diferentes entrepostos afastados da costa, e que devem ser escolhidos como chaves de toda a circulação interna, e que como pontos capitais estratégicos, não só na acessão restrita e militar da palavra, como no sentido das operações comerciais ou de qualquer caráter civilizador, é também necessidade patente.

No estado presente das coisas não há verdadeira personalidade política ou administrativa naquela província ultramarina. Há apenas diferentes agrupamentos de indivíduos em um estado rudimentar de civilização, situados a grandes distâncias uns dos outros e sem nexo algum entre si. Nestas circunstâncias a ação governativa não tem a força necessária para exercer-se com toda a eficácia na manutenção e respeito das leis e dos princípios de moral, justiça e humanidade que regem as sociedades policiadas.

Tem a província de Angola poucas águas-correntes suscetíveis de converter em linhas de navegação, e se recorrêssemos a esse expediente que nem seria pouco dispendioso, nem muito adequado para linhas-gerais de comunicação, só alcançaríamos tardiamente alguns rios canalizados sem comunicação entre si.

Com o caminho-de-ferro conseguirá o Governo outras vantagens que não alcançaria com as estradas. Além dos lucros da exploração ou sua partilha, poderá reembolsar em um prazo mais ou menos longo os capitais despendidos na construção. Vê-se em tudo quanto fica dito que não há fundamento sólido que possa ser invocado para preferir as estradas ordinárias aos caminhos-de-ferro, quando se trata de estabelecer comunicações a grande distância”.

 




Alguns sinais de cruzamento entre Geografia, progresso e desenvolvimento africano

 

É tempo de repor a pergunta: Que grau de utilidade podemos encontrar no estudo das grandes preocupações dos sócios da Sociedade de Geografia de Lisboa naqueles anos entusiásticos em que se procurava alicerçar o III Império Colonial, radicado em África? Analisar o funcionamento de um grupo de pressão para onde convergiam figuras de topo do rotativismo político, cientistas, empresários e até um elevado número de nacionalistas que acreditavam ardentemente que a Sociedade de Geografia era a sede habilitada para dar voz aos interesses imperiais. É por isso que estamos não à volta do boletim, publicação onde caprichavam estudos e documentos apresentados pelos sócios, nós aqui estamos a acompanhar as sessões para tentar perceber as motivações concretas de todos os sócios e ver como estas propostas chegavam ao Governo, entravam na arena política ou faziam mesmo parte da discussão pública.

Estamos na sessão de 20 de janeiro de 1883, e o sócio José Ferreira de Almeida apresenta a seguinte proposta: “A Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo em vista o melhor aproveitamento, civilização e progresso dos domínios coloniais portugueses; no interesse do país e da humanidade, e no intuito de uniformizar o regime administrativo e tornar mais eficazes os meios de ação de que o país dispõe, seguindo-se a norma que o Governo de Sua Majestade acaba de adotar com relação aos territórios banhados pelo Zaire e o Forte de S. João Baptista de Ajudá: Propõe: 1º A troca do domínio de Timor pelo de Fernando Pó cedido à Espanha pela Convenção de Março de 1778; 2º A cessão à França do domínio da Guiné compreendido nos paralelos de 10 graus 12´ e 13 graus e 10´ ; pelo domínio francês do Gabão, levando a fronteira da nossa província de Angola de 5º 12´ sul à fronteira norte do domínio francês ao norte do Equador. A proposta foi enviada para a Comissão Africana. Também durante esta sessão se falou num concurso com um prémio de 100 mil reis para um estudo sobre as relações comerciais entre Portugal e as suas colónias, tendo em vista o alargamento dessas relações afim de que a indústria nacional se desenvolva e aproveite para consumo dos seus produtos nos mercados coloniais.

Na sessão do mês seguinte foi aprovada uma proposta de se proceder ao levantamento hidrográfico da costa e possessões portuguesas, e particularmente das costas, portos e rios da província de Angola. Na sessão do mês seguinte quem a preside é o conselheiro António Augusto de Aguiar pois Barbosa du Bocage fora nomeado ministro da Marinha e Ultramar. Fala-se das ingerências da Grã-Bretanha na questão do Niassa, “os ingleses davam-se ares de pertencer-lhe, como se tinham dado de o ter descoberto”.

Na sessão de finais de abril elaborou-se e aprovou-se parecer sobre a questão do meridiano universal, reconhecendo-se que o meridiano de Greenwich é a situação mais prática, a Sociedade de Geografia vota por este meridiano como universal para origem da contagem das longitudes. Mas havia na época muitas consultas, no caso português incluía-se o Real Observatório Astronómico da Ajuda. Na reunião seguinte surgiu a proposta de promover por meio de uma subscrição a ereção de uma estátua colossal do Cabo de S. Vicente ao Infante D. Henrique e que o lançamento da primeira pedra devia já ocorrer no ano de 1884. A questão do Zaire, que deu origem a um tratado entre Portugal e a Grã-Bretanha é matéria de grande debate. Nas sessões seguintes ocupam grande espaço as expedições de Capelo e Ivens.

No ano seguinte, logo na sessão de março, é criada a secção asiática da Sociedade de Geografia de Lisboa e nas eleições António Augusto de Aguiar passa a presidente da Direção. Neste tempo, a Sociedade reinstalara-se na Travessa da Parreirinha, n. º5, 1º andar e envia-se uma circular aos sócios de onde se destacam os seguintes parágrafos:

“Nós somos uma modesta Sociedade de homens que estimam e servem a ciência e o nome português; a nossa casa é uma oficina pobre, um centro despretensioso de estudo e de convívio útil, sustentado principalmente pelas nossas pequenas cotas mensais. Não é um grémio de luxuoso passatempo, nem o nosso fim comum é cuidarmos do nosso conforto e recreio.

Rigorosamente, à cavalheirosa e discreta dedicação de todos os nossos consócios fica entregue a guarda e a polícia da nossa casa, como naturalmente lhes pertence também a guarda e defesa do nosso bom nome social. Por enquanto, pelo menos, a casa da Sociedade não poderá estar aberta ordinariamente senão desde as 10 horas da manhã até às 4 horas da tarde, e desde as 8 até às 12, precisas, da noite, todos os dias. A nossa casa não é um clube. Julgamos por isso escusado observar que não podem ser consentidos nela nenhuns jogos ou diversões alheias à índole e à lei da Sociedade, como também o não podem ser nenhumas discussões e operações de propaganda religiosa e política (quem consultar a lista dos sócios poderá verificar esta versatilidade de ocupações, desde o banqueiro Francisco Oliveira Chamiço, fundador do Banco Nacional Ultramarino, até um conjunto elevado de funcionários públicos).

Na nossa casa havemos de nos encontrar, conversar, estudar, permutar as nossas ideias e as nossas informações, sempre num convívio sereno e grave, a que nunca deixará de estar presente a ideia da nossa honra e do nosso dever comum.

Considerando as vantagens científicas do estabelecimento de um jardim científico em Lisboa, as íntimas relações deste empreendimento com os fins da sociedade, e os próprios sentimentos, neste sentido manifestados pelos nossos consócios, mas considerando também que os novos e consideráveis encargos sociais nos recomendavam a mais severa economia e o mais escrupuloso retraimento no sentido da concessão gratuita das nossas salas e serviços, temos acordado com a sociedade promotora daquele jardim de estudo, composta da sua maioria de consócios nossos, e que na nossa casa se instalou e tem funcionado até hoje, que ela continue na nossa sede, mantida a recíproca independência e sem prejuízo do nosso expediente e serviços.

Está começada a instalação do nosso museu, graças à dedicação de alguns dos nossos consócios; procura ser, em parte, um museu de estudo e aplicação industrial e comercial, principalmente no que importa às relações comerciais. Vem aqui a propósito submeter à consideração de V. Exas. a ideia em que estamos, de franquear ao público, em certos dias, a nossa casa, para exame e estudo das nossas coleções.

A Sociedade de Geografia é filha legítima da iniciativa particular”.

Falou-se acima de que Capelo e Ivens era um tema dileto por causa das suas explorações, veja-se o que se escreveu numa das sessões:

“O Sr. Presidente informou a Assembleia de que ia entregar aos senhores Capelo e Ivens, em véspera de partirem para uma nova exploração na África Ocidental, a bandeira que os acompanhara na sua primeira expedição ao continente africano. E acrescentando algumas palavras de elogio e de estímulo aos ilustres exploradores, dirigiu-se com os secretários para a mesa onde se achava a bandeira, entregando-a aos senhores Capelo e Ivens, erguendo-se toda a assembleia e vitoriando calorosamente aqueles consócios”. Deixou-se claro que a expedição africana se devia em grande parte à Sociedade de Geografia. Roberto Ivens agradeceu comovido em seu nome e de Ermenegildo Capelo, disse que aquela bandeira já testemunha e será companheira de uma missão de paz e de ciência. ‘O Sr. Serpa Pinto, tomando a palavra despediu-se comovido dos seus antigos companheiros e lembrou à Mesa a urgência de formar uma comissão de vigilância para se ocupar exclusivamente dos dois exploradores enquanto eles estivessem no desempenho da sua nobre missão”.




 

Há mais império fora de África, mas África é a matriz do III Império

 

 

Os primeiros dez anos de vida da Sociedade de Geografia de Lisboa conduzem-nos à aspiração das camadas sociais que apostavam com entusiasmo no levantamento do III Império Português, o do Oriente era então um amontoado de pequenas parcelas, o Brasil tornara-se independente, havia que ocupar África, conhecê-la e defendê-la da cobiça de outras potências, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Itália, os bóeres da África do Sul, e até mesmo Leopoldo da Bélgica, sonham em fazer recuar as possessões portuguesas. A leitura das atas das sessões destes primeiros anos permite conhecer o que estes homens sugerem, que ideologia possuem, como funciona este grupo de pressão constituído por membros da aristocracia, políticos influentes, cientistas, financeiros, comerciantes e, a diferentes níveis, muitos curiosos. Quando se chega a 1885, fala-se muito de África, mas também há ecos de outras parcelas do Império. Logo em 5 de janeiro, alguém anuncia que o padroado português do Oriente estava em perigo: “Este padrão das nossas glórias, que por si só constitui o elogio do nome português em todo o Oriente, se se perdesse o temporal havia ainda o espiritual”. E quem assim proclama vai apresentar uma proposta que a ser aprovada devia tramitar para o Governo, considerar o padroado português como uma glória nacional, o Governo de Sua Majestade devia constituir uma comissão para inventariar os bens, e lembrar ao governo que a Inglaterra pretende abocanhar o padroado. Quem vai lendo as atas espera saber da boca de Luciano Cordeiro que participou na conferência internacional sobre a questão do Zaire o que ali se passou, mas não há menção. Em fevereiro, houve eleições e o presidente é António Augusto de Aguiar, Luciano Cordeiro voltou ao convívio das sessões, desenvolvidamente temos descrita a receção triunfal de Capelo e Ivens, serão alvo de uma sessão solene em 1 de outubro desse ano no Real Teatro de São Carlos, haverá grandes elogios do Ministro da Marinha e do Ultramar, Capelo e Ivens fazem uma comunicação em que descrevem o que observaram entre Moçâmedes e Quelimane. Ivens entregou à Sociedade de Geografia a bandeira da expedição. E o rei D. Luís entrega-lhes medalhas de ouro pelos seus eminentes serviços à Ciência e à Pátria.

Os interesses económicos estão atentos a estas explorações e numa sessão com data de 19 de outubro um dos participantes apresenta uma proposta para que se organize uma companhia mercantil destinada à exploração comercial da zona atravessada pelos exploradores Capelo e Ivens.

Um outro dado curioso do que se passa nestas sessões é que se apreciam possíveis trocas de colónias. Nessa mesma sessão de 19 de outubro o sócio Sr. Ferreira de Almeida sugere que se cedesse parte da Senegâmbia por igual território ao norte de Cabinda, cedência que deveria incluir o Forte de São João Baptista da Ajuda. E está escrito textualmente: “Que a Guiné não tem importância política nem comercial, apesar de todos os sacrifícios que já ali temos feito; o comércio é francês, as condições climáticas péssimas, o gentio é feroz e o acesso da costa não é fácil. Enquanto que em Cabinda e Molembo e regiões para o norte a França não tem relativamente a mesma preponderância comercial, ali imperam as nossas relações comerciais”. Apura-se que uma fração da comunicação dos oradores propende, cada vez mais, para os negócios. No entanto, são insistentes os comentários relativamente ao que deve ser a ocupação portuguesa em África e alguém profere a seguinte observação: “A política de bom-senso consistirá no aproveitamento da tradição histórica, quando ela nos servir para alguma coisa”. Outro acontecimento de monta é a consagração de Luciano Cordeiro, ele é reconhecido por todos como o dínamo. O secretário perpétuo não tem papas na língua, em dado momento diz que a Sociedade de Geografia não fora havida nem achada sobre as cedências do Casamansa e do rio Nuno e deplorava profundamente o que se passava com a entrega de Ziguinchor.

Em 1886, o sócio Sr. António Rodrigues Chicó traz para debate não um tema africano, mas Goa, tece os seguintes comentários:

“A província de Goa, em especial as Velhas Conquistas, têm uma população densa, e os seus habitantes, seja pela posição topográfica e influência do clima, seja mesmo por qualquer razão que não se tem podido conhecer, são excecionalmente dotados de inteligência e aptidão para ciências e artes, e favorecidos do génio aventuroso e empreendedor, com grande facilidade de se aclimatarem nas regiões das mais inóspitas, com tudo prova exuberantemente o grande número dos filhos de Goa que está espalhado pelas cinco partes do mundo, exercendo com proficiência toda a sorte de misteres; mas infelizmente o ensino das ciências e artes em Goa está na proporção inversa das vantagens naturais dos habitantes e o qual, por necessidade, vão procurar fora do país.

Se Portugal destinar uma pequena verba, do muito que nesta província se esbanja, para montar aqui escolas de ciências e artes práticas, mandando da Europa todo o pessoal docente, cuidadosa e escrupulosamente escolhido, e não por favoritismo, e oferecer transporte aos que, competentemente habilitados, quiserem ir tentar fortuna em África, em poucos anos se estabelecerá uma corrente de importante emigração, que muito facilitará a colonização e exploração de África.

