quinta-feira, 30 de março de 2023

Aqueles anos de terror e horror em que o comunismo preparou a sua implosão.



 



 

Anne Applebaum faz parte de um núcleo muito restrito de investigadores de primeiríssima água que se debruçam desde o Pós-Guerra na Europa de Leste até à análise sistemática das tendências antidemocráticas que varrem atualmente o continente europeu – é uma historiadora especializada na história do comunismo e na Europa pós-comunista, sem alinhamentos e de um rigor indiscutível. A Cortina de Ferro, A Destruição da Europa de Leste 1944-1956, por Anne Applebaum, Bertrand Editora, 2023, é um documento impressionante, possui o rigor que é timbre da melhor historiografia, abala-nos a consciência pelos alicerces, em mais de 600 páginas iremos acompanhar migrações dramáticas no continente europeu, a asfixia das sociedades civis na Europa de Leste, entre a RDA e a Bulgária, acompanhar a execução do planeamento soviético para destruir qualquer veleidade ao retorno a democracias parlamentares, à execução dos opositores ao projeto totalitário, uma longa viagem que nos levará às convulsões em Berlim em 1953 e à revolução de Budapeste em 1956.

Estaline experimentou este projeto logo em 1939, depois de a Alemanha de Hitler e a URSS terem assinado o pacto germano-soviético, em que se acordou a divisão da Polónia, Roménia, Finlândia e Estados Bálticos. Logo o leste da Polónia, o leste da Finlândia, as nações bálticas, Bucóvina e Bessarábia (Moldova), foram incorporadas na União Soviética. Os territórios orientais da Polónia ainda hoje fazem parte da Ucrânia e da Bielorrússia. Quando a Alemanha de Hitler baqueou e chegou o Exército Vermelho, este fazia-se acompanhar de oficiais do NKVD, desde 1939 que já havia experiência em deportações em massa para os Gulag, havia que ensinar a sovietizar as populações locais.

O que se conta em primeiro lugar é o cataclismo que a guerra provocou, com a sua violência étnica, a chegada e o comportamento dos vencedores, as expulsões de populações, dá-se um quadro claro do que era a representatividade comunista nestes países, de um modo geral diminuta, no fim da guerra verdadeiramente prestigiado só havia Tito, fora o único movimento comunista que dera luta sem tréguas ao invasor alemão; vamos, igualmente, ficar a saber as mudanças que se operaram nas polícias políticas nos países submetidos à URSS e como o NKVD as instruía, como de forma programada se liquidou o Exército Nacional polaco, o símbolo da resistência da Polónia ao nazismo.

Anne Applebaum centrou o seu trabalho nos acontecimentos polacos, húngaros e checoslovacos, será nestes territórios que iremos acompanhar a sua narrativa sobre o que aconteceu em limpeza étnica, como se moldou a nova juventude aos ideais soviéticos, como se destruiu a liberdade de opinião e se procurou reduzir a oposição política a pó. Insista-se nesta observação da autora: “o Exército Vermelho levara agentes da polícia secreta treinados em Moscovo para todos os países ocupados, tinha posto comunistas locais no comando das estações de rádio nacionais e começado a desmantelar as associações juvenis e outras organizações cívicas. Prenderam, assassinaram e deportaram as pessoas que julgavam antissoviéticas e executaram uma brutal operação de limpeza étnica.” A resposta dos aliados ocidentais veio tardia e revelou-se incapaz de remover a chamada Cortina de Ferro, mesmo com o Plano Marshall, a operação de salvar Berlim e o desencadear da Guerra Fria, o comunismo soviético implantara-se. O descontentamento virá depois, logo na economia, revelou-se incapaz de competir com o fulgor da explosão que se deu no Ocidente, a começar pela Alemanha. A autora dá-nos conta dos conflitos em torno da chamada reforma agrária, como a nacionalização da distribuição e do retalho convidou ao mercado negro, como os planos quinquenais, a despeito de inequívocas melhorias, foram insuscetíveis de agradar às populações.

