terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

“A warrior’s rest” | O funeral do Rei e a capitulação belga.

 






“«There'll always be an England» to stand before the world as a symbol and a citadel of freedom."

Jorge VI, 23 Setembro 1940



Há 70 anos, o imbatível cerimonial britânico voltava a impressionar o mundo. A despedida do Rei que partira demasiado cedo, tolhido pela Guerra, pela doença e pelo indesejado peso da Coroa, foi um momento extraordinário de pompa fúnebre.

Às portas de Westminster Hall, ao som do incontornável Big Ben, das salvas de canhão e das marchas fúnebres, o grande cortejo arrancou com milhares de soldados com armas invertidas, em sinal de luto, a desfilar pelas ruas de Londres com o corpo do último Imperador da Índia que foi também um improvável herói e um rei amado e respeitado, genuinamente, pelos seus súbditos, que agora o choravam. 

Se o reinado de Jorge VI começara sob o peso da abdicação do irmão e com uma opinião pública favorável ao casamento de Eduardo VIII com Wallis Simpson, a sua postura corajosa e inspiradora durante a Guerra transformou-o num monarca respeitado, querido e próximo do povo. A fibra da sua mulher, a Rainha Isabel, foi uma parte fundamental dessa mudança de atitude da opinião pública. A célebre frase – The children will not leave unless I do. I shall not leave unless their father does, and the king will not leave the country in any circumstances, whatever.” - ficou para a História da resistência britânica. 

O esforço militar britânico para libertar uma Europa em que era o único farol de liberdade teve reflexo numa nutrida representação militar de aliados mas também de países de neutralidade dúbia. Portugal, que decretou luto nacional pela morte do Rei, teve também uma representação militar dos três ramos das Forças Armadas: o General Barros Rodrigues, Chefe do Estado Maior do Exército, o General Santos Cintra, então Comandante Geral da Aeronáutica Militar, e o Vice-Almirante Oliveira Pinto, Chefe do Estado Maior Naval.

Mas foi o então Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Salazar, Paulo Cunha, que liderou a delegação. Foi um dos portugueses que desfilaram pelas ruas de Londres e depois de Windsor, no último adeus a Jorge VI. Os outros eram o futuro embaixador Gonçalo Caldeira Coelho e o Secretário do Ministro (e futuro professor universitário) Fernando Pessoa Jorge, falecido em 2020, e alguns militares listados na edição especial da London Gazette que detalha o cortejo.

Cinco reis, quatro rainhas e uma grã-duquesa, os presidentes de França, Turquia e Jugoslávia, uma vintena de príncipes, muitos ministros dos estrangeiros, incluindo o americano Dean Acheson e o alemão Konrad Adenauer. Dos muitos que atravessaram Londres a 15 de Março de 1952, faz agora 70 anos, são muito poucos os que ainda vivem para contar. E no que se pretendia a despedida de um herói da Segunda Grande Guerra, símbolo da resistência do mundo livre à tirania de Hitler, houve ainda reminiscências das feridas profundas abertas pelo conflito.

A Rainha Isabel II tinha então 25 anos; tem hoje 95.

O Duque de Kent tinha 16 e hoje tem 86 anos. Seguiu, imberbe, ao lado do tio, o ex-Rei Eduardo VIII, então Duque de Windsor. Este regressara a Londres para o funeral do irmão e sucessor, sozinho, sem a sua Wallis por quem deixara um Império inteiro. Pareceu inquieto e desconfortável, de uniforme, num papel que já não era o seu. Por várias vezes durante o cortejo se inclinou para o jovem Duque de Kent, parecendo dar-lhe conselhos, como para aliviar a tensão.

Alberto da Bélgica, então Príncipe de Liège, tinha 17 e tem hoje 87 anos. Haveria de reinar como Rei dos Belgas entre 1993 e 2013, mas a sua presença em Londres, em representação do seu irmão, o igualmente jovem e inseguro Rei Balduíno, suscitou uma crise política e constitucional em Bruxelas, a acrescentar às muitas que se sucediam desde o fim da Guerra. Leopoldo III, pai de ambos, rendera a Bélgica a Hitler em Maio de 1940 apesar dos avisos, por escrito, de Jorge VI, para que fosse menos herói e não se deixasse capturar.

Os ingleses viram a capitulação belga como uma traição insuportável. O governo belga fugira para o exílio. O  Rei decidira ficar para lutar, mas, inesperadamente, decidira capitular, arriscando a prisão e expondo o flanco britânico aos alemães. O antigo Primeiro-Ministro inglês Lloyd George escreveu que a rendição de Leopoldo fora o mais esquálido exemplo de perfídia e de pusilanimidade: “You can rummage in vain through the black annals of the most reprobate Kings of the earth to find a blacker and more squalid sample of perfidy and poltroonery than that perpetuated by the King of the Belgians.

Churchill foi mais cauteloso do que Lloyd George, mas não deixou de isolar o Rei Leopoldo, elogiando apenas a bravura do exército belga e o Governo no exílio. Mas tentou dizer que o Rei capitulara sem aviso prévio, o que era mentira, porque Leopoldo prevenira o Rei Jorge VI e esteve tentara demovê-lo. Este tema foi polémico para os resto da vida de Churchill, com alterações à versão francesa das suas memórias para tentar conter a ira belga.

Em qualquer circunstância a postura de Leopoldo foi tudo menos de lealdade para com os Aliados. Tentou, ao longo dos anos, retirar legitimidade ao governo no exílio e manteve-se firme nesse desiderato até ao fim – embora esse governo tenha mais tarde, ele próprio, chegado a defender a rendição... Mas Leopoldo nunca aceitou a qualificação como traidor. Sentiu-se injustiçado. Afinal, do seu ponto de vista sacrificara-se pelo seu povo, fora preso durante anos pelos nazis e impedido de regressar mesmo depois do fim da Guerra. Rejeitou repetidamente as injúrias de Churchill e dos franceses.