No intuito de ser útil ao meu país natal e de ver melhorada a situação desta província, que infelizmente jaz num deplorável estado de apatia e estacionamento, enquanto que os nossos vizinhos da Índia britânica marcham a passos rápidos na senda do progresso e da prosperidade material e moral, aproveitei a ocasião em que fui chamado pelo excelentíssimo visconde de Paço de Arcos, para fazer parte de uma comissão com o fim de elucidar o governo acerca dos melhoramentos e reformas que o país carece para o seu progresso material e moral”. E deplora que os projetos que apresentou não receberam apoio da dita comissão.

Ficamos igualmente a saber que o Príncipe Alberto do Mónaco andava a estudar afincadamente a história natural açoriana, e diz-se que o Príncipe, no maior sigilo, andava a estudar a corrente do Golfo. Estamos agora em junho de 1886, aprecia-se o parecer da comissão africana a uma proposta do Sr. Carlos de Mello, reconhece-se a pertinência de fazer uma nova exploração geográfica e travessia entre as regiões meridionais das nossas províncias de Angola e de Moçambique, completando, nuns casos, e noutros iniciando o reconhecimento de diversas bacias e ligações hidrográficas situadas entre as duas costas que tinham sido percorridas por Capelo e Ivens.

Deduz-se nas entrelinhas dos debates que os interesses britânicos e alemães não estavam a ser beliscados pelas explorações portuguesas. O parecer da comissão africana é perentório: é reconhecido a conveniência e a oportunidade de se continuar a exploração geográfica entre a província de Angola e Moçambique.

O número de associados alarga-se e as questões científicas também, chega-se mesmo a apresentar uma comunicação em que um sócio desmonta a fantasia de existir um rito judeu de abafar os moribundos. Em outubro aprecia-se o parecer da comissão africana acerca da colonização do sul de Angola e insiste-se em aperfeiçoar a cartografia africana.

Estamos perto do final do ano, em 13 de dezembro, no Real Teatro de São Carlos há uma receção e conferência dos excelentíssimos sócios do Sr. Serpa Pinto e Sr. Augusto Cardoso, chefes da expedição científica ao lago Niassa. Na ocasião entrega-se a Serpa Pinto uma medalha de honra concedida por ocasião da sua exploração da travessia de Benguela a Durban.

No novo ano mantém-se como presidente da Sociedade de Geografia o conselheiro António Augusto de Aguiar e em abril desse ano há uma comunicação do Dr. Lisboa Pinto, delegado das cristandades da Índia e Ceilão, o tema tem a ver com as reclamações relativamente à última concordata e aos interesses portugueses no Oriente. Em dado passo diz: “Os católicos de Igatpuri e Bossaval, na procuração de plenos poderes que me passaram dizem o seguinte: ‘Esquecidos pelo soberano padroeiro, desprezados pelo arcebispo de Goa, ignorados também pelo amantíssimo Pontífice que rege a igreja de Deus, aos constituintes de V. Ex.ª encarem o nosso desespero’”. E, mais adiante: “Os meus constituintes de Ceilão, vendo que eram baldadas as suas esperanças e desatendidas as suas mais ardentes súplicas, trazem hoje fechadas as suas igrejas e capelas, não tendo quem os confesse, quem os ajude a bem morrer, nem quem encomende as suas almas depois da morte”.




 

A caminho do Ultimatum

 

Verifica-se que os primeiros dez anos de vida da Sociedade de Geografia de Lisboa nos conduzem ao melhor conhecimento das aspirações das camadas sociais que apostavam com entusiasmo no levantamento do III Império Português. África seria o coração do novo Império, o do Oriente era então um amontoado de pequenas parcelas e o Brasil tornara-se independente. Havia que ocupar África, conhecê-la e defendê-la da cobiça de outras potências, a Grã-Bretanha, a França, a Alemanha, a Itália, os bóeres da África do Sul, e até mesmo Leopoldo da Bélgica, sonhavam em fazer recuar as possessões portuguesas. A leitura das atas das sessões destes primeiros anos permite conhecer o que estes homens sugerem, que ideologia possuem, como funciona este grupo de pressão constituído por membros da aristocracia, políticos influentes, cientistas, financeiros, comerciantes e, a diferentes níveis, muitos curiosos. Dá-se como demonstrado que esta Sociedade de Geografia de Lisboa cresceu e enrijeceu como impressionante grupo de pressão, é inegável o papel histórico que desempenhou: no incremento das explorações, como as de Serpa Pinto, Capelo e Ivens, nos estudos sobre hidrografia, cartografia, o Meridiano de Greenwich… Mas nem tudo se concentra exclusivamente em Angola e Moçambique, aqui e acolá há referências ao termalismo no Gerês, a estudos etnológicos e antropológicos, ao Padroado Português do Oriente, às cristandades da Índia e Ceilão.

Passada esta década de verdadeiro entusiasmo, vejamos agora o período que precede o Ultimatum britânico. Continuam a aparecer trabalhos do foro das ciências filológicas, geográficas e etnológicas, caso do dicionário corográfico de Moçambique, os dialetos crioulos de Cabo Verde. Em 1887 presta-se homenagem ao falecido presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, António Augusto de Aguiar. Na primeira sessão de janeiro de 1888, um sócio apela a que se iniciem as investigações demográficas nas províncias de além-mar, “a fim de que possam apreciar-se as qualidades e aptidões da raça tropical e as suas tendências para formar colónias e dar incremento à população indígena na África Central”. O cunho científico da Sociedade revela-se bastante apurado, já dera parecer no ano anterior sobre o sistema internacional de boias e balizas. O novo presidente é o Conselheiro Francisco Maria da Cunha. Dá-se igualmente parecer para que a sociedade empreenda a publicação de um Dicionário Toponímico Português, em que se determinem quanto possível os nomes de lugares portugueses em todas as épocas e onde igualmente constem as designações locativas dadas pelos descobridores, viajantes e escritores portugueses aos diversos lugares por onde andaram.

Entretanto, concede-se a medalha de honra da Sociedade a Paiva de Andrade, mas os caminhos-de-ferro são preocupação permanente e em 5 de março de 1888 Luciano Cordeiro fez uma exposição sobre a linha do caminho-de-ferro de Lourenço Marques a Pretória e na sua sequência aprovou-se a seguinte moção: “A Sociedade de Geografia continuando a interessar-se vivamente pela prosperidade e segurança do distrito de Lourenço Marques, e congratulando-se pelas diligências e medidas tendentes a acautelar e a prevenir as necessidades e perigos da transformação que se está operando naquele distrito,  faz votos por que se empreguem todos os esforços para consolidar, desenvolver e garantir a mais rápida e completa nacionalização de Lourenço Marques como parte integrante e inalienável do território e nação portuguesa”. As sessões da Sociedade diversificam os temas, tanto se apela à organização do serviço de pescas no continente e ilhas como se emite parecer sobre as obras públicas no Ultramar e a construção dos caminhos-de-ferro ou na Índia ou de Ambaca e Lourenço Marques.

Estamos já em 1889, e na aparência ainda não se sente a carga explosiva que está a caminho, o Ultimatum britânico. Em março, o major Serpa Pinto, acalorado e patriótico, mandou para a mesa uma proposta para que a sociedade tornasse a insistir para que se formasse uma sociedade antiescravagista portuguesa, que secundasse e auxiliasse a generosa propaganda aberta na Europa pelo Cardeal Lavigerie contra o tráfego da escravatura. No mês seguinte, destaca-se o tenente-coronel Joaquim José Machado que discursou largamente acerca das condições das nossas colónias na costa oriental e também na costa ocidental de África, chamando a atenção da Sociedade para que se representasse ao governo com relação à expansão colonial inglesa que é extraordinária e rápida nos territórios portugueses do sul de África e à qual precisamos opor medidas enérgicas, marcando fronteiras e afirmando a ocupação portuguesa; passando à costa ocidental, falou da extrema riqueza do planalto de Moçâmedes e da necessidade urgentíssima de abrir comunicações com o litoral a fim de que o desenvolvimento se amplie. Foi uma enorme comunicação, ocupou-se de muita coisa: reocupação de Maputo, dos impraticáveis limites fixados pela sentença de MacMahon, da vontade de toda a gente de Maputo em ser governada por portugueses, das intrigas de alguns ingleses contra Portugal, da urgência em marcar fronteiras para o norte do rio Incomati, chamou a atenção para a “inglezação” de Lourenço Marques e os seus perigos; a necessidade de aumentar a população portuguesa em Moçambique. É um documento extenso, espalha-se por 45 páginas das atas das sessões, e tanto quanto parece é de leitura obrigatória para os investigadores que se ocupam deste período colonial e focados nesta região.

Começa também a falar-se nas comemorações da descoberta da Índia, tem-se em mente a Exposição Internacional Marítima e Colonial de 1897. E o que até agora pareciam sinais de alarme já emite fumos de incêndio. Em novembro de 1889, o tenente coronel José Joaquim Machado prossegue com informações do que se está a passar nos territórios de África que delimitavam a província de Moçambique.

Em dezembro, Luciano Cordeiro declarou que se havia reunido a Direção juntamente com a Comissão Africana para apreciar e resolver acerca das propostas do tenente-coronel Machado. Alguém mandou para a mesa a seguinte proposta: “Proponho que seja nomeada uma comissão que estude as bases para a organização de uma companhia nacional, à qual sejam conferidos amplos poderes para utilizar toda ou parte da província de Moçambique, valorizando as inúmeras riquezas que ali existem inertes”. Luciano Cordeiro riposta, era absolutamente contrário à organização de companhias soberanas e que só admitia soberania no Estado. Citava-se a Companhia das Índias, mas devia lembrar que a Inglaterra sentia o solo da Índia tremer-lhe debaixo dos pés e que não estava longe o momento em que perdesse aquele grande império, que afinal não conseguira senão escravizar. A Austrália havia-se desenvolvido sem companhias soberanas, e era um império civilizado. Não receava, pois, a nova companhia sul-africana, recentemente organizada em Inglaterra, se finalmente a nossa administração e a nossa política colonial se resolvessem a serem o que deviam ser: previdentes, práticas e enérgicas; mas que cada povo tinha os seus processos e as suas tradições, e que não sendo Portugal um povo de mercantões como o povo inglês, não lhe parecia ser este o modo de opor-se à invasão inglesa nos territórios africanos. Há nuvens negras no horizonte e aprova-se uma moção relativamente a uma nota diplomática em que o governo britânico protesta junto do governo português contra a área atribuída ao distrito do Zumbo pelo decreto que o reconstituiu, e declara não reconhecer nenhum direito ao exercício da soberania portuguesa nestes territórios. A moção refere que não há fundamento para a ocupação ou jurisdição britânica em todos estes territórios, tudo isto deve derivar de falsas e capciosas informações geográficas, históricas e políticas com que o espírito de seita e aventura tem ultimamente pretendido iludir a opinião sobre a influência de Portugal em África. E o documento assinado em 2 de dezembro de 1889 por Luciano Cordeiro, a moção da Sociedade de Geografia reza o seguinte: “1º Faz votos porque a diplomacia britânica, melhor informada, lealmente afaste o equívoco em que evidentemente labora, de sobre a antiga cordialidade e recíproco respeito dos dois países, cujo honrado acordo tão proveitoso há sido e tão necessário é à paz e à civilização de África; 2º Confia que os poderes públicos, inspirados na vontade unânime e na incontestável justiça da nação, manterão firmemente o direito e a integridade da soberania portuguesa; 3º E afirma que os territórios incorporados no distrito de Zumbo e os das zonas do Zambeze, do Chire e do Niassa a que se refere a nota inglesa, sempre, desde as suas primeiras descobertas e explorações, feitas pelos portugueses, foram em boa ciência e segundo o direito, considerados como incluídos na influência e na tradição jurisdicional da soberania de Portugal, tendo sido e estando por ela ocupados onde e como entende conveniente e sem interrupção de nenhuma outra soberania culta, em qualquer tempo e lugar”.

E assim chegamos à sessão de 20 de janeiro de 1890, aqui se espelha a indignação pelo Ultimatum, chovem protestos, distingue-se o de Luciano Cordeiro, fazem-se propostas concretas de afastamento dos interesses britânicos: deixar de usar a libra-esterlina, cunhando moeda do tipo da convenção monetária de que fazem parte alguns países continentais, abolindo o curso legal da moeda inglesa; denúncia do tratado luso-britânico de 1842; decretar um imposto especial de residência para os ingleses estabelecidos na metrópole, etc.

 




Emerge o pensamento da nova situação colonial: ideologia do indigenato

 

É pedir demasiado às atas das sessões dos sócios da Sociedade de Geografia, no período correspondente aos cerca dos primeiros quinze anos de vida, que elas exprimam com meridiana clareza o que de mais vigoroso sobressaía na época quer ao nível do entusiasmo pelo ressurgimento imperial, quer pelos interesses económicos subjacentes, e até mesmo é difícil poder contabilizar as aspirações científicas exclusivamente pelas propostas apresentadas nestas reuniões. Mas que é uma ferramenta indispensável para o culto dos heróis, para o estudo da vida portuguesa neste período em que já passara a Regeneração e que emergiam alterações no xadrez político, não tínhamos dúvidas. Vimos como em 20 de janeiro de 1890 os sócios-fundadores se revelaram compungidos com a natureza do Ultimatum, e reagiram, pedindo afastamento do mundo da libra. É sintomático que nesse dia se tenham apresentado propostas para o estabelecimento de carreiras de navegação regulares entre a barra principal do Zambeze e o começo das Cachoeiras; deu-se a sugestão da abertura de estradas e permitiu-se o trânsito tão longe destas Cachoeiras; e mais se pedia ao Governo: a construção de linhas telegráficas ligando Quelimane, o Lago Niassa, Tete, Zumbo, Manica, Beira, Sofala, Inhambane e Lourenço Marques; e que se mandasse proceder ao estudo das linhas férreas de penetração de Inhambane à fronteira do Transval. Uma leitura possível de tal proposta é que houvesse afastamento dos interesses exclusivamente britânicos e se privilegiasse a região Bóer.

