É
facto que todo o amor é cego, e sempre o foi. Em Vila Viçosa há um miradouro
chamado Varandinha dos Namorados, para que os amantes possam contemplar as
vistas e abandonar por momentos a cegueira que os traz mergulhados nas trevas
do sentimento. Mas é Estremoz que essa cegueira se torna mais evidente, no
culminar de uma longa história que remonta ao Câmbrico, e que envolve vários
heróis, um dos quais, talvez o maior de todos, foi professor na escola
industrial da cidade.
***
Ao contrário do que sucede com as
argilas de Flor da Rosa ou de Nisa, provenientes de solos graníticos, ou com as
de Évora, Redondo e Viana, de um tom castanho-negro, vindas de dioritos ou de
xistos silúricos, as argilas de Arronches, Campo Maior, Elvas, Portalegre, Vila
Viçosa ou Estremoz têm origem na decomposição de xistos pré-câmbricos e
câmbricos.
Daí
surgiram os barros vermelhos estremocenses com que se fariam os púcaros
celebérrimos, falados por nomes famosos das letras – Gil Vicente, Camões,
Quevedo, Lope de Vega – e louvados por homens poderosos, como o cardeal
Venturini ou Filipe II, o qual, na correspondência que manteve com as filhas,
teve ensejo de escrever: “Al Calabrés
[o seu secretário particular] he embiado a Estremoz á hacer púcaros como
los que tenía ay las flores”, ou “El Calabrès ha vuelto já de Estremoz,
aunque el dexa haciendose alli los púcaros.” Em Espanha, tornaram-se
lendários os púcaros de Estremoz, que conseguiam manter a água sempre fresca,
adicionando-lhe um sabor agradável, e que, sobretudo, tinham extraordinários
poderes cosméticos e terapêuticos, fosse no embranquecimento da pele das senhoras,
fosse no morigerar das dores da menstruação. Ao tempo da União Ibérica, a alta
aristocracia espanhola e portuguesa aderiu em força à moda – ou ao vício – da
bucarofagia: cavalheiros e senhoras, sobretudo estas, bebiam águas dos púcaros
e a seguir trincavam e comiam o barro, fosse o de Estremoz, fosse o de outras
paragens, até distantes, como Tonalá, no México.
Na
sua Relation du voyage d’Espagne, de 1691, a duquesa de Monteleón,
Madame d’Aulnoy, afirma que “viu comer, ouviu gabar e provou com repugnância”
aquela argila miraculosa, cujas virtudes medicinais eram exaltadas pelo
grão-duque da Toscânia, Cosme III de Médicis, ou por Duarte Nunes de Leão.
Dizem os especialistas que um púcaro de Estremoz – ou, melhor, que se presume
ser de Estremoz – surge num dos quadros mais famosos do mundo, As Meninas
de
Velázquez, em
cima da bandeja de prata que dona Maria Agustina Sarmiento oferece à Infanta
Margarita ,
a figura central da tela. Seja ou não verdade, é um facto que os púcaros
estremocenses aparecem, por vezes em lugar de destaque, nas obras de outros
pintores notáveis, como Grão Vasco ou Josefa de Óbidos.
Diego Velázquez, As Meninas, 1656
Em
documentos oficiais, os barros de Estremoz surgem citados pela primeira vez em
1258, no reinado de D. Afonso III, que fundou o castelo e deu foral à terra,
então apenas vila; e as primeiras referências ao figurado de Estremoz constam
de um escrito de Frei Agostinho de Santa Maria, de 1718, e do Aquilégio
Medicinal, de 1726, da autoria de Francisco da Fonseca Henriques, médico de
D. João V, havendo também um acta da vereação da cidade, datada de 10 de
Novembro de 1770, na qual se fala já das boniqueiras da terra. Antes
disso – e podemos até contemplá-lo no museu municipal da cidade –, há um
fragmento minúsculo de um Menino Jesus, datado do século XVII, que foi
descoberto há bem pouco, no ano de 2006, por escavações empreendidas por Marco
Liberato e por Helena Santos.
