sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

O Amor é Cego: os bonecos de Estremoz.


 



É facto que todo o amor é cego, e sempre o foi. Em Vila Viçosa há um miradouro chamado Varandinha dos Namorados, para que os amantes possam contemplar as vistas e abandonar por momentos a cegueira que os traz mergulhados nas trevas do sentimento. Mas é Estremoz que essa cegueira se torna mais evidente, no culminar de uma longa história que remonta ao Câmbrico, e que envolve vários heróis, um dos quais, talvez o maior de todos, foi professor na escola industrial da cidade.

 

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        Ao contrário do que sucede com as argilas de Flor da Rosa ou de Nisa, provenientes de solos graníticos, ou com as de Évora, Redondo e Viana, de um tom castanho-negro, vindas de dioritos ou de xistos silúricos, as argilas de Arronches, Campo Maior, Elvas, Portalegre, Vila Viçosa ou Estremoz têm origem na decomposição de xistos pré-câmbricos e câmbricos.

Daí surgiram os barros vermelhos estremocenses com que se fariam os púcaros celebérrimos, falados por nomes famosos das letras – Gil Vicente, Camões, Quevedo, Lope de Vega – e louvados por homens poderosos, como o cardeal Venturini ou Filipe II, o qual, na correspondência que manteve com as filhas, teve ensejo de escrever:  Al Calabrés [o seu secretário particular] he embiado a Estremoz á hacer púcaros como los que tenía ay las flores”, ou “El Calabrès ha vuelto já de Estremoz, aunque el dexa haciendose alli los púcaros.” Em Espanha, tornaram-se lendários os púcaros de Estremoz, que conseguiam manter a água sempre fresca, adicionando-lhe um sabor agradável, e que, sobretudo, tinham extraordinários poderes cosméticos e terapêuticos, fosse no embranquecimento da pele das senhoras, fosse no morigerar das dores da menstruação. Ao tempo da União Ibérica, a alta aristocracia espanhola e portuguesa aderiu em força à moda – ou ao vício – da bucarofagia: cavalheiros e senhoras, sobretudo estas, bebiam águas dos púcaros e a seguir trincavam e comiam o barro, fosse o de Estremoz, fosse o de outras paragens, até distantes, como Tonalá, no México.

Na sua Relation du voyage d’Espagne, de 1691, a duquesa de Monteleón, Madame d’Aulnoy, afirma que “viu comer, ouviu gabar e provou com repugnância” aquela argila miraculosa, cujas virtudes medicinais eram exaltadas pelo grão-duque da Toscânia, Cosme III de Médicis, ou por Duarte Nunes de Leão. Dizem os especialistas que um púcaro de Estremoz – ou, melhor, que se presume ser de Estremoz – surge num dos quadros mais famosos do mundo, As Meninas de Velázquez, em cima da bandeja de prata que dona Maria Agustina Sarmiento oferece à Infanta Margarita , a figura central da tela. Seja ou não verdade, é um facto que os púcaros estremocenses aparecem, por vezes em lugar de destaque, nas obras de outros pintores notáveis, como Grão Vasco ou Josefa de Óbidos. 


                                                      Diego Velázquez, As Meninas, 1656


Em documentos oficiais, os barros de Estremoz surgem citados pela primeira vez em 1258, no reinado de D. Afonso III, que fundou o castelo e deu foral à terra, então apenas vila; e as primeiras referências ao figurado de Estremoz constam de um escrito de Frei Agostinho de Santa Maria, de 1718, e do Aquilégio Medicinal, de 1726, da autoria de Francisco da Fonseca Henriques, médico de D. João V, havendo também um acta da vereação da cidade, datada de 10 de Novembro de 1770, na qual se fala já das boniqueiras da terra. Antes disso – e podemos até contemplá-lo no museu municipal da cidade –, há um fragmento minúsculo de um Menino Jesus, datado do século XVII, que foi descoberto há bem pouco, no ano de 2006, por escavações empreendidas por Marco Liberato e por Helena Santos.