Jorge VI não retirou a Leopoldo a Ordem da Jarreteira, como fez com o Imperador do Japão, apesar de instado a fazê-lo. Tinha-lha concedido em 1937, quando Leopoldo fez uma Visita de Estado a Londres. Mas o Rei belga foi efectivamente marginalizado. Não foi convidado para o casamento da Princesa Isabel e do Príncipe Filipe em 1947 e ficou um clima de tensão que voltou a fervilhar em pleno em 1952.

Leopoldo III acabou por abdicar quando, ao regressar a Bruxelas em 1950, depois de um referendo que determinou o regresso do exílio (o seu irmão Carlos era o Regente), se viu rodeado de protestos violentos e mortes. Sucedeu-lhe, um ano depois, o seu jovem filho Balduíno, figura frágil que viria a relevar-se um rei absolutamente notável.

Quando a corte belga, aos poucos dias da morte de Jorge VI, invocou uma questão de protocolo e etiqueta para não enviar a Londres o Rei mas antes o seu irmão Alberto, instalou-se uma crise política. O Primeiro-Ministro tentou, em vão, que a imprensa não publicasse o comunicado da Casa Real. Tentou demover o Rei da sua decisão. Também em vão. Tudo foi visto como uma vingança de Leopoldo III e uma evidência da influência desmesurada deste e da sua segunda, belíssima e popularmente odiada mulher, Liliana, Princesa de Réthy, sobre o seu filho, o Rei.

Chamaram-lhe, na imprensa francófona, o drama da corte de Bruxelas. O argumento de que o Rei Balduíno não podia ir porque não tinha ainda visitado oficialmente o Reino Unido era facilmente desmontável e foi ridicularizado, trazendo novas sombras sobre o início do seu reinado e voltando a agitar as bandeiras do colaboracionismo belga durante a Segunda Guerra.

Foi uma lição aprendida em Bruxelas: em Março de 1953, mesmo sem visita oficial, o Rei Balduíno voou para Londres para participar no funeral da avó da Rainha Isabel II e mãe de Jorge VI, a Rainha Maria. Isabel II retribuiria o gesto. Em Agosto de 1993, participou em Bruxelas no funeral do Rei Balduíno, partindo, também ele, de forma súbita e inesperada. Uma gaffe protocolar, contudo, havia de marcar a presença britânica: o Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, compareceu com a banda de grã-cruz a Ordem do Leopardo, do Zaire, antigo Congo Belga, em vez da Ordem de Leopoldo, da Bélgica... Mas não se tratou de um insulto à antiga colónia, nem ao antigo colonizador. As ordens estariam, afinal, arrumadas por ordem alfabética.










* * *

A urna de Jorge VI, coberta com o Estandarte Real e com a Coroa Imperial, o Ceptro (com o maior diamante do mundo) e o Orbe tremeluzindo sobre ela, foi puxada por dezenas de marinheiros. A seu lado caminharam duas pessoas que viriam a ser relevantes no futuro da Família Real: à frente, o ajudante-de-campo do Rei, Peter Townsend, que viria a causar o primeiro escândalo do reinado de Isabel II, quando se conheceu a sua relação com a Princesa Margarida; logo atrás dele, o Visconde Althorp, futuro Conde Spencer e depois pai da Princesa Diana e avô do futuro Rei de Inglaterra, o actual Duque de Cambridge.











O esplendor da última viagem foi exemplar. Ao som dos passos dos soldados e das marchas militares, a urna, garrida de cores heráldicas e diamantes, passou por ruas sombrias, apinhadas de gente enlutada. A dor pela partida do Rei era genuína e, em primeiro lugar, na sua família. A Rainha Maria enterrava o seu terceiro filho e a urna deteve-se junto à janela de Marlborough House, de onde assistiu. A Rainha Isabel ficava viúva aos 51 anos e assim permaneceria por mais 50, num vazio súbito que teve dificuldades em preencher. O povo, ainda dilacerado pelas feridas da Guerra, perdia agora um dos símbolos da sua luta.

 

George VI

Now he has laid the burden down,

Even a King at last may rest:

Now he puts off the unwelcomed crown

That heavy on his temples pressed.

 

The frets of state, the bitter wars,

The cares that filled that anxious breast

These marked him like a soldier’s scars.

 

But even a King at last may rest.

Grant him Thy peace, O Lord, we pray.

Who of us all has earned it best,

Who wore for us his life away -

Give thou this King a warrior’s rest.

 

Edward Shanks (1892-1953), Sunday Times, Fevereiro 1952












 

Em Windsor, o som estridente das gaitas-de-foles escocesas acompanhou o cortejo desde a estação de comboios, com os mesmos dignitários, a mesma solenidade, a mesma dor popular. Na Capela de São Jorge, incrível panteão de tantas dinastias, depois de uma brevíssima cerimónia religiosa, o Rei-de-Armas da Jarreteira pronunciou os títulos do falecido Rei, enquanto a urna baixava dramaticamente, concluindo de forma solene um reinado curto e heróico, de resistência e muita dor, mas de firme defesa da liberdade que continua a ser timbre do Reino Unido.

 

Ademar Vala Marques

Fevereiro 2022

 

(Imagens da imprensa da época)








1 comentário:

  1. Publicação de nível histórico, cujo texto é muito bem ilustrado pelas fotos. Grato pela bênção da partilha
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    Saudações poéticas
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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