quarta-feira, 13 de julho de 2022

O caminho para Wigan Pier.

 






Porventura uma das mais admiráveis narrativas sobre qualquer comunidade operária: George Orwell, 1936, o relato das condições de vida dos mineiros do Norte de Inglaterra

 

 

No ano que precede a sua ida para Barcelona, onde participou na guerra civil de Espanha, em plena frente, George Orwell passou 2 meses numa perfeita intimidade com a comunidade operária de Yorkshire e Lancashire. Pergunta-se como foi possível termos sido arredados da tradução de um relato luminoso, feito da observação direta, alguém que convive com a sujidade, pobreza, deploráveis condições de trabalho nas minas, questiona a assistência social face a um desemprego sem precedentes. É óbvio que a segunda parte do trabalho, onde Orwell dá o seu próprio testemunho ideológico, está completamente datado e não possui o impacto literário que é sua vida em terras mineiras. É um relato que tinha fins claros, falar das condições deprimentes nas regiões industriais no norte do país. A impressão que ainda hoje nos provoca este documento é estarrecedora. Logo no arranque desta prosa que nos prende irremediavelmente: “Os primeiros sons da manhã eram os do matraquear dos tamancos dos operários descendo a rua empedrada. Éramos geralmente quatro a dormir neste quarto, e bem feio lugar era este, com aquele aspeto de transitória profanação dos quartos desviados do fim a que se destinavam.” Descreve o lugar detalhadamente, quem ali habita, a família explora o negócio, a clientela mais permanente, a sujeira omnipresente, até a sordidez à mesa: “Ao pequeno-almoço davam-nos duas fatias de bacon, um ovo estrelado descorado, e pão com manteiga que muitas vezes fora cortado de véspera e apresentava sempre as marcas do polegar. Por mais diplomáticas que fossem as minhas tentativas, nunca consegui levar o Sr. Brooker a deixar que fosse eu a cortar o meu pão com manteiga; tinha de ser ele a passar-mo fatia a fatia, cada uma deles firmemente agarrada sob aquele enorme polegar sujo. O almoço consistia em geral de um daqueles pudins de carne que se vendem em latas prontos a comer. Para a hora do chá havia mais pão com manteiga e uns bolos a desfazerem-se. Ao jantar, um queijo de Lancashire mole e descorado e bolachas.” E não deixa de anotar o que sentiu quando dali partiu: “O comboio levou-me dali, através de monstruoso cenário de escombreiras, chaminés, montões de sucata, carreiros de lama de cinzas com as marcas dos tamancos que se entrecruzavam. Estávamos em março, mas o tempo estivera horrivelmente frio e por todo o lado se viam montes de neve enegrecida.” E recomeça o texto com uma observação quanto à importância do carvão na civilização do tempo: “A nossa civilização está assente no carvão, de um modo mais completo do que alguém imagina até parar para pensar nisso. As máquinas que nos mantêm vivos e as máquinas que fazem as máquinas dependem todas elas direta ou indiretamente do carvão. No metabolismo do mundo ocidental, o mineiro de carvão ocupa o segundo lugar mais importante a seguir ao homem que lavra a terra. O mineiro é uma espécie de cariátide encardida sobre cujos ombros assenta quase tudo o que não é encardido.” E quase com brutalidade vamos descer com ele ao fundo de uma mina de carvão, um dos mais impressionantes textos que me foi dado ler, vale a pena exemplificar: “A primeira impressão que temos, que se imporá a todas as mais durante algum tempo, é o estrépito medonho, ensurdecedor, do tapete rolante que transporta o carvão para fora. Não se consegue ver até muito longe porque o nevoeiro formado pelo pó de carvão nos devolve o feixe de luz da lanterna, mas é suficiente para vermos a cada um dos nossos lados a fileira de homens ajoelhados, em intervalos de quatro ou cinco metros, enfiando as pás por debaixo do carvão retirado e atirando-o com um movimento rápido por cima do ombro esquerdo. É deste modo que alimentam o tapete rolante, uma tira de borracha em movimento que corre a um metro ou dois por detrás deles. Através deste tapete flui constantemente um rio cintilante de carvão.” E impõe-se descrever o trabalho e os homens: “É um trabalho terrível o deles, um trabalho quase sobre-humano medido pela bitola de uma pessoa comum. Porque não só removem