No início de fevereiro, o rei D. Carlos recebe os Órgãos Sociais da Sociedade que protestam contra o insólito procedimento do Governo britânico. O Presidente da Sociedade expôs ao monarca o que estava a ser idealizado para a celebração do IV Centenário da Partida para a Descoberta da Índia e pediu a confirmação da Carta Régia pela qual o chefe de Estado se declarara em 1878 protetor da Sociedade de Geografia. Tudo quanto afirmasse a solidez de Moçambique era de bom augúrio, e na primeira sessão de fevereiro o presidente anunciou que a embaixada da regente de Maputo visitara a Sociedade e manifestara fidelidade à soberania portuguesa. Quatro figuras foram proclamadas sócios honorários: Joaquim José Machado (que proferira antes do Ultimatum conferências avisando para a natureza a cobiça britânica nos territórios situados entre Angola e Moçambique), António Maria Cardoso, Henrique de Carvalho e Victor Cordon. E discutiram-se direitos majestáticos para as companhias que se pudessem implantar em Moçambique, a opinião dominante foi de rejeição, entrara-se num quadro nacionalista e de profunda desconfiança dos interesses britânicos: “Deve ser rejeitada como contrária ao direito constitucionalmente português e como politicamente inconveniente e economicamente errónea a ideia de entregar parte ou todo o território de uma província ultramarina à ocupação e exploração de uma grande companhia mercantil de todos os quaisquer direitos, privilégios ou poderes de soberania ou de jurisdição pública”.

Em junho, muito à moda da época, apresenta-se a proposta de um estudo que hoje é encarado como caricato por qualquer cientista: “Proponho que se promova um inquérito ao estado hodierno físico, moral, intelectual, industrial e artístico do povo português, comparando-o, tanto quanto possível, com o das suas épocas passadas e com o das outras nações europeias”. Pedia-se o impossível, seguramente que se andava à procura de uma base da lusitanidade, queria-se ir ao âmago de uma raça portuguesa, e num país de penúria, já sacudido por uma crise financeira sem precedentes, parecia que se queria conhecer tudo: dados antropométricos; dados sobre a natalidade, mortalidade, crescimento da população, emigração; estudo de todas as doenças, não esquecendo as nervosas e mentais, as dos órgãos de respiração e circulação, lepra, paludismo, febres tifoides e raquitismo; estudo sobre a alimentação principalmente das classes trabalhadoras; estudo tendente a determinar se a indolência, a falta de energia física, que alguns viajantes nos atribuem, é maior que a de outros povos europeus do Sul. Era um estudo de arromba, os membros da Sociedade de Geografia devem ter ficado a olhar uns para os outros e a não saber como moderar o ímpeto do proponente. Porque o estudo ia em todas as direções: pretendia determinar as nossas aptidões industriais e artísticas; até determinar se o uso ou desuso dos antigos jogos tradicionais contribuía para a conservação ou diminuição das forças físicas do povo. E queria-se apurar o estado intelectual do país, até os progressos das ciências desde o estabelecimento do regime institucional, comparado com o absolutismo, em praticamente todas as áreas: matemáticas, física e química, história natural, fisiologia e medicina, ciências sociais, ciências históricas e geográficas, ciências filológicas e filosofia. Que grande empreitada!

Suceder-se-ão propostas mais conformes ao realismo como o pedido de um estudo sobre a iluminação e balizagem no arquipélago de Cabo Verde e a homenagem prestada a Henrique Dias de Carvalho, um militar que se revelara um importante administrador colonial. O pretexto da homenagem viera da análise de um documento de Henrique Dias de Carvalho intitulado “A questão da Lunda”, seguira-se um agradecimento de comerciantes da região do Malange aos empreendimentos deste prestigiado major, e é neste papel que vem um curioso apelo colonizador:

“Uma missão que por modesta que seja, no meio da barbárie indígena, significa sempre um esforço generoso da civilização e do cristianismo para melhorar a condição social dos nossos irmãos, e, portanto, é respeitável e respeitada. Uma ocupação militar no meio do sertão, realizada por alguns soldados pretos e um cabo, só desafia o ridículo, e apresenta perante o indígena a fraqueza e a decrepitude daqueles que este julgava fortes e invencíveis. Deixemos, pois, quanto for possível as espadas nas suas bainhas e as balas nos seus cartuchos e lancemos mão do homem da cruz do missionário, e não só do missionário, da irmã educadora, do negociante e de todos os que tiveram a coragem das privações e do sacrifício”.

 E com alguma regularidade constata-se que continua a insistir-se na urgência de haver caminhos-de-ferro em Angola e Moçambique. Aparece nesta sessão um texto de uma conferência sobre o Porto, o caminho-de-ferro e o distrito de Lourenço Marques onde em dado momento o major de engenharia António José de Araújo proferiu o seguinte:

“O indígena de Lourenço Marques conhece do europeu apenas as vantagens que ele pode proporcionar-lhe, mas recusa completamente, ou executa de má vontade, os encargos que tais vantagens exigem. O indígena deste distrito considera-se credor do dever do europeu em fazê-lo viver, reservando, porém, para si, o gozo da liberdade. O indígena de Lourenço Marques adquiriu os vícios que o convívio do homem branco lhe incutiu, mas guardou bem vivaz a noção da liberdade ociosa e selvagem que gozavam os seus antepassados. Em 1882, via eu o indígena lançar orgulhosamente fora a moeda portuguesa de cobre com que se lhe pagava um pequeno serviço que prestara. Em 1883, via eu os indígenas serviçais dos habitantes do distrito abandonarem a cidade, porque estranhos bem intencionados lhes sugeriram que uma corveta portuguesa de guerra, então surta em Lourenço Marques, pretendia obter indígenas para serviço de bordo, sendo preciso nada menos que a palavra de um governador para que o régulo do Amule fosse visitar aquela corveta, muito embora acompanhado pelos seus secretários grandes e ficando os seus súbditos esperando, armados, na praia, o seu regresso.

Em 1886 e 1887, graças à fome que assolava o distrito, tive o prazer de vê-los a fluir em abundância ao trabalho, mediante 225 reis diários, mas logo no ano seguinte os encontrei exigindo 2,3 e 4 xelins diários para salários. Como, pelas atribuições do meu cargo, eu podia de algum modo regular o custo do braço indígena, intentei lutar, mas fui vencido! E quando eu penso que estes semisselvagens, estes homens problematicamente civilizados, consomem salários superiores aos dos nossos trabalhadores europeus, bebendo álcool e sustentando até ao último requinte o gozo dos seus prazeres sensuais; quando os vejo miseravelmente cobertos, cheios de andrajos, sofismando as leis, mesmo envergonhando-nos, compreendo então que há uma grande lacuna no nosso regime colonial; que é indispensável a todo o custo criar, não só uma lei de trabalho prática, útil e sobretudo eficaz, mas ainda uma reforma judicial que habilite os magistrados a rapidamente aplicarem justiça”.





 

Museologia e missionação nas preocupações dos fundadores

 

Passado o choque do Ultimatum, as reuniões dos fundadores prosseguiram a bom ritmo, havia as explorações em curso, continuaram as homenagens e os agradecimentos. Recorde-se que em novembro de 1890 fora apresentado um documento intitulado “A questão da Lunda”, tratava-se do agradecimento dos comerciantes da região ao trabalho desenvolvido pelo então major Henrique Dias de Carvalho. E havia propriamente a pressão exercida junto dos departamentos governamentais, em setembro desse ano a Direção da Sociedade de Geografia enviara um documento ao rei D. Carlos intitulado “As concessões de direitos majestáticos a empresas mercantis para o Ultramar”, curiosamente terminava assim:

“Senhor, gratos ao patriótico incitamento e ao generoso favor com que Vossa Majestade e os seus governos nos têm animado a perseverar no estudo e na defesa dos graves interesses nacionais empenhados na consolidação e na prosperidade do nosso vasto património ultramarino, dedicando a este e aos variadíssimos problemas que nessa causa de contêm, o melhor dos nossos esforços, queremos mais uma vez corresponder a esse incitamento e favor e à confiança oficial e pública que não decerto pelo valor de tais esforços (…), vindo pedir a Vossa Majestade que se reconsidere e não se persista e continue no processo de alienar a administração e a exploração geral de toda ou parte da província de Moçambique em companhias mercantis dotadas de direitos e privilégios majestáticos”.

Já vimos como a composição do núcleo fundador conhecera graduais acréscimos, a dinamização económica que África possibilitava atrai imensos comentários e tomadas de posição. Por exemplo, o sócio João Augusto Barata mandou para a mesa a seguinte proposta:

“As colónias modernas devem ser não só centros de produção, mas também mercados de consumo. E é debaixo deste último ponto de vista que algumas potências manufatureiras procuram estabelecer o seu domínio nas regiões africanas e atropelam todos os direitos para alargar as suas esferas de ação.

A França, a Bélgica, a Itália, a Alemanha e a Inglaterra, todos esses países com excesso enorme de produção que o velho continente não pode consumir, e que a poderosa indústria norte-americana tenta desviar do novo mundo, têm as suas atenções fixadas sobre as terras de África, que civilizam para estabelecer as necessidades materiais das populações a fim de atraí-las ao consumo dos produtos das suas indústrias.

O nosso país tenta, de alguns anos para cá, estabelecer o desenvolvimento das suas colónias, mas esse desenvolvimento nunca se tornará útil à metrópole se no seio desta não se derem progressos industriais notáveis. Não são os produtos agrícolas que a África precisará importar porque segundo as narrações dos abalizados africanistas há zonas naquelas feracíssimas paragens onde as culturas próprias do clima europeu se desenvolvem com prodigiosa exuberância e pasmosa produção.

Mas há muitos produtos que as colónias virão pedir à mãe-pátria e há uma infinidade de artigos que a metrópole lhe deve fornecer. Não deixemos, pois, que o desenvolvimento das possessões portuguesas vá aproveitar às indústrias de outros países; preparemo-nos para delas obtermos o excesso de exportação que tão necessário é ao regime económico da nação portuguesa”. E posta esta advertência o sócio fala nos caminhos-de-ferro, nos produtos siderúrgicos, no carvão e no ferro, alude à enorme montanha de minérios de ferro nas serras de Roboredo e Rates, as serras dos Monges, S. Tiago do Escoural e Alvito, antracites e outras riquezas que não podíamos continuar a descurar.

Em janeiro de 1891, após eleições o Presidente da Sociedade de Geografia passa o ser o conselheiro António do Nascimento Sampaio. E pela segunda vez se fala da Guiné, através de uma comunicação da Direção que conheceu aprovação unânime: “A Sociedade de Geografia profundamente deplora o desastre sofrido na Guiné por forças encarregadas de guardar, manter e defender a autoridade e o prestígio da Soberania Portuguesa”. Procura-se um novo espaço para a sede da Sociedade, está-se a negociar o palácio da Rua das Chagas, pertencente ao sócio Sr. Carvalho Monteiro (o conhecimento Monteiro dos Milhões, o proprietário da Quinta da Regaleira), onde mais tarde veio a funcionar o Instituto Comercial Lisboa. Fica-se igualmente a saber que há muitos portugueses no Brasil que anseiam emigrar para Angola.

Com uma certa regularidade, os sócios pronunciam-se sobre a questão da missionação e um deles aproveita um artigo publicado no jornal Districto de Lourenço Marques para nos dar conta do que seriam as aspirações para o perfil do novo missionário: “O missionário de hoje tem que ser necessariamente um homem do seu tempo, prático e positivo, como convém ao ideal do seu mister. Só ele pode traduzir bem o pensamento da civilização, envolvendo nas práticas religiosas o nome da nação que representa. A ideia de Deus anda ligada, mais que coisa alguma, com a ideia da pátria. E estes dois nomes, por si tão grandes e tão magnânimos, são os únicos que, espalhados de selva em selva, poderão fazer do preto um bom homem e um ente digno de si. É necessário que sejam portugueses os missionários de terras portuguesas, porque só eles saberão realizar com o máximo proveito para a pátria, a sua missão tão simpática a todos os respeitos. Até há muito pouco tempo, achava-se o distrito de Lourenço Marques desprovido de missionários portugueses”. E refere a preocupante presença dos missionários protestantes, eles andam a educar mulheres indígenas, vê-se agora em Lourenço Marques um grande número de mulheres vestidas com trajes europeus e têm diminuído a embriaguez e a prostituição das mulheres. Seria motivo de reflexão para se tomarem medidas efetivas de lançar no terreno missionários portugueses.

Em 1892 já se fala explicitamente na fusão do Museu Colonial com o Museu da Sociedade de Geografia (o Museu Colonial existia junto do Ministério da Marinha e do Ultramar). Aqui e acolá as sessões debruçam-se sobre temas internacionais, é o caso da Exposição Universal de Chicago que se iria realizar no ano seguinte, havia que fazer um estudo sobre as relações marítimas e comerciais de Portugal com os Estados Unidos. Na sessão de maio desse ano, com a presidência do Dr. Sousa Martins, Luciano Cordeiro faz revelações sobre o Padrão de Diogo Cão que entrara nas coleções do museu. Emite-se parecer sobre a importância das missões ultramarinas, trabalho que coube à Comissão Africana, analisa-se a delimitação de Manica bem como as celebrações do Centenário do Nascimento do Infante D. Henrique, bem como do Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia.

Em meados desta década de 1890 ganha ênfase a glorificação dos heróis e das forças expedicionárias em campanhas de pacificação em Moçambique. E quando o major Calda Xavier morre a alocução de Luciano Cordeiro é vibrante:

“Quando, penetrada do mesmo santo entusiasmo que agita generosamente a nação, a nossa sociedade vê, satisfeita e consolada, refletir-se nesse entusiasmo a sua obra de vinte anos de confiada e persistente propaganda e o esforço heroico de tantos dos seus sócios que vão por dias voltar da última campanha de África, chega-nos inesperadamente a notícia de que não voltará com eles, de que não mais veremos entre nós um dos nossos mais antigos e dedicados companheiros, o valente de Mopéa e de Maciquece, o intrépido e rijo explorador do Inharrime e do Limpopo, e que de há tanto e há tão pouco tempo ainda ensinada todos a vencer a insubordinação insolente dos vátuas, e que deu a ideia e a vida para nos redimirmos dessa longa vergonha do Gungunhana; em suma o inspirador experiente, o provedor acrisolado, o guia e o conselheiro autorizado, modesto, obscuro dessa campanha tão brilhantemente dirigida por outro consócio nosso, o coronel Galhardo, tão heroicamente encerrada por outro consócio ainda, o capitão Mouzinho.

Caldas Xavier morreu.