Veremos passados em revista os chamados inimigos e os chamados reacionários, os conflitos com as igrejas, e assim iremos chegar aos inimigos internos e a autora lembra-nos uma observação de um carrasco soviético, Lavrentii Beria: “Uma pessoa que é espancada fará o género de confissão que os agentes do interrogatório quiserem, admitirá que é um espião inglês ou americano ou seja o que for que nós quisermos. Mas nunca será possível saber a verdade desta maneira.” Moscovo irá decidir ao longos dos anos quem deve dirigir cada um dos países, o destino de cada um destes líderes é passado em revista, dá-se especial atenção à tragédia de Gomulka, o dirigente polaco umas vezes incensado outras vezes acusado de desviacionismo de direita, a eterna questão dos judeus infiltrados na direção comunista; o estalinismo ir-se-á progressivamente refinando à medida que estes países conquistados da Europa de Leste não dão uma imagem satisfatória do homem novo ou o homem soviético, tudo se tentou no ensino para mudar os programas e pôr as crianças desde os bancos da escola a conhecer as delícias de uma próxima sociedade sem classes dirigida pela vanguarda proletária, todas as classes de pensamento foram abaladas, como observa a autora: “A partir de 1948, as autoridades da Alemanha de Leste, bem como as da Hungria e as da Checoslováquia, lançaram um ataque mais sistemático contra as faculdades de filosofia, história, sociologia e direito, que foram todas elas transformadas em veículos de transmissão de ideologia, como eram na União Soviética. A história tornou-se história marxista, a filosofia, filosofia marxista, o direito tornou-se direito marxista e a sociologia com frequência desapareceu de todo.” Os académicos foram fugindo, não só das ciências sociais e humanas, mas também os físicos, matemáticos e técnicos; os comunistas sonhavam com a proletarização do corpo estudantil, seria a base da nova intelligentsia socialista, o processo deu os seus fiascos, os estudantes tinham colapsos nervosos, atenda-se que na esmagadora maioria homens novos da classe operária sem instrução secundária não conseguiam acabar os cursos por não terem suficiente capacidade para tomar notas nas aulas.

O leitor que se prepare para este livro de uma importância excecional, que nos permite conhecer como foi montado o mito do realismo socialista, o planeamento de cidades ideais, quem eram os opositores passivos nos diferentes países de Leste e como, depois de 6 de março de 1953, anunciada a morte de Estaline, e com as novas mudanças na hierarquia soviética, o indizível aconteceu, primeiro em Berlim, depois em Budapeste, e a historiadora comenta: “Mesmo quando parecem enfeitiçados pelo culto do chefe ou do partido, as aparências podem ser enganadoras. E mesmo quando parece que estão totalmente de acordo com a mais absurda propaganda, o feitiço pode repentinamente, inesperadamente, dramaticamente, ser quebrado.”

Foi um regime que durou mais de 30 anos nessa Europa de Leste, regularmente os seus próceres interrogavam-se porque é que a propaganda não resultava, porque é que o terror era insuficiente, quais as mudanças nacionais que a URSS aprovaria. Em Moscovo, o dogmatismo impediu ver a aceleração do mundo, Gorbachov tentou remediar o irremediável, perante um mundo atónito caiu o Muro de Berlim e a Europa de Leste cedo começou a apagar as marcas da utopia comunista. Escusado é dizer que ainda há sequelas à vista.

De leitura obrigatória.


                                                                                                            Mário Beja Santos

1 comentário:

  1. Tanto tempo passado e o socialismo continua enraizado em grande parte da população ( veja se a ameaça aos proprietários e senhorios e a discussão sobre controlo de preços, para não falar do fim das PPP na saude etc ). Nos Eua o socialismo e a diabolizacao do capitalismo é a moda nas universidades e nas novas gerações .

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