quantidades monstruosas de carvão, como ainda por cima o fazem numa posição que duplica ou triplica o esforço. São obrigados a manter-se de joelhos o tempo todo – seria difícil levantarem-se sem baterem no teto – e alguém que tem de fazer o mesmo não terá dificuldade em compreender o tremendo esforço que isso envolve. Manejar uma pá é comparativamente fácil quando se está em pé, porque se pode usar o joelho e a anca para dar impulso à pazada; se ajoelhados, todo o esforço se concentra nos músculos do braço e do ventre. E o resto das condições não torna as coisas propriamente mais fáceis. Há o calor e o pó do carvão que entope a garganta e as narinas e se acumula nas pálpebras, e o matraquear incessante do tapete rolante, que naquele espaço confinado mais parece o matraquear de uma metralhadora. Só vendo os mineiros no fundo da mina e nus poderemos entender que homens extraordinários eles são. Na sua maior parte são de pequena estatura, mas quase todos apresentam o mais nobre dos corpos; ombros largos num tronco que se vai estreitando até à cintura delgada e flexível, nádegas pequenas pronunciadas e coxas musculosas, sem uma ponte carne a mais em parte nenhuma. Nas minas mais quentes usam apenas uns calções leves, tamancos e joelheiras; nas minas ainda mais quentes, só tamancos e joelheiras. Pela figura mal se pode ver se são novos ou velhos. Podem ter qualquer idade até aos 60 ou mesmo 65, mas quando os vemos completamente pretos e nus todos têm o mesmo aspeto.” Iremos saber os seus horários de trabalho como mais tarde conviveremos com as suas famílias e conheceremos a sua habitação. E descemos ao fundo da mina como se pode imaginar o fundo dos infernos, é um texto que se retém para o resto da vida: “Entramos na jaula, que é uma caixa de aço com a largura de uma cabine telefónica e duas ou três vezes o seu comprimento. Cabem lá dentro 10 homens, mas que ficam apertados coo sardinhas em lata, e um homem alto não pode ficar direito em pé. A porta de aço fecha-se atrás de nós e alguém, manejando o guincho que fica lá em cima, larga-nos no abismo. A meio da descida, a jaula chega a atingir uma velocidade de 100 quilómetros à hora, provavelmente. Quando nos arrastamos para fora a chegar ao fundo estaremos talvez a uma profundidade de mais de 350 metros.” E começa o percurso pelas galerias, caminha-se curvado, é preciso andar de gatas, o regresso deixa-nos completamente extenuados. E Orwell observa a toda a volta o que se passa debaixo da terra, as máquinas, os ruídos, os horários, as folhas de salário, questiona os acidentes, as doenças terríveis: “São propensos a sofrer de reumatismo e um mineiro com problemas de pulmões não dura muito naquele ar saturado de pó, mas a doença profissional mais característica é o nistagmo. Trata-se de uma doença dos olhos que faz com que os globos oculares oscilem de um modo estranho quando perto da luz. Deve-se presumivelmente ao trabalho em condições de semiobscuridade e por vezes conduz à cegueira total.” Iremos percorrer estas cidades industriais, os falanstérios, conversar com desempregados, saber como se gere a magreza dos rendimentos, e Orwell despede-se com um registo da família da classe operária, ele próprio se sente emocionado com uma paisagem cultural que minimamente não previa. Não conheço documento literariamente tão impressionante como este.

De leitura obrigatória, acresce a belíssima tradução.



Mário Beja Santos




3 comentários:

  1. Acredito que seja um livro com uma narrativa fascinante de ler
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    Saudações cordiais.
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    Pensamentos e Devaneios Poéticos
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  2. Que coincidência! Acabei muito recentemente de ler este livro. A primeira parte é, de longe, a mais interessante, das duas que constituem o livro. Quase podemos dizer que a segunda parte é supérflua, face ao impressionante testemunho expresso na primeira. A ler sem falta.

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  3. Esta colecção da editora Livros do Brasil gosta de literatura e é do melhor do que temos neste pequeno país editorial.
    Muito boa tarde!

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