Há
quem sustente, a este propósito, que o figurado estremocense pode ter surgido
aquando da edificação do Convento de Mafra, que trouxe ao país diversos
artistas estrangeiros, mormente italianos. Estes conviveram de perto com os
seus colegas portugueses, uma plêiade de barristas notáveis que tomou o nome de
“Escola de Mafra”, formada sob os auspícios dos grandes criadores de presépios
lisboetas, como Machado de Castro e os seus colaboradores, António Ferreira,
José Joaquim Leitão, José de Almeida, etc. Concluído o convento mafrense,
alguns destes artistas ter-se-ão dispersado pelo país. Em Estremoz, há notícia
de um deles, conhecido por “Alfacinha”, que fez escola e deixou continuadoras
nas pessoas de Ti Gertrudes Rosa Marques e de Mariana Estopa.
Em
finais do século XVIII, começaram os problemas, à cabeça dos quais uma crónica
falta de lenha, essencial para alumiar os fornos, escassez que se manteve pelo
século XIX dentro. Para agravar as coisas, em 1800 a extracção de barros teve
um tal aumento de preços que os oleiros e mestres da Fábrica de Faiança se
queixaram, sem sucesso, à Junta Real do Comércio, Agricultura, Fábricas e
Navegação. Depois, a instabilidade trazida pelas guerras napoleónicas e, a
seguir, pelas guerras liberais levou à decadência da arte do figurado, que
estava praticamente extinta nos alvores do século XX.
Foi salva por um herói, José Maria de Sá Lemos, escultor e discípulo de Teixeira Lopes, que entrou em cena em 1932, ao assumir as funções de professor e director da Escola Industrial António Gonçalves. Esteve em Estremoz até 1945 e aí exerceu funções como vereador da Cultura, além de ter concebido para a cidade o Monumento aos Mortos da Grande Guerra e a singular Fonte do Sátiro. O seu principal legado, contudo, foi ter resgatado de uma morte quase certa aquilo que a UNESCO hoje consagra como Património Material da Humanidade. Para o efeito, foi necessária muita persuasão e paciência junto de Ti Ana das Peles, a qual, não sendo bonecreira de ofício, na mocidade vira algumas artistas a trabalharem nas suas oficinas. Todas elas estavam mortas há muitos anos, pelo que – e esta é outra maravilha numa história tão fértil delas – o ressuscitar de uma arte morta foi, essencialmente, um trabalho de memória e reminiscência. Em jovem, Ti Ana das Peles fizera apenas algumas figuras mais simples, as de assobio; todas as outras que depois produziu resultaram deste comovente e prodigioso esforço de lembrança.
José Maria de Sá Lemos e Ti Ana das Peles
Por essa altura, o jornal Brados dos Alentejo bradava, indignado, que já não exista manufactura do barro em Estremoz, mas, logo que foram devolvidos à vida, os bonecos estremocenses fascinaram intelectuais e etnógrafos e, pela mão de Luís Chaves, do SNI, fizeram as delícias propagandísticas do Estado Novo, que os levou a diversos e importantes certames, como a Quinzena de Arte Popular Portuguesa, em Genebra, 1935; a Exposição de Arte Popular Portuguesa, Lisboa, 1936; a Exposição de Paris, de 1937; e por fim, mas não por último, a Exposição do Mundo Português, em 1940.
Exposição de Arte Popular Portuguesa, 1936 |
Tirada
em 1936, na Exposição de Arte Popular Portuguesa, uma fotografia mostra-nos
um Salazar sorridente, contemplando uma vitrine com os bonecos saídos das mãos
de Ti Ana das Peles, mulher que certamente nunca imaginou que as suas memórias
de meninice despertariam um dia a atenção desvelada de um chefe de governo
português, ademais todo-poderoso. Anos depois, em 1962, os bonecos apareceram
em lugar cimeiro na exposição “Barristas do Alentejo”, patente no Palácio D.
Manuel, em Évora. Nessa fase, já tinham entrado no acervo de alguns museus e
colecções privadas (v.g., a de Júlio Maria dos Reis Pereira) e merecido
a atenção de estudiosos que, tanto no passado como no presente (v.g.,
Azinhal Botelho, Luís Chaves, Solange Parvaux, Joaquim Vermelho, Rafael Salinas
Calado, Hernâni Matos, Hugo Guerreiro), projectaram e continuam a projectar a
obra de gerações sucessivas de artistas, alguns dos quais pertencentes à mesma
família, dinastias inteiras de bonecreiros.