Partira deixando na pobreza os pais, a mulher e os filhos.

Morreu deixando-os na miséria. Ao partir, aquele belo coração supunha salvar a família. Depois de ter estragado a saúde na vanguarda dos que seguem a Pátria, não tinha garantido o pão quotidiano dos seus. Morreu na vanguarda dos que morrem por ela, certamente entregando-lhe no último alento a prece pelo futuro dos filhos (…) Por isso, a vossa mesa tem a honra de propor-vos, que, com o registo público do nosso profundo sentimento, a autorizeis a que em vosso nome recomendasse à justiça e à munificência do Estado a família de Caldas Xavier”.

Confere-se medalha de ouro a António Enes, comissário régio. E em 25 de abril de 1896 há uma sessão solene no Real Teatro de S. Carlos, os heróis da expedição de Lourenço Marques vão ser homenageados e vitoriados.

 




A glorificação dos heróis das campanhas de Moçambique

 

A cerimónia de arromba no Real Teatro São Carlos, de enaltecimento aos heróis das campanhas de Moçambique parece que trouxe um novo alento à vida da Sociedade de Geografia. As atas das sessões empolam tudo quanto se passou na sessão solene no Real Teatro de São Carlos, a 24 de abril de 1896, o coronel Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo, comandante da expedição a Moçambique procurou detalhar os acontecimentos, e momentos há da sua prosa em que demonstra ser um observador atento no meio, veja-se como ele descreve a chegada dos expedicionários a Lourenço Marques:

“O aspeto da cidade é lindíssimo; as suas amplas praças e largas ruas ladeadas de construções ligeiras, em que predomina a madeira, o zinco e o ferro, tornam-na alegre e dão-lhe uma aparência diversa das nossas povoações de além-mar, em geral muito parecidas com a da metrópole.

As bandeiras das diversas nacionalidades, coroando os edifícios onde se acham estabelecidos os negociantes estrangeiros, dão-lhe um ar de festa permanente.

Apesar do que deixo dito, muitas construções de alvenaria existem na cidade, tornando-se notáveis pela posição, e vistas do porto a igreja e um edifício de forma quadrangular com portas, janelas e ameias rendilhadas, que eu soube depois ser… o paiol!”.

Falar-se-á largamente de Marracuene, os rebeldes Mahazul e Gungunhana, do rio Incomati. O coronel Galhardo apresenta assim Paiva Couceiro: “Do Sr. Capitão Paiva Couceiro, tudo o que eu pudesse dizer estaria ainda abaixo do que ele merece. Só direi que, à sua extrema coragem e sangue-frio se deve o ter-se evitado um desastre, talvez possível, pois se os pretos têm atacado os auxiliares, estes, cujo comportamento foi de uma indizível cobardia, seriam vergonhosamente derrotados, e a força branca, por não ter pernas que se comparem com as dos negros, não os poderia salvar”.

O Conselheiro Ferreira do Amaral também teceu elogios de Mouzinho de Albuquerque e deu-lhe para recapitular a saga dos Descobrimentos, e sentiu-se em posição de discorrer sobre a situação presente, ou quase:

“A bancarrota nas finanças havia sido precedida da bancarrota dos nossos direitos coloniais; as nossas dificuldades internacionais, a pressão das grandes nações, onde a necessidade de expansão dos trabalhadores via a necessidade da expansão colonial, tudo concorria para fazer lá fora pensar, mesmo nos mais antigos, que Portugal era uma nação que se extinguia, era uma nacionalidade que já não podia levantar-se; as suas colónias o bolo a distribuir como compensação de pactos secretos entre as grandes nações do mundo”.

Estamos agora em 1896, a Sociedade de Geografia teve papel na transladação dos ossos de Afonso de Albuquerque para os Jerónimos. No ano seguinte, o Dr. Sousa Martins profere uma comunicação acerca da Peste, estamos a falar do mesmo Dr. Sousa Martins que em 1881 andou na Serra da Estrela com Hermenegildo Capelo em expedição científica, disto falaremos adiante, agora temos a Peste, veja-se o que rezam as atas:

“Definiu o preletor o que seja a peste levantina, inguinal ou bubónica, levantina porque é originária do Levante, inguinal ou bubónica porque geralmente a carateriza um enfartamento dos gânglios linfáticos das virilhas. Comparou-a com a cólera-mórbus e com a febre-amarela, indicando como região de origem ou habitat de cada qual destas moléstias um grande rio, o Ganges para a cólera, o Mississípi para a febre-amarela e o Nilo para a peste, e fez ver como todos eles se encontram sob o Trópico de Câncer, deduzindo desse facto geográfico e climatológico certas analogias entre as três doenças.

De todas elas a mais terrível é a peste, não só pelos estragos enormes que diretamente causa, mas pelo terror que infunde nas populações, pela dor que causa nos que a ela escapam, mas que presenceiam o aniquilamento dos atacados, e pelo desalento, pela depressão moral que origina nos espíritos e que também produz milhares de vítimas durante as epidemias da peste.

Se a Europa quiser, a Europa não terá peste. Hoje a ciência está armada de recursos variadíssimos e absolutamente eficazes para impedir a invasão do flagelo, ou, quando a invasão se dê, para sufocar rapidamente a epidemia”.

Prosseguiu fazendo a história das epidemias da peste e depois falou sobre os meios de que a Ciência hoje dispõe para obstar os desastres. “Na terapêutica, temos o soro antipestoso, extraído de cavalos previamente injetados com o princípio maligno, e que é uma vacina cuja eficácia está oficialmente comprovada. Temos depois os grandes meios que a higiene moderna faculta, e temos sobretudo a profilaxia, que é a grande conquista científica do século que vai expirar”. E imprevistamente, o Dr. Sousa Martins faz um comentário que nos surpreende, “Atribui ao egoísmo comercial de Inglaterra a grande extensão que a atual epidemia tem tomado na Ásia. Baixando dos planaltos do centro da China, o micróbio da peste foi ter a Cantão, e daí a Hong Kong; mas só muitos meses depois de grassar nesta última cidade, e quando já era de todo impossível negar oficialmente a sua existência é que as autoridades britânicas se resolveram a fazer a declaração oficial da epidemia (…) Também disse que o micróbio da peste procura de preferência a gente pobre e miserável, como aliás sucede com os micróbios de outras doenças análogas. Atribui isto ao facto de se alimentarem esses indivíduos mais especialmente de vegetais, o que lhes torna o sangue mais alcalino, e ser nos líquidos alcalinos que melhor se mantêm e desenvolvem os micróbios”. O orador foi saudado com uma salva de palmas.

No início de 1897 é eleito como Presidente da Sociedade o Conselheiro Joaquim Ferreira do Amaral, haverá lugar para uma sessão solene e auto da inauguração da nova sede da Sociedade já nas instalações do Coliseu dos Recreios e procede-se à celebração nacional do IV Centenário do Descobrimento da Índia. Em novembro é feito o elogio do falecimento do Dr. Sousa Martins.

No final desse ano, o rei D. Carlos volta a presidir a uma grande homenagem, desta vez ao herói de Chaimite, Mouzinho de Albuquerque. E assim chegamos a 1898, há um voto de sentimento pela morte de Roberto Ivens, no final de janeiro e em maio temos nova sessão solene, estamos em plena comemoração do IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, tudo com fausto, pompa e circunstância, vêm numerosas representações internacionais, o rei agradece e lembra aqueles que pela pátria verteram o seu sangue generoso, saúda os soldados e marinheiros de hoje que andam em ásperas campanhas em África e na Ásia, sustentando gloriosamente a honra da nossa bandeira.

Agora vamos voltar um pouco atrás só para falar da expedição científica à Serra da Estrela e avançamos depois, já não falta muito para o final destas atas das sessões dos sócios, parece que é um mundo que acaba com a morte de Luciano Cordeiro, a partir de agora fica à disposição dos associados e dos leitores em geral o boletim, que ainda hoje vigora.

 




O Portugal europeu também conta: uma expedição à Serra da Estrela

 

Não se pode perder de vista que na génese fundacional da Sociedade de Geografia se cruzam o entusiasmo emergente pelos conhecimentos geográficos dentro do país e na abordagem recente do III Império, a África que se está a descobrir, a ocupar, a pôr administração e a constituir negócios. Volta-se atrás exatamente porque se encontrou um texto de Suzanne Daveau, eminente geógrafa, casada com aquele que é considerada a figura proeminente da Geografia em Portugal no século XX, Orlando Ribeiro. Ela revelou num artigo o que foi a expedição científica à Serra da Estrela organizada pela Sociedade de Geografia de Lisboa, em agosto de 1881. Saem de Lisboa 42 membros, vão de comboio, foram aclamados por numerosa assistência, está lá o Presidente do Conselho de Ministros. Passam por Coimbra e a Mealhada e no dia seguinte tomam o comboio da linha da Beira Alta, vão até Celorico da Beira. Almoçaram em Santa Comba e quando chegaram a Carregal do Sal foram saudados por alguns dos cavalheiros e os artistas da Filarmónica da terra. Celorico a expedição toma a estrada para a Guarda. Vão fazer o resto do trajeto a cavalo, no dia 4, com almoço em Manteigas e chegam pelas dez da noite ao lugar do acampamento, no planalto superior da Serra da Estrela, a 1850 metros de altitude. De que trata a expedição?

Vão-se dedicar a observações científicas variadas, estão sempre a ser visitados por um arraial de pessoas. Os expedicionários são geralmente lentes de diversas escolas, oficiais superiores do Exército, há até mesmo clínicos distintíssimos. E fica-se a saber que a expedição foi muito dispendiosa, talvez a razão principal por que não se voltou a repetir.

Recorda a geógrafa a tal finalidade da Sociedade de Geografia, “promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e afins em território português”. A Direção da Sociedade, numa representação ao rei D. Luís, declarou: “Entre os graves problemas que as Ciências Geográficas e a economia comercial têm modernamente posto a caminho da civilizadora e humanitária solução […] avulta, Senhor, a exploração científica, o estudo geográfico na sua mais lata aplicação do grande sertão africano”. A representação da Sociedade junto do monarca destinava-se a apoiar o projeto da Expedição Portuguesa ao Interior da África Austral, expedição que será efetivamente levada a cabo de 1877 a 1879, por Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens.

Voltemos à Serra da Estrela. Tudo começara com a iniciativa de Marrecas Ferreira, capitão de engenharia e professor da Escola do Exército, proposta que foi apresentada em 5 de julho de 1880 por Luciano Cordeiro. Mas como explicar que a Sociedade de Geografia tenha excecionalmente tomado interesse e gasto um ror de dinheiro numa expedição de índole caseira?

Pretendia-se com esta expedição científica conhecer a geologia, a fauna e a flora da região, o seu relevo orográfico, formação das torrentes e sua influência nos vales adjacentes, particularmente sobre os do Mondego e Zêzere; possibilidade e vantagens do estabelecimento de um posto meteorológico; sondagens das lagoas, temperatura e densidade das suas águas; riqueza mineralógica e potencialidades da sua exploração; por fim, encontrar vestígios arqueológicos e conhecer as tradições locais. Saber-se-á mais tarde que um dos promotores da expedição foi Sousa Martins, tinha concebido o projeto de montar na Serra da Estrela sanatórios para os tísicos portugueses. Nos preparativos da expedição organizaram-se doze secções científicas, cada uma com o seu programa de trabalho. A expedição foi inconclusiva, Suzanne Daveau refere apreciações críticas duras de que a Sociedade de Geografia ignorara praticamente os temas da Geografia Portuguesa, e diz-se mesmo que o Boletim da Sociedade de Geografia se ocupava primordialmente da História e descrição das colónias portuguesas. Os geógrafos queixavam-se da longa demora em serem aceites como sócios da Sociedade de Geografia. E voltemos ao virar do século XIX. Curiosamente logo em 8 de janeiro de 1900, é pedida a revisão das matérias e conteúdos de Geografia Colonial. Em fevereiro, a Comissão Americana propõe a celebração do Centenário do Descobrimento da América do Sul, prestando-se assim homenagem a Pedro Álvares Cabral. E um sócio propõe uma visita à Igreja da Graça, em Santarém, seria assim uma respeitosa homenagem aos restos de Pedro Álvares Cabral.

O conselheiro Ferreira do Amaral é reeleito na presidência, o Banco Nacional Ultramarino apoia a participação portuguesa à Grande Exposição de Antuérpia, tida como a mais brilhante e notável representação colonial portuguesa que se tem apresentado em exposições internacionais. Aliás, como vem em várias atas das sessões, passa a ser intensa a participação da Sociedade em encontros internacionais. Retira-se da ata de 5 de março as razões do louvor ao Major Sousa Machado, através do requerimento do Sr. Domingos de Oliveira, que tem o seguinte teor:

“Senhores e Consócios. A vossa Direção considerando os relevantes serviços prestados ao país e à civilização pela intrépida exposição militar organizada em Moçambique, e cometida à inteligente e patriótica direção do ilustre oficial do nosso Exército, o Major Manuel de Sousa Machado, seu comandante;

Considerando quanto representa de esforço e decidida coragem, conduzir uma coluna de soldados europeus, auxiliares e carregadores, muitas léguas pelos adustos sertões africanos que circundam Quelimane, e se prolongam pelo alto Ruo, margens de Chirua até à lagoa Chiuta, e depois pelo vale de Lujenda em direção ao Muembe, quartel principal do destemido e poderoso Mataca, rebelde e revoltado;

Considerando quanto era importante o prestígio do nome português, abatido naquelas paragens pelo desastre que vitimou ali o tenente Valadim, que infligíssemos severo castigo àquele tão audacioso régulo, contra o qual o governo inglês nos fazia sucessivas reclamações em virtude das suas incessantes razias;

Considerando que um tal facto, realizado por forma tão brilhante, deve ser-nos de legítimo orgulho e incentivo, quando notamos outros mais poderosos deterem-se ante dificuldades iguais às que a expedição venceu; o que é para nós prova, aliás desnecessário, de que ainda não se apagou nos portugueses, nem o fogo, nem o génio, nem o valor daqueles que foram dilatando a fé e o Império por terras de além-mar;

Considerando ainda que foi devido à habilidade verdadeiramente tenaz do Major Sousa Machado, auxiliado por todos os seus companheiros de armas, que o País, o Exército e o seu bravo Regimento 5 de Infantaria, puderam inscrever no seu livro de ouro, mais este assinalado feito das armas portuguesas, digno do galardão de todos nós;

E tendo em atenção que os altos poderes do Estado concederam ao nosso prezado consórcio e brioso Major Machado o mais ambicioso prémio que pode ornar a farda do soldado português, o fulvo cordão da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; a Sociedade de Geografia, sempre pronta a devidamente considerar os patrióticos e relevantes serviços dos seus consócios, prestados na causa colonial, concede ao seu sócio o Major Manuel de Sousa Machado a mais elevada distinção que a sua lei orgânica lhe permite usar”. E o Major Sousa Machado passou a ser sócio honorário sem que o Sr. Renato Batista tivesse referido a nota de serviços do Major Sousa Machado, falando da região dos lagos da África Central, é uma narrativa histórica muitíssimo curiosa para culminar no desempenho brilhante de Sousa Machado.