Há quem sustente, a este propósito, que o figurado estremocense pode ter surgido aquando da edificação do Convento de Mafra, que trouxe ao país diversos artistas estrangeiros, mormente italianos. Estes conviveram de perto com os seus colegas portugueses, uma plêiade de barristas notáveis que tomou o nome de “Escola de Mafra”, formada sob os auspícios dos grandes criadores de presépios lisboetas, como Machado de Castro e os seus colaboradores, António Ferreira, José Joaquim Leitão, José de Almeida, etc. Concluído o convento mafrense, alguns destes artistas ter-se-ão dispersado pelo país. Em Estremoz, há notícia de um deles, conhecido por “Alfacinha”, que fez escola e deixou continuadoras nas pessoas de Ti Gertrudes Rosa Marques e de Mariana Estopa.

Em finais do século XVIII, começaram os problemas, à cabeça dos quais uma crónica falta de lenha, essencial para alumiar os fornos, escassez que se manteve pelo século XIX dentro. Para agravar as coisas, em 1800 a extracção de barros teve um tal aumento de preços que os oleiros e mestres da Fábrica de Faiança se queixaram, sem sucesso, à Junta Real do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Depois, a instabilidade trazida pelas guerras napoleónicas e, a seguir, pelas guerras liberais levou à decadência da arte do figurado, que estava praticamente extinta nos alvores do século XX.

Foi salva por um herói, José Maria de Sá Lemos, escultor e discípulo de Teixeira Lopes, que entrou em cena em 1932, ao assumir as funções de professor e director da Escola Industrial António Gonçalves. Esteve em Estremoz até 1945 e aí exerceu funções como vereador da Cultura, além de ter concebido para a cidade o Monumento aos Mortos da Grande Guerra e a singular Fonte do Sátiro. O seu principal legado, contudo, foi ter resgatado de uma morte quase certa aquilo que a UNESCO hoje consagra como Património Material da Humanidade. Para o efeito, foi necessária muita persuasão e paciência junto de Ti Ana das Peles, a qual, não sendo bonecreira de ofício, na mocidade vira algumas artistas a trabalharem nas suas oficinas. Todas elas estavam mortas há muitos anos, pelo que – e esta é outra maravilha numa história tão fértil delas – o ressuscitar de uma arte morta foi, essencialmente, um trabalho de memória e reminiscência. Em jovem, Ti Ana das Peles fizera apenas algumas figuras mais simples, as de assobio; todas as outras que depois produziu resultaram deste comovente e prodigioso esforço de lembrança. 


                                                               José Maria de Sá Lemos e Ti Ana das Peles


Por essa altura, o jornal Brados dos Alentejo bradava, indignado, que já não exista manufactura do barro em Estremoz, mas, logo que foram devolvidos à vida, os bonecos estremocenses fascinaram intelectuais e etnógrafos e, pela mão de Luís Chaves, do SNI, fizeram as delícias propagandísticas do Estado Novo, que os levou a diversos e importantes certames, como a Quinzena de Arte Popular Portuguesa, em Genebra, 1935; a Exposição de Arte Popular Portuguesa, Lisboa, 1936; a Exposição de Paris, de 1937; e por fim, mas não por último, a Exposição do Mundo Português, em 1940.


                                                                                        Exposição de Arte Popular Portuguesa, 1936


Tirada em 1936, na Exposição de Arte Popular Portuguesa, uma fotografia  mostra-nos um Salazar sorridente, contemplando uma vitrine com os bonecos saídos das mãos de Ti Ana das Peles, mulher que certamente nunca imaginou que as suas memórias de meninice despertariam um dia a atenção desvelada de um chefe de governo português, ademais todo-poderoso. Anos depois, em 1962, os bonecos apareceram em lugar cimeiro na exposição “Barristas do Alentejo”, patente no Palácio D. Manuel, em Évora. Nessa fase, já tinham entrado no acervo de alguns museus e colecções privadas (v.g., a de Júlio Maria dos Reis Pereira) e merecido a atenção de estudiosos que, tanto no passado como no presente (v.g., Azinhal Botelho, Luís Chaves, Solange Parvaux, Joaquim Vermelho, Rafael Salinas Calado, Hernâni Matos, Hugo Guerreiro), projectaram e continuam a projectar a obra de gerações sucessivas de artistas, alguns dos quais pertencentes à mesma família, dinastias inteiras de bonecreiros.      

