Bianca Cappello, de Scipione Pulzone, Il Gaetano (Kunsthistorisches Museum)
Há
51 anos, Celeste Caeiro (1933-2024) tinha, por feliz coincidência, um ramo de
cravos que deu nome e aura a uma revolução que, pela sua radical tranquilidade,
inspirou e ainda impressiona o Mundo. Em inglês dir-se-ia que o acaso
dos cravos de Celeste foi serendipitous – algo que vive no almejado
limiar entre a coincidência e a sorte.
O
termo serendipity, possivelmente sem tradução para português mais feliz
do que o de feliz coincidência (a serendipidade foi aqui
belissimamente desbravada pelo António há
precisamente dez anos), tem uma ligação a um cravo ou mais concretamente à
dona de um cravo.
Terá
sido usado pela primeira pelo escritor e político inglês Horace Walpole numa
carta que, em 1754, escreveu ao diplomata britânico Horace Mann, representante
do Reino Unido junto do Grão-Ducado da Toscana. A inspiração veio de um conto italiano,
Peregrinaggio di tre giovani figliuoli del re di Serendippo, de Cristoforo
Armeno, que Walpole conhecia na sua tradução inglesa mas que na realidade reproduzia
um conto persa – Serendippo vem de Serendib, o nome árabe para a nossa
Taprobana, ou Ceilão ou Sri Lanka.
Na
história de Armero, os três jovens filhos do rei de Serendippo revelam
ter particular sorte nas coincidências que lhes permitem escapar a uma sentença
de morte e tornarem-se conselheiros do imperador. A serendipity a que
Walpole se referia em 1574 tinha a ver com um retrato que Mann lhe enviara de
Florença e que Walpole, graças a uma coincidência furtiva e sortuda, como a dos
príncipes de Serendippo, descobrira ser um retrato de Bianca Cappello,
Grã-Duquesa da Toscana.
Bianca
Cappello foi uma aristocrata veneziana, amante e depois mulher do Grão-Duque
Francisco I de Medici – o segundo Grão-Duque da Toscana. A beleza lendária de
Bianca não lhe granjeou particular sorte, mas trouxe-lhe uma vida de liberdade,
aventura, intriga e escândalo, que culminaria em tragédia – e a inscreveria
como lenda na história de Florença.
Apaixonada
aos 15 anos, fugiu para Florença com o que seria o seu primeiro marido. A
liberdade trouxe-lhe um marido, mas Bianca acabou presa por causa da fuga de
Veneza. Perdoada pelo Grão-Duque Cosimo I, depressa se tornaria amante do
herdeiro do trono da Toscana. Viúva em circunstâncias estranhas, foi instalada
no belo
palácio florentino que ainda tem o seu nome, a apenas um quarteirão do colossal
Palazzo Pitti.
Quando,
em igualmente estranhas circunstâncias, morreu a mulher de Francisco I, Joana
de Áustria, Francisco casou-se rapidamente e em segredo com Bianca e fê-la
coroar Grã-Duquesa dias depois. Bianca permaneceu impopular em Florença, mas
Veneza passou celebrá-la como arma diplomática para aproximar os dois estados, concedendo-lhe
o raríssimo título de Filha da República veneziana.
No
belo quadro de Bianca Cappello, de Scipione Pulzone, Il Gaetano, que
está no Museu de História da Arte em Viena, Bianca
Cappello é retratada com um cravo encarnado no decote, flor aparentemente
escolhida pela Grã-Duquesa como símbolo de fertilidade e com a qual foi representada
noutras obras. Este quadro em concreto, foi em tempos considerado o mais belo
de Veneza, alvo de verdadeira adulação em 1586 (Elsje van Kessel, The
Lives of Paintings, 2017).
A
história de liberdade de Bianca Cappello termina no ano seguinte: Francisco I e
Bianca morrem no mesmo dia, a 20 de Outubro de 1587. O Grão-Duque provavelmente
de malária, a Grã-Duquesa possivelmente envenenada. O sucessor de Francisco, o
seu irmão, cardeal e a partir de então Grão-Duque Fernando I, não permitiu sequer
que Bianca, a Filha da República livre, vagamente libertina, que, de
cravo no decote rendado, rompera a tranquilidade toscana, fosse sepultada com o
marido no mausoléu dos Medici.
Celeste
Caeiro esperou 50 anos pelo reconhecimento como filha da República, uma
república porventura ingrata para quem lhe deu um dos seus mais internacionais
símbolos. Só postumamente, há pouco mais de um mês, Celeste Caeiro foi
agraciada com a Ordem da Liberdade. Poder-se-ia questionar se as coincidências,
mesmo felizes, cabem nos propósitos das ordens honoríficas. Como nos mostra a
história persa dos príncipes de Serendippo, mesmo os acasos, quando
serendipitosos, são de louvar e reconhecer.
Ademar
Vala Marques
25
Abril 2025
Presumo que o António a que se refere Ademar Vala Marques é o Araújo, editor deste blog, mas não consegui encontrar no malomil o trabalho em que trata de serendipidade. Lembrei-me, porém, de que um seu xará, o meu saudoso amigo Comandante António Estácio dos Reis, oficial da Marinha portuguesa falecido há alguns anos, historiador naval e especialista em instrumentos náuticos, com vasta obra sobre esses temas, enviou-me o texto original de um longo (16 páginas mecanografadas) artigo de sua autoria intitulado exatamente "Serendipidade", datado de 21/04/2004, que não sei se chegou a ser publicado, no qual relata como tomou conhecimento desse termo, conta a historia de Walpole, inclusive do retrato de Bianca Capello, e refere casos de serendipidade acontecidos com ele, António, em suas pesquisas, concluindo pela localização do que ele chama de "o único nónio vivo de Pedro Nunes" no Museu de Física e História Natural de Florença.
ResponderEliminarSim, referia-me ao António Araújo e aqui tem o texto de 2015: https://malomil.blogspot.com/2015/04/you-must-believe-in-spring.html
EliminarAo pesquisar vi que, quando o Comandante Eustácio dos Reis morreu, em 2018, os jornais frisaram que se bateu pela inclusão da serendipidade como termo português. Também aprendi hoje o que é xará! Obrigado!
Ademar VM
Obrigado também pelo link para o belo texto do António Araújo. Acho que, naquele ano, eu ainda não frequentava o malomil.
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