Nesta mesma sessão é apresentada uma proposta para a ereção dos Jerónimos como Panteão Nacional. E como veremos adiante, em 5 de maio realiza-se uma sessão solene comemorativa do Centenário do Brasil, preside o rei D. Carlos.

 

 


 

 

A prova provada de que Portugal aderiu a uma ideologia colonial

 

A sessão solene de 5 de maio de 1900, comemorativa do Centenário do Brasil, na presença do monarca, vai revelar-nos autores empolgados, rendidos ao romantismo e ao naturalismo, veja-se o tom declamatório do Visconde de Almeida d’Eça:

“Portugal, terra de pequeno âmbito mas de natureza variadíssima nos aspetos, desde os píncaros alcantilados do marão e da estrela até às planícies de leves ondulações do Alentejo, desde a selvática torrente do precipite Douro até à mansidão do Lima, à poesia do Mondego, e à importância do Tejo majestoso, desde as costas de penedia negra da Roca e de Sagres, até aos brancos areais do Cabo de Santa Maria; terra de risonha vegetação, onde a giesta e a esteva vicejam nas alturas, o tomilho e a manjerona florescem nas encostas, rosas e madressilvas se enredouçam nos balseiros, papoilas e lírios atapetam os vales; onde nas asas da brisa primaveril das montanhas vai ao mar se arrastam eflúvios acres de pinheiros, aroma penetrante da flor dos carvalhos, perfume delicado das amendoeiras; onde ao murmúrio cristalino das fontes e ribeiros se misturam, suave harmonia, em manhãs de maio trilos namorados de toutinegras, em noites de luar de agosto endeixas magoadas de rouxinóis; terra cujos filhos são os sóbrios minhotos e transmontanos, tão industriosos e ativos, ou destemidos beirões que resistiram a Roma e expulsaram as águias de Napoleão, os afanosos alentejanos que da Lezíria e da Charneca tiram produtiva messe, os aventureiros estremenhos e algarvios que foram a Ceuta e foram a Malaca, terra que produziu Luís de Camões, o Épico, e Nuno Álvares Pereira, o guerreiro santo; terra que gerou o Infante Navegador, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque; terra que deu o ser a Pedro Álvares Cabral; bendita sejas tu, minha santa Pátria, bendita sejas tu, terra de Portugal”. E, mais adiante, sem nenhuma perda de tirada apoteótica, aristocrata fala-nos do Brasil e tece considerações sobre colonização, convém ouvi-lo:

“Colonizar não é invadir regiões já habitadas e civilizadas para lhes tomar conta das fontes de receita, para lhes aurir o produto dos esforços do trabalho já orientado; não é entrar à viva força num país, exterminar-lhe os habitantes e substituir-se por completo ao primitivo dono; não é junto dos governantes assentar conselheiros astutos que fazem derivar em prol de quem lá os manda todo o caudal da riqueza indígena. Isso é conquistar, isso é administrar, isso pode ser glorioso, isso tem a sua explicação natural nas leis da História; mas isso não é colonizar.

Colonizar é receber das mãos do criador uma região nova, onde a natureza é tudo e a civilização nada, onde as florestas são virgens de machado, e as campinas nunca sentiram a charrua, onde as feras dominam triunfantes e os animais domésticos nem se conhecem, onde os habitantes são singelos, mas são ignorantes e são cruéis; e depois, com o esforço próprio, com a tenacidade no trabalho, com muita fazenda gasta de princípio, e com muita vida perdida na luta, desbravar a floresta, cultivar a campina, guiar as águas da torrente, exterminar as feras, fundas povoados, amansar o indígena bravio, ligar-se com ele, dar origem a novas raças que das raças cruzadas conservem qualidades, fazer uma nação nova onde a antiga se continue.

Foi assim que Portugal colonizou o Brasil, e fê-lo, não o esqueçamos, dispondo de tão poucos homens e tendo, durante mais de um século, de sustentar lutas sangrentas para expulsar estranhos cobiçosos. Pois bem, com tais contratempos e em período que para a grandeza da obra se pode dizer pequeno, em menos de 250 anos, Portugal tinha feito do Brasil e com o Brasil uma colónia modelo, tão rica, tão fluorescente e tão cheia de vida própria, que ao cabo daquele tempo, quando a Corte e o Governo se transladaram de Lisboa ao Rio de Janeiro, o fruto estava sazonado e a independência de facto começou então.

Como caminhamos para o termo destas reflexões, naturalmente inconclusivas, há um aspeto que importa esclarecer. Se ao princípio tudo parecia correr na maior das harmonias, era pequeno e relativamente coeso o grupo fundador, o crescimento de sócios e a expansão de interesses trouxe desavenças e questiúnculas, e a partir de certa altura elas são mesmo referidas nestas atas de sessões. A título de exemplo, veja-se que em 7 de fevereiro de 1898 regista-se qualquer coisa como um conflito paroquial, atenda-se ao registado na ata:

“O Sr. Palermo de Faria expõe que o discurso do Sr. Moreira de Almeida só lhe dera a impressão de que sua excelência o que quer é que outros trabalhem para ele ter o gosto de criticar sem trabalhar. Que estava já, e a Sociedade, muito edificado e de há muito acerca deste cómodo papel representado pelo Sr. Moreira de Almeida e pelos seus amigos, que sempre estão prontos realmente, mas é para criticar e contrariar as direções e os que têm levantado a Sociedade à altura em que ela se acha. Agora não quer também sua excelência que os sócios tenham os passatempos que lhes proporciona a maior largueza da casa e por isso o aluguer do primeiro pavimento, que foi uma das mais difíceis conquistas da Comissão do Centenário para a conveniente instalação da Sociedade e do Museu”.

A expansão e consolidação da presença portuguesa em África faz crescer o interesse pelos negócios, e por isso se discutem as indústrias coloniais, se deviam ser protegidas, qual a liberdade dos industriais para construir grandes empresas de caráter monopolista, quais os benefícios pautais na importação dos géneros coloniais. Alfredo da Silva, já um conceituado industrial, intervém nestas sessões. Os debates são calorosos, até porque há uma corrente que se reconhece dentro da Sociedade para que ela atue como entidade científica, não deve entrar em discussões como qualquer associação de classe. Já tinha aparecido e fora aprovada uma moção em que se pede à Direção que se mantenha absolutamente estranha a qualquer resposta que ultrapasse a sua missão. Já vimos antes que um outro grupo pretendia discutir os assuntos económicos. Enquanto isto se passa, e com a maior das naturalidades, um sócio bastante ativo, figura intelectual proeminente, Zófimo Consiglieri Pedroso, muda a agulha da discussão e fala numa capela colateral da parte da Igreja do Convento da Graça, em Santarém, é ali que se acha sepultado em campa rasa, e como ele diz ao desamparo os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, ele põe na mesa a seguinte proposta:

“Proponho que a Sociedade de Geografia de Lisboa envide todos os seus esforços junto dos poderes constituídos para que os restos mortais de Pedro Álvares Cabral sejam transladados da capela de S. João Baptista da Igreja do Convento da Graça de Santarém, para a Basílica de Santa Maria de Belém, onde jazem já os do descobridor do caminho marítimo para a Índia e do inimitável cantor das suas glórias”.

Registe-se ainda que há um extremo cuidado em todas as sessões em referir passamentos, alguém se encarrega de um elogio, quase sempre muito tocante, ou então há votos de pesar, registo aqui em dezembro de 1899 aquele que se refere ao falecimento de Câmara Pestana.

A ocupação de Angola e Moçambique leva à nova existência para tomadas de posição sobre companhias majestáticas, benefícios na implantação de novos empreendimentos, vimos como Luciano Cordeiro era porta-voz da contestação das empresas majestáticas. Mas no virar do século a economia e as finanças voltam a ocupar o centro da atenção dos debates e a produção de documentos. Anoto uma comunicação em que o seu autor diz:

“Entende esta sociedade que não deve haver regime proibitivo para as indústrias no Ultramar, mas sim de proteção para agricultura colonial, para as indústrias extrativas e para aquelas que, sendo de natureza privativa das colónias, não sejam similares das existentes na metrópole (…) Na tributação a decretar para as indústrias que pretendam estabelecer-se com perigo para as indústrias similares no continente está o natural regulador que deve adotar-se, pois nem se ataca na sua base o princípio de liberdade de indústria, nem se deixam a descoberto as indústrias da metrópole”. E discreteia sobre a proteção a dispensar às indústrias, o diferencial pautal, misturando sugestões sobre as missões religiosas que devem constituir elementos de estações civilizadoras, e propondo ainda reformas no sistema da administração colonial.

Chegámos ao termo das atas, a última data de 14 de maio de 1900, já se fala na realização do Congresso Colonial e o padre Inverno, missionário na província de Angola profere uma comunicação intitulada “Missão no Sul de Angola”. Continua-se a insistir que é necessário formar os quadros administrativos, recorde-se que já em 1878 a Sociedade de Geografia pedira a criação da Escola Colonial, virá a ser criada em 1906, funcionará nas instalações da Sociedade de Geografia, será mais tarde transformada na Escola Superior Colonial, designação que conhecerá mudanças, Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, mais tarde Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e depois do 25 de Abril, com âmbito muito diferente, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.

Iremos proceder agora a alguns comentários à bibliografia que propicie aos interessados dar um outro desenvolvimento ao estudo deste período e ao pensamento imperial que na Sociedade de Geografia deu engrenagem, em múltiplos domínios, ao III Império Português.

 

 

 


 

Bibliografia complementar

 

Uma Corrente do Colonialismo Português, por Ângela Guimarães

 

A primeira obra que aqui se recenseia intitula-se Uma corrente do colonialismo português, Ângela Guimarães, Livros Horizonte, 1984, trabalho realizado entre 1969 e 1972, partiu de um conjunto apreciável de interrogações sobre a criação do colonialismo, a sua natureza dependente e incapacidade de conversão e apurar o comportamento das diversas classes e grupos sociais face à questão colonial, ou seja, como se elaborou a ideologia colonialista e saber se esta se revestiu da mesma feição todo o tempo. Dada a vastidão de questões a autora escolheu o conhecimento da Sociedade de Geografia, um grupo de pressão de grande influência, estudou-o no período de 1875 a 1895, dizendo tratar-se do período crucial para o estabelecimento do colonialismo moderno na África Austral.

Começa por dizer que a fundação da Sociedade aparece em novembro de 1875, por decreto de Andrade Corvo, isto quando simultaneamente se cria no Ministério dos Negócios da Marinha e do Ultramar uma comissão permanente incumbida de coligir, ordenar e aproveitar todos os documentos que pudessem esclarecer a Geografia, a História Etnológica, a Arqueologia, a Antropologia e as Ciências Naturais em relação ao território português e muito especialmente às províncias ultramarinas – era a Comissão Central Permanente da Geografia, com tantas afinidades, estando a Sociedade sem subsídios nem lhe tendo facilitado o Governo uma sede condigna, ambas as entidades viveram num quadro de rivalidade e desgaste. A inversão desta situação deu-se em 1880 quando o Visconde de S. Januário, sócio fundador da Sociedade recebeu também como seu pelouro esta Comissão Central Permanente de Geografia. Atenda-se que quando foi criada a sociedade já existiam, um pouco por toda a parte, 40 sociedades do mesmo tipo.

A autora faz referência ao folgado conjunto de diligências para ligar Angola a Moçambique, destaca a travessia que Silva Porto efetuou em 1853-54, encontrou-se com Livingston, mas esta exploração não foi reconhecida pelo governo português. Estávamos em corrida para legalizar o território do III Império. Quando apareceu a Sociedade já Livingston tinha realizado a sua segunda viagem, Cameron já tinha regressado da sua travessia, Stanley e Savorgnan de Brazza também já tinham partido para as suas viagens estratégicas na África Central. Observa a autora que uma análise das atas e dos boletins da Sociedade, de 1876 a 1896, leva-nos a considerar três fases fundamentais de atividade: de 1876 a 1880, a Sociedade concentra todos os esforços em garantir o lugar de Portugal no movimento expansionista; de 1880 a 1882, a Sociedade esforça-se sobretudo para fazer um balanço das forças nacionais disponíveis para investir na competição; de 1882 a 1889, a Sociedade dedica os seus esforços a orientar a política e a gestão coloniais sobre o conjunto do Império, no entanto, o centro da sua atenção era Moçambique. Era uma corrida contra o tempo, recorde-se a citação de Luciano Cordeiro que consta da ata de 7 de julho de 1876, onde ele diz que umas das ideias principais que haviam presidido à fundação da Sociedade fora o reconhecimento da urgente necessidade e do imperioso dever imposto a Portugal pelas suas tradições e pela sua situação de segunda potência colonial na Europa.

Outra manifestação de rivalidade com a Comissão Central Permanente de Geografia e a Sociedade teve a ver com o envio de uma exploração científica à África Central, cada uma das entidades dava palpites sobre o sentido da viagem. Na opinião de Luciano Cordeiro e da própria sociedade, a expedição devia concentrar-se no reconhecimento das bacias do Zaire e suas relações com o Zambeze e os grandes lagos. Um outro protagonista entrava em cena, na corrida em África, Leopoldo da Bélgica. Para legitimar posições, o monarca belga promoveu em Bruxelas a Conferência Internacional de Geografia, Portugal não foi convidado. Em Bruxelas cria-se a Associação Internacional Africana e Portugal adere. Entretanto, a Sociedade cria a Comissão Nacional Portuguesa de Exploração e Civilização da África, que vemos tratada nas atas pelo nome de Comissão Africana. Nesta corrida de competição as velhas e novas potências colonizadoras andam no afã de criarem estações civilizadoras, isto é, pontos de fixação de colonos, missionários e comerciantes. Vendo-se cercado por estes competidores, Portugal agarra-se ao Direito Tradicional, que estava em vias de ficar ultrapassado, mas foi esta base histórica que permitiu manter a posse de Lourenço Marques por arbitragem internacional e é também nessa base que vai conseguir conservar tão vastos domínios reais e potências na Conferência de Berlim.

