quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A sátira a Salazar que Marcello Caetano não proibiu.

  



Em junho de 1972, era editado Dinossauro Excelentíssimo, por José Cardoso Pires, pela Arcádia, capa e ilustrações de João Abel Manta, em dezembro já íamos em terceira edição, 15.000 exemplares, um espanto, uma fábula satírica numa arquitetura literária completamente diferente de tudo quanto o autor de O Hóspede de Job até agora escrevera, que atrevimento fazer de Portugal o Reino do Mexilhão onde havia um imperador “que na ânsia de purificar as palavras acabou por ficar entrevado com a paralisia da mentira. Ainda lá está, dizem. E não é homem nem estátua porque a ele, sim, roubaram-lhe a morte. Não faz parte deste mundo nem daquele para onde costumam ir os cadáveres, embora cheire terrivelmente”. Livro dedicado às filhas, não que passasse por história com ingredientes inocentes como Os Desastres de Sofia, pela Condessa de Ségur, era a história encapuçada do ditador, obreiro de uma certa ordem e autoridade assumida como irrefragável, e para todo o sempre, seu nome Dinossauro, desde a infância “estava escrito que iria subir muiiiitíssimo na asa da compostura por cima dos casebres da aldeia e do palácio dos ricos, e que teria de tirar um curso que lhe desse para governar toda a gente. Leis, decidiu o padre local”. Foi tomado como um enviado de Deus, levado para ser doutor na cidade dos mesmos, os mestres receberam-no com dureza: “Vestiam paramentos negros e usavam estolas como as dos sumos sacerdotes, mais ou menos. Rostos rapados, cinzentos, olhos frios, raposões, olhos de muita vigília, ali estavam eles, bem alto, num friso de catedral como cardeais da sabedoria”, impôs-se como doutor, ganhou prestígio, houve quem dissesse que estava predestinado para voos desmesurados. 

Coube ao Dinossauro pôr ordem no reino, e ficamos a saber qualquer coisa sobre os mexilhões: “Logo que nos outros reinos se declaravam guerras ou preços lá vinha o vento alastrar e quem pagava eram os mexilhões, apesar de não terem culpa nenhuma; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham chocar e viam-se obrigados a fazer parede para não irem parar ao mar. Oh, vida. Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falécias, mexilhões no legítimo sentido, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o que quer que fosse”. Dinossauro fez-se acompanhar de muitos doutores, o reino foi embandeirado em decretos, requerimentos, assinaturas, rescreveu-se a história: onde se via pobreza devia ler-se modéstia, as fortunas chegavam de mão beijada, por decisão do destino superior aos homens, os pobrezinhos sempre honrados naquele reino onde havia até um Patriarca do Alto Comércio e um Guerreiro Mor. O imperador montou uma câmara de torturar palavras, sempre cercado pelos senhores doutores, em dado momento bárbaros das quatro direções ocuparam determinada ilha nos confins do mapa, a mais caprichada da Coroa, deu-se luta, as coisas não correram bem, houve que dar resposta: “A ilha não se perdeu, continua nossa”, era assim nesta teia das palavras que se amansavam os mexilhões. Com o passar dos anos, Dinossauro encerrou-se no casulo, dispensava as visitas, falava muito para o gravador. No meio daquela pasmaceira, talvez entendida como vida retrógrada, o Dinossauro tornara-se prisioneiro de si mesmo, o passado tornou-se rotina do presente, e Cardoso Pires engrena numa frase subtil: “Já ensinavam os mexilhões-avós e os mais para trás que fingir de cego é virtude de quem vê demais, e certamente tinham razão. Sua Alteza deixava andar os bacharéis discursadores à rédea solta pelas campinas da História. Desenterravam aniversários, palitavam jantares, pressentiam inaugurações e pretextos de tuta-e-meia para solfejarem a sua palavrinha de hora e tal”. Dinossauro sofria com a ingratidão daquela indiferença dos mexilhões, a ordem que ele concebera ainda era alvo de alguns rituais, vinham às centenas as camionetes de excursão bater-lhe palmas, mas Dinossauro já tinha poucas ilusões e preferia cumprir o seu reinado no gabinete, dedicou-se à manipulação das palavras, Cardoso Pires urde com subtileza o trabalho a que se fadara Dinossauro:

“Na sua qualidade de camponês de gramática asseada, o Imperador aprendera a dar valor a semelhantes ornatos de aspeto inofensivo. Tinha visto muito bacharel tropeçar na vírgula e estatelar-se a meio do período; ou passar sem dar por ela e perder o fôlego antes do ponto final, o que não era menos desastroso (…) De camaroeiro em punho meteu-se a pescar vírgulas nas prosas mais turvas; lançou-se atrás do til, essa borboleta, e do trema em lantejoulas; distribuiu hífens, colocou-os com cuidado com que se abrem cancelas no terreno selvagem das orações confusas. Ao sinal do parágrafo, minúsculo hipocampo entre folhas amortalhado, pô-lo a embelezar com abundância os decretos-leis da sua predileção; e à gota de mel, que era o ponto de exclamação, retirou-a aqui e ali para não tornar gulosa a frase”. Envelheceu o imperador, retirou-se para o Forte das Sete Chaves, recebia esparsamente os conselheiros, estes arranjaram uns espelhos especiais corrigiam a imagem do Doutor Dinossauro, representando-o em imperador novo e de acordo com o modelo oficial. Os jornais e a televisão ajudavam a compor a imagem. Ficou fora do mundo, ainda acreditou que era imperador, os conselheiros fiéis fingiam que vinham a despacho, inventavam-se imagens de inaugurações, julgava-se que ia morrer, mas ressuscitou, foi nessa atmosfera que se criou o Império Fantasma, tétrica encenação. “Reza a História que Dinosaurus Um faleceu a tantos de tal, hora da Comarca dos Doutores, fulminado por uma síncope de amnésia. A dado instante está vivo e ponto. Faleceu”. Acorreu-se ao velório, os mexilhões pasmaram. E cresceu o mito, os conselheiros fiéis afirmavam a pés juntos que a teia das palavras alastrava, e de dedo em riste lembrava-se às gerações que as estátuas do imperador vigiavam o reino. E porque de uma fábula satírica se diz tratar, o autor despede-se pedindo às filhas que fechem o livro, que mandem passear os fantasmas. “Fartámo-nos de falar de mortos, de velhos, de mistérios, quando afinal temos tanto para viver. Não é?”.

A edição era lindíssima, guardo-a como uma relíquia. Indubitavelmente, José Cardoso Pires, mesmo fazendo fábula sobre o óbvio aqui provou e comprovou que era um mestre renovador da língua portuguesa. 


Mário Beja Santos 





1 comentário:

  1. Li este livro (emprestado) em finais de 73 e até me recomendaram que o forrasse porque tinha o hábito de ler nos cafés e nos transportes. Na época andava entusiasmado com os surrealistas e fui surpreendido na minha adolescência por este livro, o primeiro que li, do José Cardoso Pires. Lamento que a reedição que li anos mais tarde não reproduzisse os trabalhos do João Abel Manta.
    Muito boa tarde!
    Rui

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