quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Uma pedra preciosa da literatura luso-guineense.






Uma pedra preciosa da literatura luso-guineense:

Amadu Dafé consagra-se como grande escritor




A obra intitula-se A Cidade Que Tudo Devorou, por Amadu Dafé, Nimba Edições, 2022. O escritor já dera sinais de uma intensa singularidade com outro livro de denúncia, Ussu de Bissau, a revelação do tráfico sexual e de escravatura juvenil, a pretexto de educação religiosa num país estrangeiro. Agora, tem como cenário devastador a cidade de Bissau, mune-se de uma escrita onde sobressai um crioulo aprimorado, uma arquitetura literária onde se intercalam processos de realismo mágico onde avultam irans, poilões, florestas sagradas, fantasmagorias, a par de episódios de extrema violência, onde é plausível assassinar um presidente da República, um ministro, um deputado poeta, intermediários da droga, altas patentes das Forças Armadas.

A que se deve este título? O investigador António Duarte Silva refere num dos seus trabalhos como Amílcar Cabral temia que após a independência a elite dirigente do PAIGC cedesse aos confortos da cidade, seria uma devoradora dos sonhos da luta, como aconteceu, assenhorearam-se das casas, locupletaram-se com dinheiros, quiseram carros topo de gama, esqueceram o interior, engendraram o desgoverno onde falta a eletricidade, o ensino, a saúde, o património cai aos bocados e jamais se perde a tentação do golpismo ou a fossanguice.

Nesta atmosfera de desastre, pespontam figuras que irão marcar, no futuro, o que de melhor há na literatura luso-guineense: Sprança, N’sunha/Sónya, António Tabaco, Almirante, Kanserá Só, Lante Ndan Kdutar, movem-se entre o misticismo, atmosferas premonitórias, nomes míticos que permanecerão indecifráveis, como General Anónimo. Somos arrastados para uma sociedade de expedientes onde o herói é carteirista e marinheiro, observa golpes de Estado e atraído a ciladas. Há pais ausentes que lembram o fantasma de Hamlet ou tomam a forma de um gato, há amores intensos que acabam num tiroteio que mata um ou outro. E o leitor que se prepare para cenários de horror como aquela guerra civil, assim descrita: “A guerra tinha eclodido no princípio da época da chuva que cessara, depois de alguns anos, no fim da época da chuva. Foi preciso esperar por mais seis meses para outras águas virem lavar o sangue e purificar o chão. O sangue derramado decorria pelas valetas das cidades atingidas, como rios galgando do nascente para os mares. Os corpos mortos, putrificando-se nas ruas que os projéteis esburacaram, alimentavam, que-farte, os jagudis, os corvos e as moscas. As casas destruídas pelos canhões abrigavam cães e gatos abandonados.” Amadu Dafé não só faz interferir magistralmente o crioulo como manobra com agilidade frases marcantes. Um exemplo: “Há três coisas que não voltam atrás: a bala, a palavra e a oportunidade.” Ele participará nessa guerra civil e dá-nos o quadro horrível do que aconteceu no quartel de Mansoa: “Quando as tropas da junta militar invadiram aquele quarte, não fizeram reféns, nem presos de guerra. Os corpos mortos dos chamados aguentas, crianças e jovens guineenses lutaram ao lado dos militares estrangeiros, vindos do Senegal e da Guiné-Conacri, para a junta governamental, foram largados nas ruas para os jagudis, os cães, gatos e corvos se alimentarem. A cidade tresandava a sangue podre e a almas desabrigadas.” Apaixona-se por Sán’nan, tudo parece que está a correr bem, um superior leva-o para um golpe de Estado, escapam o presidente da República e a mulher, muito nos vai contar a figura nº 1 do regime, enquanto os papagaios vociferam palavrões. Presidente e mulher serão assassinados no dia à queima-roupa e somos transportados para um festim de animismo, iremos ouvir falar na filha do fantasma, carga metafórica não falta a esta figura, ela própria tem sangue luso-guineense, assistirá a cumes de violência mas dirá sempre que a esperança nunca morre, virá de Lisboa, tem dotes premonitórios também, quer o destino pela mão do escritor que Sprança andará a seu lado até o termo desta narrativa feita de ferocidade na cidade que tudo devorou.

Torcendo e retorcendo, e de tal distorção poder deixar tudo claro, é dom da batuta deste escritor que nos embaraça com histórias que à primeira vista têm pouco princípio, meio e indiscritível fim, que nos revela, pondo-nos numa ampla vitrina, uma cidade de Bissau escalavrada, dominada pela menoridade política e as oligarquias da droga. Quando necessário, somos fulminados pelas atmosferas mágicas, conversas fantasiosas, passeatas pelo tempo colonial, imprevistamente há revelações de paternidade, informações sobre os santuários da droga, acabamos envolvidos em golpes mafiosos, há muita aventura e a ação é tanto bestial como violenta, e até se contam histórias do passado como os fuzilamentos daqueles militares que tinham servido debaixo da bandeira portuguesa.

Questiono se esta obra não é um retábulo cercado de figuras que privilegiam o monólogo e o solilóquio, dando unidade à trama, clarificando toda a dimensão do Estado falhado, a todo o momento este esplêndido romance mostra-nos a Guiné-Bissau nua e crua. Um exemplo: “A ausência do Estado e da sua função de segurança e garante do bem-estar económico e social deixava os guineenses entregues à lei da selva e à diarreia em que consiste o crime organizado. O país dispõe de oitenta e oito ilhas e ilhéus, das quais apenas vinte e uma são habitadas e o resto servia para a instalação de bases para a produção e o armazenamento de drogas, pistas forjadas para a aterragem de avionetas. Mais de metade das ilhas e ilhéus eram propriedades dos muitos falsos empresários do país. Na opinião do mundo, as ilhas eram apenas usadas para o armazenamento e a distribuição da cocaína oriunda da América do Sul. Todos os anos, eram apreendidas nos portos dos países europeus mais de cem toneladas de cocaína exportadas da Guiné. Os ganhos eram astronómicos para os quartéis, mas era todo o país quem pagava pela fatura. A paixão dos europeus pela cocaína condenava, assim, a Guiné-Bissau e o seu povo a uma vida de miséria e de terror, tornando-a prisioneira da sua própria indignidade. Em paralelo, a Europa investia milhares de euros no combate ao tráfico das drogas, financiando o Estado guineense a adquirir equipamentos e a formar homens para uma guerra impossível de vencer. Os fundos acabavam por servir aos mesmo de sempre: políticos pertencentes às mesmas redes de narcotráfico, que encontravam assim uma maneira rentável de recuperar as perdas pelas drogas apreendidas nos portos do velho continente.”

Haverá execuções, gente importante tomba, andam perseguidos e perseguidores à procura de algo a que chamam “produto”. Tudo acabará num caos, Sónya e Sprança vão para Bissilanka, tudo parece culminar num encontro luso-guineense. E vamos sonhar que a esperança nunca morre. Leitura imperdível, temos aqui um grande escritor da lusofonia.


Mário Beja Santos

 






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