Vê-se claramente nas atas que a Sociedade fez um esforço enorme para se impor no estrangeiro, permutando publicações, angariando sócios, trazendo conferencistas, apresentando trabalhos em conferências internacionais e muito cedo o Museu da Sociedade passou a ser alvo da curiosidade científica. Passando em revista os grandes temas, a autora lembra-nos a questão das missões. Todos estavam de acordo sobre a utilidade das missões, mesmo os que pensavam que o Africano ainda não estava à altura de aceitar o verdadeiro cristianismo, e havia também uma corrente que considerava a religião como inútil ou prejudicial, no termo deste amplo debate fez-se apelo à reforma do ensino no seminário de Cernache do Bonjardim.

Questionando a ideologia imanente a este grupo, diz a autora:

“A fração da burguesia que constitui a corrente dominante da Sociedade de Geografia é extremamente criativa. Mas não detém o poder político nem possui força económica para, por si só, executar o grandioso projeto a que lançou mãos. Conta com um bom número de distintos intelectuais bem informados e lúcidos. Tem uma forte componente nacionalista. Sente-se nela um complexo de abafamento e uma enorme vontade de rebentar as cadeias. Para alcançar o seu objetivo, vai lançar mão dos meios de que dispõe para elaborar uma ideologia que por um lado a sustente e lhe dê o alento para que os grandes cometimentos e faz uma grande divulgação para as realizações”. E escreve mais adiante:

“Na Sociedade de Geografia dos anos 1870, e mesmo 1880, discute-se muito. Fazem-se exposições sobre os mais diversos temas, seguem-se propostas, discutem-se, apoiam-se, mandam-se à respetiva comissão, redigem-se relatórios”. Exaltam-se os caminhos-de-ferro, é premente levar a civilização aos lugares mais remotos. Reconhece-se um papel crucial às explorações, é preciso definir os limites do território português. O governo diz que sim às estações civilizadoras, falta o dinheiro essencial para as criar. Teima-se em formar quadros administrativos capazes, daí o curso colonial português, Teixeira de Vasconcelos irá sugerir a criação de um instituto em que se ensinariam as línguas africanas, os alunos de Cernache do Bonjardim também deveriam ter acesso a tais disciplinas. Uma proposta que deu grande polémica, se deveríamos impor a nossa língua, se se deveria apoiar uma espécie de língua crioula destinada a ser a língua comercial da África Austral. Barbosa do Bocage introduz um outro elemento nesta discussão, a sua interpretação da colonização, é cru e diz verdades com punhos: “Na África servimo-nos dos negros como auxiliares para o trabalho. Temos gasto uns poucos séculos a não fazer nada, deixando as hordas africanas entregues a si e aos seus bárbaros usos, contentando-nos apenas com uma mudança exterior nas suas crenças religiosas, tratando-se de espoliar os povos e enviando-lhes o refugo da nossa população como elemento civilizador”.

Este importante livro aqui invocado para ajudar a conhecer melhor o pensamento dos homens que fundaram e viveram intensamente os ideais do III Império vai finalizar com o capítulo dedicado à crise do Ultimatum. Deixa-se claro que nas atividades da Sociedade participaram personalidades dedicadas de diversos modos à colonização. Temporalmente a obra termina quando Moçambique já está no olho do furacão das rivalidades imperialistas. E vamos continuar com outra bibliografia.

 




A Sociedade de Geografia: As Suas Origens e a Sua Obra de 50 Anos (1875-1925), por António Ferrão

 

O mínimo que se pode dizer da edição desta obra é que foi acidentada, tem alguns pontos de interrogação, não se sabe quando foi editada e quando foi editada todas as cópias apareceram incompletas. Seja como for, este membro da Academia das Ciências, António Ferrão, esforçou-se por nos dar uma narrativa consequente, só temos conhecimento até aos primórdios do Ultimatum.  Tudo muito estranho, paciência, é sobre o que foi publicado que se pode escrever, e é manifestamente digno de atenção.

Começa por contextualizar a contemporaneidade depois do Congresso de Viena (1815), tempos pautados pela tensão entre a luta baseada no princípio do equilíbrio europeu (as conveniências das cinco grandes potências de então) e o princípio das nacionalidades emergentes (caso do estabelecimento da Checoslováquia e a unificação da Polónia). Irão arrancar os impérios continentais, como o alemão, consagram-se novas nacionalidades, como a Bélgica, a Itália, a Alemanha, a Hungria, a Grécia, a Roménia, a Sérvia e a Bulgária. Chegada a paz à Europa, enceta-se um período febril de explorações ditas científicas e a colonização de regiões extraeuropeias, África é o polo da cobiça. António Ferrão faz um curto historial das colónias existentes e remete-nos depois para a História de Portugal, pontuando momentos importantes como as invasões napoleónicas, a guerra civil e a chegada da Regeneração. Enuncia graves contenciosos com Inglaterra, a propósito da abolição da escravatura e da proteção dada pelo Estado português da Índia a insurretos da Índia inglesa. Regista os ideais da Regeneração (renovação económica, progresso material, etc.) e alude ao interesse em promover a vida no império, na pasta do Ultramar está o Visconde Sá da Bandeira, ele mostra como claramente houve projetos de investigação, entre outras iniciativas.

É no período em que Andrade Corvo é Ministro da Marinha e do Ultramar que se funda a Sociedade de Geografia. Houvera, em 1868, a ideia da criação de um museu colonial, não passou de um projeto. Faz-se uma resenha das expedições de caráter científico através de África, no século XIX, e o autor preocupa-se em expor o estado das ciências geográficas no terceiro quartel do século XIX, e dá-nos também um quadro referente aos progressos das ciências geográficas. Dentro desta moldura, estamos chegados às causas e origens da Sociedade de Geografia, parece que tudo condicionava, em 1875, ao aparecimento de uma instituição eminentemente científica e dedicadamente patriótica. Dá-nos também um quadro das ambições internacionais sobre as colónias portuguesas e seguidamente, de uma forma calendarizada, vai referindo a atividade da Sociedade desde o seu primeiro período (1876-1880). À semelhança da obra anteriormente recensionada, da autoria de Ângela Guimarães, ele também alude às tensões entre a recém-criada Comissão Central Permanente de Geografia, dentro dos quadros do Estado, e a Sociedade de Geografia. Curiosa é a definição que ele nos dá desta Comissão Central Permanente: “Composta de pessoas que, pelos seus variados conhecimentos científicos, possam cooperar para o progressivo desenvolvimento e aperfeiçoamento da Geografia, da História Etnológica, da Arqueologia e das Ciências Naturais em relação ao território português, mormente das possessões do Ultramar”. Esta comissão produziu trabalhos, e o autor enumera-os. Mas continua por esclarecer o desprendimento do Governo com a Sociedade de Geografia, composta, como se viu, por figuras da elite, e sobre o patrono régio e a quase duplicação de atividades entre o Estado e a sociedade civil. A Sociedade de Geografia vivia com inúmeras dificuldades, era obrigada a alugar sedes modestas, pôde contar com generosidades como a de um filantropo que pagou à sua custa a composição e impressão do boletim da Sociedade. E o autor enumera os primeiros assuntos versados, caso do ensino da geografia do país, as propostas de Luciano Cordeiro para a realização de conferências sobre os diversos ramos da Geografia, a reação firme do protesto à falta de convite a Portugal para estar presente na Conferência de Bruxelas, organizada pelo Rei Leopoldo, tanto mais escandaloso que o tema principal era o de estudar os problemas da exploração científica do continente africano. É nesta fase que se vão iniciar as explorações africanas e os seus protagonistas serão tratados como heróis nacionais: Serpa Pinto, Capelo e Ivens. A proteção real saldou-se numa enorme credibilidade da Sociedade, a sua Comissão Africana emitia pareceres que em muitos casos chegavam ao Governo, insistia-se desde a primeira hora que era indispensável criar um ensino colonial a sério, formar uma administração colonial capaz, e o autor dá-nos os antecedentes da Escola Colonial de 1906, e relata o que era o curso colonial português.

Talvez por desatenção, não havia referência que na sessão de 1 de abril de 1878 se fizera uma proposta ao governo para subsidiar uma expedição geográfica e comercial à Guiné Portuguesa e outra ao rio Cunene, que não teve seguimento.

Há outros dados ainda a ter em conta neste trabalho de levantamento: o acolhimento triunfal de Serpa Pinto, Capelo e Ivens; o centenário de Camões; o estudo científico da Serra da Estrela. E no período que antecede o Ultimatum o autor repertoria os trabalhos feitos sobre os caminhos-de-ferro para Angola e Moçambique, o Centenário do Marquês de Pombal, o fim da questão do Zaire e a realização da Conferência Internacional de Berlim. E num dado momento entende desenvolver as denúncias das ameaças inglesas e outras, com o epíteto de que se trata de uma campanha de descrédito contra a nossa dominação, o que se pretendia era criarmos um ambiente internacional desfavorável e que lhes permitisse o golpe de mão sobre as nossas colónias, escreve a seguinte intervenção bombástica:

“Numa exposição elaborada por peritos portugueses em resposta às ineptas acusações feitas a Portugal por causa da mão-de-obra indígena em Angola, encontramos um curioso estudo comparativo entre a nossa maneira de cuidar os aborígenes das nossas colónias e a forma como são tratados os indígenas das outras nações. É estranho – diz-se nesse relatório – que esses fementidos homens de coração, esses hipócritas filantropos, nunca protestassem quando, há anos, por ocasião da grande revolta da Índia contra o domínio britânico, a Inglaterra cometeu as barbaridades que a imprensa da época noticiou, chegando a revista inglesa The Illustrated London News a reproduzir em gravuras algumas delas, como a de prender os rebeldes às bocas de peças para, descarregando estas, os fazerem voar aos pedaços, devendo notar-se que só num dia tiveram esta horrorosa morte quarenta sipaios, além de doze que foram enforcados. Pois essa mesma revista a justificar tais factos escreve: ‘Seja o que for que em Inglaterra se pense acerca deste género de castigo, é sabido, por aqueles que conhecem bem o caráter asiático, que é absolutamente necessário numa crise como a atual na Índia. Horrível é decerto este castigo, mas não esqueçamos o horror das circunstâncias que fizeram um dever da sua aplicação, e não esqueçamos também, o que é certamente verdade, que a aplicação deste castigo é fiscalizado por homens justos e que não são menos, recordemo-lo, porque o rigor tem agora de se aliar à justiça’. Eis, pois, o quilate dos tais homens justos e de sentimentos humanitários que de tempos a tempos erguem gritos de censura, de vitupério, contra nós.

Mas não é tudo. Naquela mesma revolta, em certa ocasião meteram tal número de rebeldes na prisão, sem ar bastante, que na manhã seguinte todos haviam morrido.

Mais tarde, na luta contra os bóeres, no Transval, os ingleses faziam saltar com dinamite, nas cavernas do Indomo, centenas de mulheres e de crianças, sem falar na famosa e humanitária diversão de o espetar porcos aplicado aos bóeres.

Coisa idêntica já haviam feito os franceses, em 1845, nas campanhas da Argélia, acendendo grandes fogueiras à entrada de grutas onde havia centenas de homens, mulheres e crianças.

Quanto à maneira dos alemães considerarem os pretos, lá diria certo viajante germânico: ‘Não vamos a África para fazer caretas filantrópicas. A raça branca deve suplantar a raça negra e o modo mais prático de conseguir este resultado consiste no extermínio do preto: os povos negros não têm direito algum a existir’. Outro alemão escrevia: ‘A caça aos negros é um desporto muito agradável’.

E é sabido que os franceses têm-se farto de fazer escravatura do Sudão e os belgas no seu Congo.

Quanto ao humanitarismo dos norte-americanos são conhecidos muitos atos contra os negros.

Acerca de moralização e morigeração de costumes dos indígenas tem-se criticado a deportação de criminosos para as nossas colónias, como se a França e a própria Inglaterra não fizessem o mesmo, devendo-se acrescentar que o nosso deportado se porta, geralmente, muito melhor que o condenado das colónias penais inglesas da Australásia. Já Livingston se admirava como em Luanda os 16 mil habitantes iam todas as noites sossegadamente, não obstante saberem que as cidadelas e as armas da cidade estavam nas mãos de deportados.

Quanto à moralização dos aborígenes, conta H. Johnston, em The Colonisation of Africa que certa companhia inglesa, a quem estava entregue determinado território da Serra Leoa, com o fim de aumentar ali a população, tomou uma medida muito simples: mandou ir 60 prostitutas de Londres ‘para casarem com os pretos e fazerem-se mulheres honestas’.”

Pena tratar-se de um livro truncado, seja como for é obra elementar no contexto do estudo sobre o pensamento imperial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa.

 




Sociedade de Geografia de Lisboa: 75 Anos de Atividades ao Serviço da Ciência e da Nação (1875-1950)

 

Antes de continuarmos as referências à bibliografia complementar para este conjunto de artigos referentes aos sócios fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, no período estimado entre 1875 e o dobrar do século, recorde-se que já se fizeram alusões a duas obras: Uma Corrente do Colonialismo Português, por Ângela Guimarães, Livros Horizonte, 1984; e A Sociedade de Geografia, As Suas Origens e a Sua Obra de 50 Anos (1875-1925), por António Ferrão, sem data, como se disse obra incompleta. Iremos hoje referir outra edição da Sociedade de Geografia alusiva aos 75 anos de Atividades ao Serviço da Ciência e da Nação, edição interna com data de 1950. Mais adiante, daremos ao leitor a súmula de duas obras que reputamos como importantes para o estudo do pensamento dos pais-fundadores e que são A Sociedade de Geografia e as Expedições Africanas de Portugal a Sul do Equador entre 1855 e 1926, dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, por José Manuel da Silva Veríssimo (pode-se consultar na Biblioteca da Sociedade de Geografia); e Nos Caminhos de África, Serventia e Posse, Angola, Século XIX, por Maria Emília Madeira Santos, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1998.

