terça-feira, 7 de março de 2023

A Pintura Moderna Vista Por Um Nazi (português).

 





 

 

Numa das minhas incursões pela Feira da Ladra encontrei um livrinho encadernado, o título prontamente me chamou à atenção, fui levado a supor que se prendia com uma conferência feita por um prosélito nazi sobre o que eles pensavam da arte moderna, e que dera mesmo origem à queima de obras de arte e a uma exposição intitulada “A arte degenerada” exibida por todo o Terceiro Reich, como manifestação da barbárie e até da conspiração judaica mundial.

É nisto que vejo o autor da obra, Arnaldo Ressano Garcia, conferência realizada em abril de 1939 na Sociedade Nacional de Belas Artes. Ressano Garcia era um ultraconservador, abominava o futurismo, qualquer manifestação de cubismo expressionismo, tratava Almada Negreiros como um louco, entrou em polémica com o Cardeal Cerejeira por causa da Igreja de Nossa Senhora de Fátima como irá entrar em polémica pelas teses vencedoras de António Ferro quanto às artes plásticas na Exposição do Mundo Português. Ressano Garcia tinha currículo:

Docente da Escola do Exército, Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa; dirigente da Sociedade Nacional de Belas Artes; docente de Astronomia, Geodesia e Topografia no curso de Engenharia Militar; profissão: artista plástico e caricaturista.

O exemplar que adquiri tem a dedicatória ao poeta Cardoso dos Santos, resta saber se foi este senhor que mandou encadernar os textos da conferência e deliberou tratar Ressano Garcia por nazi. Este coronel do exército português viajou até Paris, visitou a Exposição Universal de Paris de 1937, e seguramente museus e outros institutos de cultura. Adverte-nos no prefácio: “Conheci lá fora os bastidores de certas manifestações e o desgraçado caminho tomado pela pintura impropriamente chamada avançada, num regresso repugnante para a selvajaria, glorificando-se a ignorância e a degenerescência, verdadeira afronta.” Na primeira parte da sua conferência, este artista plástico e caricaturista já esquecido procura dar uma lição sobre a história de arte e quando chega ao Modernismo, diz que na Alemanha os museus se tinham enchido das mais espantosas aberrações, mentais e sexuais, e exalta Hitler:

“Hitler é um artista candidato a uma escola de Belas Artes e nunca um simples pintor de tabuletas, como malevolamente se espalhou. Compreendendo quanto prejudicial seria aquela degenerescência nas artes para o bom nome da cultura alemã, manda limpar os seus museus de todas as imundícies artísticas que o desvairamento iconoclasta havia imposto. Nomeia, para tal fim, uma comissão de indivíduos da mais alta competência artística e honestidade de caráter. A maioria dessas obras é mandada queimar. Com as outras, as escolhidas, as menos horrorosas, forma-se um museu que se intitula ‘O Museu da Arte Degenerada’. Quando algum artista estrangeiro deseja realizar na Alemanha uma exposição das suas obras, tem de as sujeitar a uma prévia censura artística por parte da mesma comissão. Hitler não descansa, torna-se, e cada vez mais, exigente. Quer que a Alemanha nova, a do seu tempo, apresente só artistas insignes.”

Ressano Garcia também não é peco a falar do Futurismo em Itália, diz que Mussolini fracassou deixando estes artistas de vanguarda à rédea solta. Não deixa de zurzir o Pavilhão de Espanha, “onde toda a charlatanice de Picasso campeava à vontade”. Entende discretear sobre a responsabilidade dos comerciantes da arte, atribui-lhe uma grande responsabilidade na propaganda à arte degenerada. Não se conforma com os disparates de Rodin, sente-se à altura de proferir juízos definitivos sobre este génio da escultura: “Rodin só foi sincero e gigante exatamente na parte séria da sua obra. Na parte filosófica, embora sempre de maravilhosa técnica, a sinceridade na ideia é, em geral, nenhuma. Executava uma estatueta, contorcida e estranha, só pelo prazer de vencer dificuldades de atitudes e de movimento. Depois, aguilhoado pelo tal cabotinismo, ele, ou algum dos seus amigos, compunha o título filosófico, a legenda que melhor se casava com a produção.” Também não deixa de vergastar a arte de El Greco ou a de Goya. E chega o momento de falar sobre a responsabilidade de um comerciante (um marchand) de arte, Ambroise Vollard, velho traficante de quadros, judeu, grande admirador e amigos dos mais célebres artistas da vanguarda.

Entrando nas conclusões, faz advertências ao Governo, este deve firmar-se num nacionalismo vigoroso e sensato. Remete uma mensagem aos artistas portugueses: “devem todos pôr os olhos na corrente mórbida, que devasta as artes plásticas, lá por fora, não para, cegamente, a canalizarem também, para nós, mas, ao contrário, para, à força de razão, estudo, talento e patriotismo, lhe oporem um dique, inexpugnável.”

Porque tínhamos grandes mestres de pintura, e elenca-os: Domingos Sequeira, Vieira Lusitano, Vieira Portuense, Cristino da Silva, Anunciação, Lupi, Silva Porto, Columbano, Malhoa, Luciano Freire, Roque Gameiro e Condeixa. A partir destes, era como se tivesse chegado um deserto de tártaros. E lança ao público a sua tremenda mensagem, o seu desmedido apelo:

“Unamos todas as nossas forças artísticas, todas as nossas energias, todas as nossas inteligências, na ideia de elevar ao máximo a Arte Portuguesa!

Não sejamos, nem contra o classicismo, nem contra o romantismo, nem contra o realismo, nem contra o modernismo, mas em compensação, unamos todas as nossas forças artísticas, todas as nossas energias, todas as nossas inteligências contra a invasão atual do… intrujismo!”

Ressano Garcia fazia circular pela assistência duas provas de degenerescência e intrujismo, duas aberrações de Picasso, falando de “La femme qui pleure”, de 1937, faz a seguinte observação: “É a este o ideal que certos amadores do intrujismo desejam para a pintura do novo Portugal”. 


                                                                                   Mário Beja Santos 



Caricatura de Salazar por Arnaldo Ressano Garcia 






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