quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

A crónica estarrecedora da derrocada de uma comunidade agrária, na gândara.

 





Guardo para mim que Carlos de Oliveira foi o grande artífice da revolução literária em Portugal, na década de 1940, iniciou-se no movimento neorrealista, de que mais tarde se desvinculará, neste tempo produzirá um romance de alto calibre, Casa na Duna, na década seguinte outro prodígio, Uma Abelha na Chuva, outro tumulto literário acontecerá na década de 1970, com Finisterra: paisagem e povoamento. Distingue-se de qualquer outro escritor pelo permanente cuidado em rever as suas obras até as reduzir à quintessência do medular, uma prosa sem um pingo de enxúndia, uma economia na prosa sem igual, tenho agora nas mãos a 5ª edição, de 1977, afinou o estilo, faz-se inteiramente compreender com a eliminação de todo o pormenor vagante:

“Na gândara há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres.

Ao fundo dum desses sítios, há uma pequena lagoa que o calor de julho seca. A aldeia chama-se Corrocovo e a lagoa nem sequer tem nome. Quando a água se escoa, a concha gretada está coberta de bunho. As mulheres ceifam-no, estendem-no ao sol, e entrançam esteiras que vão vender às feiras da vila de Corgos.

Mariano Paulo e os amigos descem da quinta, caçam ali os patos bravos, quando o outono os leva de passagem para as terras quentes do sul. O charco espalha sezões nos casebres à borda de água e agasalha as aves para os senhores da aldeia derrubarem a tiro. Aves com frio, caçadas crepusculares”.

Entram em cena os personagens, logo Mariano Paulo, o Dr. Seabra e o Guimarães, mais adiante o Lobisomem (de corpanzil vergado e uma das pernas arrastar). A prosa é esquemática, totalmente elucidativa: “O povoado escreve sobre a duna que há perto de duzentos anos os pinhais começaram a fixar. No alto, a descer para o poente, fica a quinta dos Paulos. A casa tem dois pisos e é ampla e velha. Uma larga alpendrada resguarda-lhe as janelas da chuva, das nortadas. A telha é antiga, canelada, e o tempo enegreceu a caiação. A quinta desdobra em leiras de pinhal, vinha, milho, pela gândara dentro”. Nesta casa viveu o fundador, Silvério Coxo, o velho Paulo, agora Mariano e o seu cismático filho, Hilário, mas também Maria dos Anjos, que aquece a cama de Mariano, e há a criada, Palmira, que cuidou de Hilário, órfão logo que chegou a este mundo. E ficamos igualmente a ver como cresceu aquele domínio agrário: “Os Paulos, um após outro, tinham conseguido alargar a quinta, leira sobre leira, num tempo em que os camponeses trocavam a terra a canecas de vinho. Corrocovo via a fazenda acumular-se, a quinta alastrar sobre pequenos campos vizinhos. Os homens entregavam a terra vendida e começavam a cavá-la por conta alheia, ganhando a jorna certas dos patrões. A quinta cresceu, abocanhado tudo: pinhal, searas e poisios”. Os tempos são de mudança, chegaram as máquinas, Mariano recusa-as, deplora aquele filho sempre alheado de tudo, incapaz do entusiasmo. Palmira casa com Luciano Taipa, jornaleiro da quinta, todo o dinheiro que acumulara reverte para solo agrícola do casal, tudo redundará em fracasso, Luciano emigrará. Aquela estrutura agrária definha: “O trabalho da quinta era feito enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão. A aguardente de Corrocovo corria ainda do tosco alambique, como nos tempos do velho Paulo. A compra da grande máquina destiladora fora sempre adiada. Os homens continuariam a calcar os cachos, o bagaço, a escarolar as espigas. Na quinta, tudo nascia da sua paciência”. E veio o mau ano agrícola. “Nevoeiro, míldio, lagartas e calor, doenças a grassar no chão macerado. O vento quente bafejava as culturas, matava por sua conta. A terra, que era verde, tornara-se amarela”. Estalou a miséria na aldeia, a quinta esbarrondava-se, o desprendimento de Hilário desalentava Mariano. Este ainda sonhou em adquirir os fornos de caldo do Guimarães, houve hipoteca, mas foi resgatada, nada se alterou. A quinta parecia viver fora do tempo. Hilário dá sinais de perturbação, é arrogante com o feitor, Firmino, este esteve para ir às vias de facto, tudo por causa de uma égua que Hilário retalhara o dorso a chicote. Há gente estranha pelos matos, talvez um fantasma portador de prenúncios maus. Mariano sente um alento quando monta uma fábrica de telhas. Hilário sempre indiferente, anda perdido de amores por Guilhermina, que quase sempre o escorraça, tem outros amantes a valer. Aquele pedaço de terra barrenta que parecia ir trazer novos tempos férteis aos Paulos, subitamente perdeu valor. Durante tempos, a telha vendia-se bem, as encomendas cresciam, Mariano, vendo aquele Hilário incapaz de tudo, pensa em casar-se com Maria dos Anjos, quer ter herdeiros a sério. Mas chega a derrocada:

“Foi então que a grande estrada que descia da vila começou a aproximar-se de Corrocovo, a abrir-se por entre o mato, a deitar pinhais inteiros ao chão. Apareceu em frente da aldeia o piso certo de saibro e pedra. E a multidão de britadores, homens de picaretas, pás, enxadas, com a ajuda dos cilindros enormes, enfiou a estrada ao meio do lugar. Negociantes, porqueiros, carros de milho, fruta, couve, gado e celeiros, passavam agora em Corrocovo, na estrada nova, para as feiras da vila”.  Assim se condenou a fábrica de telha, a concorrência das grandes indústrias vendia mais barato.

E como na tragédia grega, tudo se precipita, a maldição tem o seu auge. Na festa de Nossa Senhora da Lagoa, Hilário vê a sua Guilhermina a dançar com Basílio, o lodo do ciúme veio à tona, agride-o brutalmente. Basílio não se faz rogado, tira vingança, mata-o com uma enxada, enterrada de alto a baixo na cabeça. Mariano entende que chegou a hora de destruir a quinta, tem ali a lenha da cozinha, as latas de petróleo, a palha dos corrais, os fósforos, imagina as chamas a crescer dos dois lados do pátio, a devorar a casa, a adega, as tulhas, a nogueira plantada por Silvério Coxo, fundador da quinta. Assim o pensou e assim o fará, tem de alcançar a sua vitória sobre o destino, aquele mundo antigo irá desaparecer, não será desafiado por aquele que se anuncia, Mariano prefere que tudo se perca, aquela quinta é a metáfora de uma estrutura agrária que entrou em derrocada num Portugal que balbucia a industrialização.

Escassa centena e meia de páginas de uma densidade tal que deixa o leitor de antemão informado que temos aqui texto clássico, do melhor que produzimos no século XX.


Mário Beja Santos

 






2 comentários:

  1. Acredito que seja um livro fascinantes de ler
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    Saudações cordiais
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Peço encarecidamente, sem ironia (porque é o fio de ariadne que eu procurava), quais os argumentos que provam a desvinculação de Oliveira do movimento neorrealista. Agradecia muito a resposta, até para a minha igual conjetura. Admiro a crítica pessoal sobre a polémica literária, mas deploro, como alguém escreveu, que a mudança seja pela desilusão ideológica e que por isso a clareza estética e militante tenha dado lugar à ilegibilidade (como alguém escreveu).

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