Vejamos agora a súmula desta obra dos 75 anos da Sociedade de Geografia. O autor (desconhecido) retoma o tema da fundação e os fins da Sociedade, recordando que a assembleia-geral dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, em que foram eleitos os primeiros corpos gerentes, reuniu em 3 de abril de 1876 na Sociedade de Ciências Médicas, que então ocupava um prédio da Rua do Príncipe, sito no local onde hoje se encontra a Estação Central dos Caminhos-de-Ferro. A primeira sede da Sociedade funcionou no segundo andar do prédio n.º 89 da Rua do Alecrim, na esquina para o Largo do Barão de Quintela, onde a Sociedade se manteve com notório desenvolvimento até 1883, ano em que se transferiu para o primeiro andar do prédio n.º 5 da Travessa da Parreirinha (depois Rua Capelo) e transferiu-se em 1891 para o palacete da Rua das Chagas n.º 5 (onde mais tarde funcionará o Instituto Comercial de Lisboa) que ocupou até à sua instalação, em 1897, no edifício da Rua das Portas de Santo Antão. Nesta data, no vestíbulo, havia duas pequenas peças de artilharia e nas paredes havia panóplias de armas gentílicas, algumas das quais são verdadeiras raridades. No primeiro andar existiu um salão de leitura de jornais, bem como um ginásio, mais tarde em duas divisões deste primeiro andar funcionaram a Escola Superior Colonial e a Escola Superior de Educação Física; o segundo andar albergou sempre a Sala Portugal, as salas Algarve e Índia. A biblioteca que está hoje no primeiro andar chegou a estar no andar superior, bem como secções do museu. O Museu Colonial tem a sua história, vale a pena aqui uma referência. Chamava-se Museu Colonial e Etnográfico, foi criado em janeiro de 1871, e foi afetado à Direção-Geral do Ultramar, da Secretaria de Estado dos Negócios, da Marinha e Ultramar, tendo sido transferido para a Sociedade de Geografia de Lisboa em março de 1892.

Este historial dos 75 anos procede a uma descrição de como funcionou a Escola Superior Colonial e a Escola Superior de Educação Física. O leitor interessado encontrará também aqui uma nota breve sobre o intercâmbio científico internacional; uma relação das atividades de Defesa, Vulgarização e Propaganda Ultramarina.

Tal como já se verificou da apreciação das atas das sessões, logo nessas primeiras reuniões, a preocupação dos sócios-fundadores manifestou-se em prol da defesa dos nossos interesses ultramarinos e daí se ter sugerido ao governo a conveniência de se realizar uma expedição portuguesa a África, cujo plano o sócio H. Bandeira de Mello Madureira apresentou na sessão de 28 de outubro de 1876. Nesta mesma sessão se tomou conhecimento das atas da conferência que, durante cerca de um ano, se reunira em Bruxelas, a convite do rei Leopoldo II, para se ocupar do seu projeto de ocupação pacífica da África Central. Os sócios aperceberam-se dos perigos para as nossas possessões, e a provou-se um voto para que “o Governo e a Ciência Naval se empenhassem em manter vigorosamente a honra e o direito da Nação”, sugerindo-se que esta reclamada exposição a África procedesse à ratificação definitiva dos limites do território sob a nossa soberania. E também se apelou à redação em várias línguas uma memória descrevendo o que Portugal tinha feito em matéria de estudos respeitantes à geografia africana.

Como já se percebeu, as preocupações com a geografia em Portugal continental e insular vão sendo preteridas toda a questão africana. O sócio Pinheiro Baião salienta “a conveniência de se promover o reconhecimento e ocupação efetiva do território ao norte de Ambriz, devendo uma expedição explorar a ligação das duas costas, aproveitando-se o curso do Cunene, Cubango e Zambeze”.

Em junho de 1877, comunicava o governo à sociedade terem sido nomeados Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens para levarem a efeito a expedição, “devendo os ditos oficiais, antes da sua partida, fazerem na sociedade uma expedição do seu programa e itinerário provável”.

Dão-se, nas sessões da Sociedade, ao longo de 1877, 78 e 79 informações sobre as viagens dos exploradores. É neste ambiente de natural exaltação patriótica que a recém-criada “Comissão Africana” da Sociedade lança a ideia da constituição de um fundo africano destinado a incentivar a obra de exploração e civilização de África. Decidiu a Comissão Administrativa deste Fundo apelar ao país, numa exposição da nossa situação em África, acompanhada de um mapa em que se apresentava, colorida, a larga faixa territorial que nos levaria de Angola a Moçambique, o “Mapa Cor-de-Rosa”. A viagem de Henrique de Carvalho, através da Lunda, de 1884 a 1888, obedece também à doutrina que presidiu ao estabelecimento de estações, que eram verdadeiros marcos de ocupação pacífica.

E findamos aqui porque chegámos a 1900, ano em que se realizou o primeiro Congresso Colonial Nacional, o pensamento imperial está em mutação.

 

A Sociedade de Geografia e as Expedições Africanas de Portugal a Sul do Equador entre 1875 e 1926, por José Manuel da Silva Veríssimo

 

Continuando as referências à bibliografia  que permite complementar conhecimentos sobre o pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa relembramos a dissertação para a obtenção de Mestre em História e Filosofia da Ciência, é seu autor José Manuel da Silva Veríssimo e intitula-se A Sociedade de Geografia e as Expedições Africanas de Portugal a Sul do Equador entre 1875 e 1926, a edição é da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 1999, exemplar policopiado que pode ser lido na Biblioteca da Sociedade de Geografia.

Na introdução, o autor recorda-nos o despertar dos interesses europeus para os recursos africanos em simultâneo com a possibilidade de se encontrarem novos mercados para se escoarem os excedentes do segundo surto industrial europeu – estão aqui as alavancas decisivas de todo o processo de expansão europeia em África, na segunda metade do século XIX. Estamos na época das grandes iniciativas exploratórias de caráter científico, resultantes de uma curiosidade genuína por parte de grupos de cientistas prontos para abrir novos trilhos, gente imbuída pela curiosidade, com grande vontade de investigar, pronta a irromper pelas florestas. Há convergência de elementos, esta época não surgiu ao acaso, como observou o historiador Fernand Braudel: “O tráfico negreiro europeu cessou no preciso momento em que a América já não tinha necessidade urgente dele. Para o Novo Mundo, o emigrante europeu foi substituir o negro na primeira metade do século XIX para os EUA, na segunda para a América do Sul”.

Atendendo a este contexto, a Sociedade de Geografia soube impor-se pelas iniciativas e pelas pontes que estabelece com as principais academias e sociedades mundiais e pelo dinamismo que imprime a toda a problemática colonial africana. O autor, depois de nos apresentar a aventura exploratória de Silva Porto e outros continuadores, faz o seguinte comentário: “É notável o quase desdobramento dos exploradores: Henrique Dias de Carvalho, que empreende a viagem ao Quimbundo, Cubango e Cassai, em Angola; Silva Porto e Augusto Cardoso, ao Niassa, em Moçambique; Roberto Ivens e Hermenegildo Capelo que, com Serpa Pinto, empreendem a travessia de Angola à contracosta. A diplomacia portuguesa consegue o reconhecimento pela Inglaterra da soberania portuguesa nas duas margens do rio Zaire, até às fronteiras do Estado do Congo, em troca de facilidades concedidas por Portugal, ao comércio e navegação do Zaire e Zambeze.

Depois do Ultimatum deu-se um abrandamento do surto expedicionário, num cenário de crise. Neste contexto, dever-se-á incluir o papel dos interesses das companhias comerciais que após terem sobrevivido à crise financeira de 1891 despertaram para as promissoras fontes de rendimento. É o caso da Companhia Majestática para a Ocupação e Exploração da Região do Niassa (1891), a Companhia de Cabinda (1903), a Companhia dos Diamantes de Angola (1917) e a Companhia Colonial de Navegação (1922). Lembra-nos o autor que a I República não alterou o sentido da política colonial em curso. E mais, apesar de todas as dificuldades que a sociedade republicana irá atravessar, a Sociedade de Geografia logra manter à sua volta a mais importante plêiade de investigadores, quadros académicos, administrativos e militares, capazes de globalizar o saber colonial. Este é no fundo o quadro introdutório dado pelo autor e vejamos agora em síntese a matéria que nos interessa até 1900.

No arranque do seu trabalho, o autor equaciona a Sociedade de Geografia com as etapas de reconhecimento do império português em África, tudo isto na segunda metade do século XIX. Deve-se ao Marquês Sá da Bandeira a viragem para esta política africana. Em 1844-45, Sá da Bandeira promove, com um atraso de 87 anos, a publicação do diário de Lacerda e Almeida e do Padre Francisco João Pinto, seu companheiro de viagem. Este diário constituirá um guia essencial no desbravamento dos esforços africanos pelos europeus. Será a Sociedade de Geografia a publicá-lo em 1883 bem como o diário dos pombeiros Pedro João Baptista e Amaro José que, partindo de Cassange em novembro de 1802, atingem Tete em fevereiro de 1811. Será Luciano Cordeiro o elemento aglutinador, à sua volta constituir-se-á um grupo de 74 individualidades ligadas aos mais diversos da investigação científica e intelectual da sociedade revolucionada por Fontes Pereira de Melo. O autor fará depois a descrição dos primeiros tempos de atividade da Sociedade, vê-se que no seu trabalho de investigação acompanhou de perto as atas das sessões da Sociedade bem como os respetivos números do Boletim. Noutro capítulo abordará as expedições africanas portuguesas, como se irá processar a delimitação europeia das fronteiras em África e qual o quadro de agudização das rivalidades entre as potências imperiais (1884-1890). De facto, tinham surgido novos concorrentes: Leopoldo II da Bélgica e Guilherme I da Alemanha. Em 1887 a Sociedade de Geografia assinalou uma alteração à opção estratégica, passara o tempo das gloriosas travessias, impunha-se fazer explorações menos ruidosas, optou-se pelas explorações parciais, mais modestas na aparência mas com resultados funcionais, com provas de ocupação efetiva, como escreve outra autora a que iremos fazer referência, Maria Emília Madeira Santos, em Viagens de Exploração Terrestre dos portugueses em África, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1978. E de facto ir-se-ão multiplicar as explorações limitadas ao quadro regional. Perante a posição britânica Portugal teve que recuar e buscar consolidação pela ocupação efetiva.

Fez-se referência às evocações dos 50 e 75 anos da Sociedade de Geografia. Manuela Cantinho, Diretora do Museu e o Presidente da Sociedade de Geografia, Luís Aires-Barros são os autores da obra alusiva aos 140 anos da Sociedade de Geografia (1875-2015). Acrescenta-se sempre um ponto ao que ficou já registado em olhares anteriores. Recorda-se o expressivo atraso com que criámos entre nós a Sociedade de Geografia, cerca de 50 anos face a franceses, ingleses e alemães, que se lançaram a organizar expedições. Diz acertadamente o presidente Aires-Barros que a Sociedade de Geografia é património cultural da Nação e contém vasto património da Nação, e escreve:

“É património cultural e material da Nação na medida em que foi nela que germinou e floresceu, na sequência do pensamento de Luciano Cordeiro e companheiros, seus fundadores, a ideia da promoção de conhecimento e de desenvolvimento socioeconómico e técnico-científico dos vastos territórios ultramarinos, principalmente africanos”. Não deixa de referir a riquíssima documentação existente na Sociedade, incluindo os cadernos de campo e documentação diversa de Serpa Pinto, Roberto Ivens, Hermenegildo Capelo, Henrique de Carvalho, Silva Porto e Gago Coutinho. E faz-se o histórico deste período de lançamento inicial da Sociedade de Geografia que vai até à morte de Luciano Cordeiro em 1900. Manuela Cantinho debruça-se sobre o espólio cultural da Sociedade de Geografia nesta edição graficamente irrepreensível onde qualquer leigo pode constatar a riqueza patrimonial da Sociedade. E agora a nossa leitura vai orientar-se para os trabalhos de Maria Emília Madeira Santos.

 



 



Nos Caminhos de África, de Maria Emília Madeira Santos

 

Seria imperdoável não adicionar à bibliografia complementar alusiva ao acervo que aqui se apresentou sobre as atas das sessões do período inicial da Sociedade de Geografia de Lisboa o texto incluído no livro Nos Caminhos de África, da autoria de Maria Emília Madeira Santos, publicação do Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1998, intitulado Das Travessias Científicas à Exploração Regional em África: Uma Opção da Sociedade de Geografia de Lisboa. É um texto por demais esclarecedor da filosofia imperial do grupo fundador, a autora, uma categorizada investigadora, estende as suas considerações ao período posterior ao que aqui se analisou (ou seja, até ao falecimento de Luciano Cordeiro, o dínamo da Sociedade, em 1900), veja-se a riqueza e a pertinência das suas observações.

Começa por dizer que não há margem para dúvidas sobre o desempenho da Sociedade no impulso das grandes travessias de África, ocorridas nos anos de 1876 e 1885. Estes fundadores da Sociedade aperceberam-se da oportunidade de urgência em apresentar à Europa científica e política explorações sensacionais, que caíssem no goto da cena internacional. Mas foram igualmente estes fundadores que decidiram, quando chegou o tempo de mudar de tática, pôr termo às grandes explorações geográficas em extensão e ocupar-se da exploração regional e do estudo aprofundado e científico das áreas da “África Portuguesa”, também com o fito de lhe dar um conhecimento a nível europeu. Para a autora, o debate que teve lugar durante a preparação da “Expedição Científica Portuguesa à África Austral”, em 1876, terá sido o primeiro sinal de duas orientações perante a exploração terrestre em África, que podem detetar-se no último quartel do século XIX, devido ao impulso primeiro da Conferência de Bruxelas e aceleradas posteriormente pela Conferência de Berlim.

