quinta-feira, 23 de março de 2023

Cartas de Bruxelas.

 




Forma dat esse


Num texto sobre as últimas palavras ("E então vós julgais" in Nenhum de nós há-de voltar), Charlotte Delbo, uma «concentracionária», refere-se às palavras dos moribundos como palavras solenes. O tema pode não ser novidade, mas o contexto – o Lager – é. Segundo os linguistas, solemnis compõe-se de sollus annus. É solene o que ocorre todos os anos. O termo tem, pois, origem na esfera mítica; diz o regresso do mesmo. Esperado, o sagrado renova-se no mundo e renova o mundo, desse modo tudo se passa como se o ciclo imanente do eterno retorno acarretasse uma solenidade objectiva. Na morte, porém, a imanência quebra-se. O que acontece, acontece uma única vez. A eternidade está diante dos olhos na despedida absoluta. O «nunca mais» tem necessariamente uma solenidade diferente. Longe de regressar, o solene da morte apõe o selo da ausência definitiva. Nessa medida, confere à morte o seu carácter humano, histórico. Nas últimas palavras ditas vem à luz do dia a mais evanescente das formas humanas, que, no entanto, é a sua forma por excelência : o viver em comum com os outros, que faz do homem o animal político. As derradeiras palavras, banais ou não pouco importa, assinalam a comunhão entre os homens no exacto acto de se perder. Ao passar algo a outrem, passa-se o próprio. O poder ter uma morte funda a traditio, a continuidade dos homens.  A solenidade dos moribundos assenta precisamente nessa forma de esperança.

Mas no Lager tudo é roubado aos homens. As coisas são-no para roubar a vida, a vida é-o para roubar a morte.  O homem sem morte reduz-se a coisa, e as coisas não morrem: reduzem-se a matéria-prima que se transforma como elemento do mundo físico. Quando não há esperança, desaparece a necessidade de solenidade. Conta Delbos:

 

 «'Desta vez vou bater a bota.'

Estavam nuas em cima de tábuas nuas.

Estavam sujas e as tábuas sujas de diarreia e de pus. [...]

Mas não era permitido serem fracas para consigo mesmas.

Então disseram: 'Vou bater a bota» para não tirar a coragem às outras e contavam tão pouco que alguma sobrevivesse que não confiaram nada que pudesse ser uma mensagem.»

 

A des-solenização, o disfemismo, é a vingança do humano, que assim se diz de forma invertida – sem esperança. Como se nessas palavras a comunicação entrasse em curto-circuito, perdesse a história que lhe é inerente e regressasse em ricochete para o presente estreito: ad immunda per angusta. O efeito é especular. Quem as escuta devolve a quem as diz o que todos sabem, o que todos aguardam: a morte à porta fechada, fora do mundo humano. Nenhuma mensagem – sans phrase : aqui viveu um ser humano – será transmitida. A morte humana que denuncia a imanência do mesmo acaba assim por se reabsorver nele. Delbos sabe-o e cumpriu-o: o que pode restar da luz de uns olhos que se extinguiu noutros olhos converte-se no dever moral de dar testemunho. Uma última forma. 


João Tiago Proença 





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