 

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O tema da cegueira do amor é atribuído a Platão, que em As Leis escreveu “aquele que ama é cego para o que ama”, e foi depois glosado por Shakespeare num dos seus sonetos. Deu mote a vários provérbios e ditos populares e, na arte do barro estremocense, é figurado como o boneco Amor Cego (ou O Amor é Cego), que surge assinalado pela primeira vez em 1929, no Inventário do Museu Municipal de Estremoz, mas que remonta certamente ao século XIX. De acordo com os especialistas, denota influência brasileira, e até porventura africana (na freguesia do Ameixial, nos arredores de Estremoz, há um Monte dos Pretos e na cidade existe, como noutras localidades do país, a Rua dos Malcozinhados, dois indícios da presença de escravos negros na região).


                                                      David Freitas, Primavera, anos 1960-70


À semelhança de figuras congéneres como as das Primaveras  (Primaveras de Arco ou Primaveras de Plumas) ou as das Bailadeiras, os bonecos do Amor Cego surgem geralmente aos pares, em alegoria do amor profano ou, segundo outros estudiosos, como evocação metafórica da felicidade, do matrimónio, da caridade, da providência. As suas origens terão sido as personagens dos teatros ambulantes que percorriam o país de lés a lés ou as estampas de curiosidades que tiveram grande circulação no século XIX. Poderá ter havido também inspiração nos anjos tocheiros que adornam muitas das nossas igrejas, e há parecenças com certos Bonecos de Santo Aleixo ou até com os anjos da cimalha de presépios expostos em maquinetas com cenas da Natividade. Contudo, a alusão mais óbvia é profana e o seu avatar é Cupido, o qual, à semelhança dos bonecos do Amor Cego, tem as asas vermelhas, a cor da paixão e da luxúria. No figurado de Estremoz, contudo, o amor é representado por uma figura feminina, de coração na mão e de olhos vendados (aliás, nas obras de vários pintores, como Piero della Francesca, Botticelli, Ticiano, Lucas Cranach, etc., há vários cupidos vendados). 


                                                     Piero della Francesca, Cupido Vendado, 1452


Como surgem geralmente aos pares, numa das figuras as plumas do toucado ou dos capacetes inclinam-se da esquerda para a direita, e na outra tomam o sentido inverso. Há variantes e cambiantes, recriações contemporâneas, mais livres e ousadas, mas, em regra, a figura do Amor Cego tem uma saia rodada, de cores vivas e garridas.

Em face daquela mulher cega de amor, com os olhos vendados e o coração na mão, somos tentados a lembrar um episódio sucedido em 1543, quando um familiar do arcebispo de Lisboa acompanhou a Castela a noiva de Filipe II, Maria de Portugal. De Estremoz, por onde passou, disse: “nesta villa há mtas moças fermosas e em boa cantidade, porque se os graes e os púcaros sam famosos, mais merecem as molheres. 

 

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Uma história começada no Câmbrico, há coisa de 500 milhões de anos, e que ainda não terminou. 



                                                                        António Araújo



Bibliografia consultada: Carolina Michäelis de Vasconcelos, Algumas Palavras a Respeito de Púcaros de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921; Joaquim José Vermelho, Sobre a Cerâmica de Estremoz. Arquivos da memória, organização de Hugo Guerreiro, Lisboa-Estremoz, Edições Colibri-Câmara Municipal de Estremoz, 2005; Ana Maria Baptista Costa Mateus, Bonecos de Estremoz, objectos de identidade patrimonial, dissertação apresentada à Escola Superior de Design do IADE, Lisboa, 2008, policopiada, inédita; José Fernandes Reis de Oliveira, Bonecos de Estremoz. Etnografia e Arte, Lisboa, By the Book, 2015; Hernâni Matos, Bonecos de Estremoz, prefácio de António Júlio Rebelo, fotografias de Luís Mariano Guimarães, Estremoz-Póvoa de Varzim, Edições Afrontamento, 2018; Hugo Guerreiro, Figurado de Estremoz. Produção. Património Imaterial da Humanidade, fotografias de Guilhermo Carmelo, prefácio de José Daniel Pena, 2.ª edição, Porto, Edições Afrontamento, 2022.




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