Os membros da então “Comissão Permanente de Geografia” dividiam-se em duas teses, uma era encabeçada por Luciano Cordeiro, dava como essencial a travessia, a outra representada por João Júlio Rodrigues, punha ênfase na exploração dos territórios considerados sobre soberania portuguesa. Recorde-se que na exposição que a Sociedade enviou ao rei D. Luís, em junho de 1876, aludia-se à “conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa”. Pinheiro Chagas enviou a África várias expedições destinadas a definir os limites de algo que era um desejo, “o domínio português em África”. Fora a Sociedade que alertara em 1881 para a urgência de definir fronteiras de um domínio que se apresentava como extensíssimo, mas em relação ao qual se alegavam fundamentalmente “direitos históricos”.

A Sociedade recebeu como heróis Capelo e Ivens, e pretendeu que essa imagem chegasse ao todo nacional. A sessão solene no Teatro Real de São Carlos, a 1 de outubro de 1885, teve o fausto dos grandes acontecimentos e iria constituir o fecho das grandes travessias da África Austral, com repercussão internacional.

Entretanto a Sociedade criara um grupo técnico-científico de gabarito, a “Comissão Africana”, em 1878, competia-lhe examinar com detalhe os assuntos referentes a África, avançou com propostas do reconhecimento geográfico e do levantamento das cartas de Angola e Moçambique, de explorações no terreno sobre o ponto de vista geológico e mineralógico. Mas o âmbito de reflexões era extenso, ia desde o levantamento hidrográfico das costas e portos, passava pelo problema da balizagem e faróis, explorações botânicas, e muito mais. No acervo respeitante às atas das sessões, estou em crer que ficou bem claro o papel desta comissão africana.

A conceção política colonial conheceu uma inflexão incontornável na Conferência de Berlim, era a ocupação efetiva que contava, e os trabalhos da Sociedade revelam que se despertava para a nova realidade, são amplas as referências aos engenheiros dos caminhos-de-ferro e das expedições de obras públicas, a partir de 1877 chegam os seus relatórios técnicos. E daí a recomendação da Sociedade “em mandar explorar por pessoas competentes as colónias, estudando-as e descrevendo-as sob o ponto de vista da sua geografia, linguística, etnografia, climatologia, demografia e patologia”. Foi mesmo previsto um prémio para a melhor memória em trabalho original que se escrevesse a respeito de geografia e colonização das terras de África trópico-equatorial.

Também vimos a importância da colaboração de Joaquim José Machado, engenheiro militar, que cursara a Escola Politécnica e a Escola do Exército, regressara de Moçambique, é o principal alertador do que se vai passar com a intrusão britânica, não deixando, no entanto, de alertar que se devia cuidar das vias de comunicação, tão negligenciadas. As intervenções do Engenheiro Machado foram publicadas em separata, mas os decisores ter-lhe-ão dado pouca ou nenhuma importância. Fizeram-se estudos sobre os caminhos-de-ferro de Lourenço Marques e Ambaca, como igualmente sobre as estações civilizadoras, que não eram mais que polos de concentração abrangendo comerciantes, missionários, técnicos ligados aos empreendimentos. Em 1882, o diretor de obras públicas do caminho-de-ferro de Ambaca apela para uma viragem estratégica da Sociedade, não basta teoria, é necessário apostar nas questões práticas, algo devia mudar no funcionamento da Comissão Africana. Esta também passa a ser confrontada com as explorações de grande reconhecimento e as de âmbito meramente regional. Os projetos de travessia sucederam-se, em março de 1887 surge o projeto de Caldas Xavier, a Comissão Africana tinha dúvidas, como expendeu: “Será agora o momento histórico apropriado, para tentar novas travessias ou será, pelo contrário, mais azada a ocasião para partir dos traços gerais para os dados particulares e de pronto imediatamente utilizáveis?”.

Acontece que Inglaterra ia gradualmente desfazendo o sonho de uma África portuguesa em continuidade do Atlântico até ao Índico. Começaram as exigências de saídas para o mar através do Zambeze e Lourenço Marques. Procura-se a resposta mais adequada através de expedições de obras públicas, verdadeiras brigadas de reconhecimento geográfico. Um conjunto de exploradores trabalhava contra o tempo, procurando acompanhar a corrida a África em zonas claramente disputadas. Joaquim José Machado regressa de Moçambique em 1889 e apela a medidas enérgicas, uma delas à definição das fronteiras de Moçambique. A reação inglesa foi brutal, rasgou ao meio o Mapa Cor-de-Rosa e procurou empurrar para o litoral os limites do domínio português.

A criação da British South Africa Company concretizava todas as previsões apresentadas pela Sociedade ao Governo. Havia que reconhecer que ao avançar para territórios considerados sob a soberania de Portugal durante três séculos a companhia inglesa pouco encontraria que evidenciasse a nossa ocupação e ação civilizadora permanente. E seguiu-se o Ultimatum. Recorde-se a atmosfera de pesar que foi a sessão de 20 de janeiro de 1890, onde se discutiu o Ultimatum. E sugeriu-se uma exposição das cartas geográficas relativas aos descobrimentos e explorações, acompanhada da respetiva bibliografia. Desejava-se que a exposição abrisse ainda naquele mesmo ano no mês de junho e se limitasse a África. Viria a ser inaugurada em dezembro de 1903, com uma riqueza cartográfica que ia desde o Brasil ao Japão e desde Cabo-Verde a Timor. Luciano Cordeiro, como se disse atrás, falecera em 1900, é Ernesto de Vasconcelos quem está ao leme da Sociedade, foi ele o grande obreiro da exposição realizada. E a autora termina o seu trabalho dizendo que a Exposição Cartográfica de 1903-1904 foi a opção adequada de uma sociedade científica na procura de uma resposta de nível cultural a um problema político, cujo tratamento direto estava fora do seu âmbito.

Como se vê, um interessantíssimo documento; e para finalizar voltamos de novo a Maria Emília Madeira Santos e à sua obra Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, editada pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar/Centro de Estudos de Cartografia Antiga, 1970.

 

 

Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, por Maria Emília Madeira Santos

 

Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África, por Maria Emília Madeira Santos, conheceu duas edições, a que me foi dado ler na Biblioteca da Sociedade de Geografia é da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, dada a ligação que a investigadora tinha com o Centro de Estudos de Cartografia Antiga.

Classifico este trabalho como da maior importância, logo pelo seu sumário, tão atrativo para quem queira conhecer as ligações entre a Expansão Portuguesa e África ao longo dos séculos: fontes do conhecimento de África na Europa cristã antes da Expansão Portuguesa; primeiras viagens em terras do noroeste africano; caminhos para desvendar África no final do século XV, penetração na Guiné; o reino do Congo; o império do Preste João – mito e realidade; revelação do império de Monomotapa: missionários, soldados e mercadores neste império; o Cabo da Boa Esperança; Madagáscar e as naus da Índia; a Etiópia e o Nilo: dois enigmas; projetos de travessia – conquista da África Austral no século XVII; governantes, sertanejos, engenheiros, pilotos preparam a travessia de África; a expansão sertaneja no final do século XVIII a caminho da África Austral; a primeira tentativa de travessia científica da África Austral – o Dr. Lacerda e Almeida e a via Cazembe-Muatiânvua; a Lunda aceita o comércio português mas não a influência política; Portugal e o movimento geográfico europeu: expedição portuguesa ao interior da África Austral em 1877; Serpa Pinto atravessa África; a corrida a África: Capelo e Ivens executam a ligação das duas costas; Henrique de Carvalho explora a Lunda; expedição Pinheiro Chagas – a nova exploração africana.

A investigadora recorda-nos que entre 1876 e 1885 triunfara na Europa a ideologia colonial. Além da procura de matérias-primas e de novos mercados, os países europeus desejavam garantir-se pelo poder político e arvoraram-se em executivos predestinados de uma missão civilizadora. Em 1875, a Enciclopédia Britânica ao dar a explicação da palavra África insistia várias vezes no desconhecimento sobre aquele continente. As tentativas de penetração operaram-se através do Mediterrâneo, pela Tunísia e o Egito, foram pontos de partida para penetrações em direção à África Negra. A França utilizou a Argélia para atingir a foz do Níger e o oeste africano. A Inglaterra utilizou o vale do Nilo para penetrar na África Oriental. E, entretanto, apareceram novos competidores, a Bélgica e a Alemanha. Era exatamente na África Austral que o Império Colonial Português possuía as suas maiores colónias, era o polo de atração. Apercebendo-se desses apetites internacionais, gerou-se um entusiasmo em Portugal, era preciso conhecer a geografia e demarcar o nosso império africano. Teve entre nós forte repercussão a Conferência Geográfica de Bruxelas, convocada por Leopoldo II da Bélgica, em 1876 e em que tomaram parte a anfitriã, a Bélgica, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia, Portugal não foi convidado. Leopoldo II criou a Associação Internacional Africana destinada a servir os seus projetos colonialistas e surgiu um fenómeno novo, apareceram exploradores ao serviço das grandes potências, dispondo de muitas facilidades: Brazza, ao serviço da França, Stanley contratado por Leopoldo, disputam o domínio do Zaire, a grande via para o interior de África. A Inglaterra, pressionada pelas aspirações dos colonos do Cabo, segue o movimento dos Bóeres em direção ao Norte e lança as vistas para a Bechuanalândia, que se estendia do Zambeze até ao Orange. Progressivamente, entre 1876-1884, a África Central iria transformar-se no campo de rivalidades das potências europeias. Portugal ou era ignorado ou denegrido. Exploradores prestigiados, como Livingstone e Cameron, lançaram fortes críticas à administração portuguesa em África, acusavam o Governo Português de continuar a permitir o comércio de escravos. Portugal tinha uma questão de emigração que não era de fácil alteração: o polo de atração continuava a ser o Brasil, só a classe mercantil e um grupo de cientistas se interessava por África. Impunha-se uma nova via, veja-se os antecedentes do estudo da Geografia.

Estes estudos estavam muito prejudicados desde o encerramento da Sociedade Real Marítima, no princípio do século XIX. Em 1876 fundava-se a Comissão Central Permanente de Geografia, que surgiu pouco depois da Sociedade de Geografia de Lisboa. Nesse tempo o principal problema da geografia africana era ainda o estudo da sua complexa hidrografia. O curso do Zaire fora apenas contornado por Cameron, desconhecia-se a sua nascente. Na opinião de Luciano Cordeiro, a expedição portuguesa devia internar-se na bacia do Zaire, descobrindo-lhe as origens e quais as relações com o Zambeze e com os grandes lagos. Estes sócios-fundadores da Sociedade de Geografia acalentavam a esperança de ver os portugueses encontrarem melhores caminhos entre Angola e Moçambique. A opinião de Luciano Cordeiro era que se deveria fazer a travessia, opinião que contrastava com a de José Júlio Rodrigues, secretário da Comissão Central Permanente de Geografia, este considerava que o centro de África estava irremediavelmente perdido para Portugal, advogava que a expedição devia fazer somente o reconhecimento geográfico e económico das partes menos conhecidas.

O principal objetivo da expedição de 1877 acabou por ser o estudo do rio Cuango nas suas relações com o Zaire e com os territórios portugueses da costa ocidental. Nomearam-se três exploradores: Serpa Pinto, oficial do Exército, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, oficiais da Marinha. Desconhecia-se por esta altura que Stanley já tinha iniciado a descida do Grande Rio, o que tornava assim extemporâneos os projetos dos portugueses. Encetada a viagem, encontraram Stanley em Cabinda, ele acabava de descer o curso do rio. Decidiram então os exploradores portugueses fazer a viagem pelo Sul, partindo de Benguela e daqui dirigiram-se ao Bié. Começaram aqui os desentendimentos entre Serpa Pinto, Capelo e Ivens. No Bié, em casa de Silva Porto, manifestas as divergências, Serpa Pinto optou pela travessia de África enquanto que Capelo e Ivens definiram como objetivo da viagem o estudo do Cuango. Já separados, Capelo e Ivens dirigem-se para as nascentes do Cuanza, seguem depois para os Quiocos, um vai estudar o curso superior do Cuango e o outro segue a linha divisória das águas do Cuanza e do Cuango. Passaram por inúmeras dificuldades, atingem Malange, encontram o rio local e chegam à Fortaleza do Duque de Bragança e daqui seguem para o Cuango. Concluíram que era impossível o levantamento do Cuango.

Quanto a Serpa Pinto, ele atravessou o rico país dos Ambuelas, desceu o rio Ninda e chegou ao Zambeze; daqui alcançou o reino de Barotze onde obteve pirogas e navegou pelo Zambeze abaixo. Próximo da confluência do Cuango com o Zambeze encontrou os primeiros ingleses. Depois de muito penar chegou ao Transval. Em Pretória envia um telegrama para Lisboa, sossegou quem andava inquieto, o seu paradeiro era desconhecido. A parte da viagem que apresenta maior interesse, como Serpa Pinto reconheceu, é o percurso entre o Bié e o Zambeze, região completamente desconhecida dos geógrafos. Estava feita a travessia de África, mas a ligação entre Angola e Moçambique mais uma vez falhara.

A Sociedade de Geografia de Lisboa pede ao governo em 1880 a continuação das explorações geográficas e a fundação de missões religiosas e estações civilizadoras. Foi durante o ministério de Manuel Pinheiro Chagas que se pôs em marcha o vasto plano mais tarde conhecido pelo Mapa Cor-de-Rosa. Neste tempo o objetivo era bem claro: tentava-se definir o domínio português em África. Em novembro de 1883, Pinheiro Chagas criava a Comissão de Cartografia junto do Ministério da Marinha e Ultramar. Iniciaram-se imediatamente os trabalhos para a elaboração de um atlas geral de todas as colónias. Em 1884 organizaram-se nada menos do que três grandes exposições: Capelo e Ivens cruzaram a África de Angola a Moçambique; Serpa Pinto e Augusto Cardoso exploraram o norte de Moçambique, tendo o segundo atingido o Niassa; Henrique de Carvalho percorria a Lunda até ao Muatiânvua. António Maria Cardoso viajava nas terras de Gaza e Inhambane, Paiva de Andrade avançava de Quelimane até Gaza, Artur de Paiva explorava o Cubango, e enquanto tudo isto se passa as missões católicas de S. Salvador do Congo e do Huíla entraram em intensa atividade.

Com a recensão desta obra de Maria Emília Madeira Santos dá-se por concluída a apresentação de uma bibliografia complementar que permite aos interessados encontrar fontes documentais que expliquem com mais desenvolvimento o pensamento colonial destes fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, eles foram determinantes para a consolidação do III Império Português.



Mário Beja Santos

 





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