quinta-feira, 2 de março de 2023

Português, quem és tu?

 



 

 

O mínimo que se pode dizer da mais recente incursão do pensador e ensaísta Marcello Duarte Mathias é que concebeu e concretizou uma antologia do pensamento nacional contemporâneo de uma forma perfeitamente original: O Português visto por (alguns) Portugueses, Publicações Dom Quixote, 2023. É uma leitura que não deixará ninguém indiferente pelo acicate reflexivo a que nos obriga, momentos há em que andaremos por ali a rabiar, numa tentativa de formar uma opinião consistente sobre o que é ser português, com tais e tantas poliédricas opiniões.

A subtileza é a de pôr ao despique um conjunto de autores dos séculos XX e XXI, desde os finais da monarquia até ao tempo presente, dá-se a cada um dos autores antologizados a oportunidade de tratar perfis, ressaltar qualidades e defeitos, virtudes e imperfeições, sobre o que antigamente se chamava a alma portuguesa; há mesmo gente intempestiva e detentora de desabafos brutais, no final, cada um deles dá um contributo para que o leitor se avenha com a resposta que lhe aprouver, a cada um de nós cabe sentenciar quanto à individualidade do português e se ele possui mesmo um caráter distintivo, no arrebol de tantos olhares. Chegamos ao final da leitura e está tudo fica em aberto.

Quem lê esta magnífica e caleidoscópica antologia tem tudo a ganhar com a bem esboçada introdução onde o autor explica os propósitos do seu cometimento de coligir reflexões sobre isto de se ser português, dá as suas razões sobre a seleção dos antologizados que não é arbitrária, alguns deles faleceram antes do Estado Novo, a generalidade deles foram contemporâneos do Estado Novo, temos depois o 25 de Abril; é, pois, uma galeria versátil, há a melancolia de gente da Direita assumida, gente que mudou de opinião e que participou em tempos de oposição e que se veio a sentir desadequada nos ziguezagues da democracia, o que dá azo para que em dado momento o autor observe: “A frustração das elites para com o país é uma constante histórica e fundamenta essa espécie de desajuste insanável que se estabeleceu ao longo dos tempos entre o país e aqueles que o representam no campo da cultura. Acresce que em Portugal, como se sabe, não há escol, é outra das nossas particularidades – a própria noção é desvalorizada por certas formações ideológicas como pertencendo a uma visão retrógrada do que deve ser a sociedade; seja como for, existem, sim, individualidades que se impõem nos seus respetivos domínios por mérito próprio, as mais das vezes de forma isolada, sem apoios e sem aplausos. Paralelamente, é coisa conhecida, nós somos o povo que mais mal diz de si próprio, verdadeiro desporto nacional, e são com frequência os estrangeiros, que nos conhecem e nos estimam, os primeiros a assinalar as nossas qualidades.”

O leitor não deixará de se impressionar com a gravidade dos queixumes e a pronta firmeza com que a generalidade destes autores revela nostalgia pela pátria, ninguém desdenha do patriotismo, apesar dos azedumes.

Discreteia o autor sobre a psicologia do português, logo a sua mansidão, o fugir às belicosidades, o ser mais reativo do que empreendedor. Mas há os rasgos empolgantes, e a referência que o autor escolhe é a travessia aérea do Atlântico Sul, por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. E há um aspeto a considerar, ver a História como um fantasma que não morre: “São numerosos os autores aqui presentes que de uma forma ou de outra a essas coisas do passado se referem – de Fernando Aires a Franco Nogueira e Raúl Brandão, de Miguel Torga a Vergílio Ferreira e Aquilino Ribeiro, de Agostinho da Silva a Teixeira de Pascoais e Manuel Alegre.”

Estamos agora comprometidos com o ideal europeu, somos maioritariamente liberais e o impacto da globalização não nos parece afetar. O autor questiona esta Europa, tem bases para o a fazer, exerceu a diplomacia, conhece os bastidores da política, está profundamente estruturado para falar sobre estes desafios europeus no contexto da nossa continuidade histórica, alude com serenidade à dominante pessimista de uma boa parte destes testemunhos aqui registados, vê muita inquietação quanto ao destino do nosso país, reconhece em todos o que há de mais afincado na portugalidade: “Retrato crítico, sem dúvida, dilacerado tantas vezes; impregnado, porém, de uma profunda fidelidade ao que somos e ao que não podemos deixar de ser.”

E mergulhamos então nesses retratos críticos, cada um de nós que junte as peças: “Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades”, Almada Negreiros; “Povo tradicional, mas extraordinariamente poroso às influências alheias; povo convivente, mas facilmente segregável por artes de quem o conduz ou se propõe conduzi-lo”, Manuel Antunes; “Os portugueses são várias coisas, são muitas coisas. São muito velhos por causa da História, são novos porque estão a aprender. Isto cria uma contradição dentro de cada um de nós. São pobres e pequenos – porque o país é pobre e pequeno – mas, como têm as mesmas expetativas que os noruegueses e canadianos, são muito ricos em expetativa”, António Barreto; “O divórcio entre os homens políticos e os homens de cultura tem sido uma das ruínas deste país” – João Bigotte Chorão; “Coberto de luto, suporta mal o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, larva sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quinto dos Infernos toca-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar”, José Cardoso Pires; “Os portugueses odeiam-se tanto uns aos outros que têm dificuldade em admitir que se possa gostar deles”, José Cutileiro; “Portugal define-se melhor como uma ideia que, de vez em quando, alguns portugueses têm”, Miguel Esteves Cardoso; “O português revê-se no pequeno, vive no pequeno, abriga-se e reconforta-se no pequeno: pequenos prazeres, pequenos amores, pequenas viagens, pequenas ideias”, José Gil; “Camões fez mais do que pintar-nos. Deu-nos o palco do mundo, celebrou nele a nossa aventura descobridora e simbólica em tais termos que não parece ter deixado outra alternativa como entidade coletiva do que refazer sem fim a viagem do Gama, ou ficar de braços cruzados na praia deserta do Restelo a lamentarmo-nos do que fomos e já não somos, assistindo humilhados à aventura dos outros. Foi o que Pessoa quis dizer, quando escreveu que depois da descoberta do caminho marítimo para a Índia os portugueses ficaram sem emprego”, Eduardo Lourenço.

O leitor que se prepare para entrar numa montanha russa de opiniões, pode dela não sair de bem consigo, mas não se esqueça do que diz Miguel Torga: “Somos, socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados.”

Leitura imperdível.


                                                                            Mário Beja Santos 







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