***
O
tema da cegueira do amor é atribuído a Platão, que em As Leis escreveu
“aquele que ama é cego para o que ama”, e foi depois glosado por Shakespeare
num dos seus sonetos. Deu mote a vários provérbios e ditos populares e, na arte
do barro estremocense, é figurado como o boneco Amor Cego (ou
O Amor é Cego), que surge assinalado pela primeira vez em 1929, no
Inventário do Museu Municipal de Estremoz, mas que remonta certamente ao século
XIX. De acordo com os especialistas, denota influência brasileira, e até
porventura africana (na freguesia do Ameixial, nos arredores de Estremoz, há um
Monte dos Pretos e na cidade existe, como noutras localidades do país, a Rua
dos Malcozinhados, dois indícios da presença de escravos negros na região).
David Freitas, Primavera, anos 1960-70 |
À semelhança de figuras congéneres como as das Primaveras (Primaveras de Arco ou Primaveras de Plumas) ou as das Bailadeiras, os bonecos do Amor Cego surgem geralmente aos pares, em alegoria do amor profano ou, segundo outros estudiosos, como evocação metafórica da felicidade, do matrimónio, da caridade, da providência. As suas origens terão sido as personagens dos teatros ambulantes que percorriam o país de lés a lés ou as estampas de curiosidades que tiveram grande circulação no século XIX. Poderá ter havido também inspiração nos anjos tocheiros que adornam muitas das nossas igrejas, e há parecenças com certos Bonecos de Santo Aleixo ou até com os anjos da cimalha de presépios expostos em maquinetas com cenas da Natividade. Contudo, a alusão mais óbvia é profana e o seu avatar é Cupido, o qual, à semelhança dos bonecos do Amor Cego, tem as asas vermelhas, a cor da paixão e da luxúria. No figurado de Estremoz, contudo, o amor é representado por uma figura feminina, de coração na mão e de olhos vendados (aliás, nas obras de vários pintores, como Piero della Francesca, Botticelli, Ticiano, Lucas Cranach, etc., há vários cupidos vendados).
Piero della Francesca, Cupido Vendado, 1452 |
Como surgem geralmente aos pares, numa das figuras as plumas do toucado ou dos
capacetes inclinam-se da esquerda para a direita, e na outra tomam o sentido
inverso. Há variantes e cambiantes, recriações contemporâneas, mais livres e
ousadas, mas, em regra, a figura do Amor Cego tem uma saia rodada, de
cores vivas e garridas.
Em
face daquela mulher cega de amor, com os olhos vendados e o coração na mão,
somos tentados a lembrar um episódio sucedido em 1543, quando um familiar do
arcebispo de Lisboa acompanhou a Castela a noiva de Filipe II, Maria de
Portugal. De Estremoz, por onde passou, disse: “nesta villa há mtas moças
fermosas e em boa cantidade, porque se os graes e os púcaros sam famosos, mais
merecem as molheres.”
***
Uma história começada no Câmbrico, há coisa de 500 milhões de anos, e que ainda não terminou.
António Araújo
Bibliografia
consultada: Carolina Michäelis de Vasconcelos, Algumas Palavras a Respeito
de Púcaros de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921; Joaquim
José Vermelho, Sobre a Cerâmica de Estremoz. Arquivos da memória,
organização de Hugo Guerreiro, Lisboa-Estremoz, Edições Colibri-Câmara
Municipal de Estremoz, 2005; Ana Maria Baptista Costa Mateus, Bonecos de
Estremoz, objectos de identidade patrimonial, dissertação apresentada à
Escola Superior de Design do IADE, Lisboa, 2008, policopiada, inédita; José
Fernandes Reis de Oliveira, Bonecos de Estremoz. Etnografia e Arte,
Lisboa, By the Book, 2015; Hernâni Matos, Bonecos de Estremoz, prefácio
de António Júlio Rebelo, fotografias de Luís Mariano Guimarães, Estremoz-Póvoa
de Varzim, Edições Afrontamento, 2018; Hugo Guerreiro, Figurado de Estremoz.
Produção. Património Imaterial da Humanidade, fotografias de Guilhermo
Carmelo, prefácio de José Daniel Pena, 2.ª edição, Porto, Edições Afrontamento,
2022.
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