terça-feira, 28 de abril de 2015

You must believe in Spring.

 
 
 
 
 
 
 
Fez há pouco 40 anos. A 24 de Janeiro de 1975, Keith Jarrett tocou na Ópera de Colónia, e em público. Segundo dizem, a gravação desse concerto, com o selo da então recém-criada ECM Records, é o álbum de jazz a solo mais vendido de todos os tempos. E, já agora, o disco de piano a solo mais vendido de todos os tempos, em todos os géneros musicais. Vendeu qualquer coisa como 3,5 milhões de cópias.
         Mais espantoso do que os milhões de vendas é o facto desse momento mágico ter sequer acontecido. Tudo sucedeu por um triz feliz, um acaso do destino. O concerto de Colónia foi organizado por uma rapariga quase adolescente, Vera Brandes, que na altura contava apenas 19 anos e era a mais jovem promotora de espectáculos da Alemanha. O músico chegou cansado a Colónia no próprio dia do concerto, já tarde, após uma viagem extenuante de carro. Vinha de longe, da suíça Zurique. Não dormia bem há vários dias, sofria de dores lancinantes nas costas, tão lancinantes que chegou à Alemanha de braço ao peito, o que não é propriamente a melhor forma de um pianista se apresentar a conserto. Por uma malvada conjunção astral, nos bastidores tudo correra mal. Enganaram-se no piano, colocando em palco o instrumento que estava preparado para os ensaios, um modelo bastante diferente – e muito pior – do que aquele que Keith Jarrett solicitara. Nem sequer os pedais funcionavam bem, obrigando o músico a ultrapassar a falha através do seu dotes geniais de improvisação. Segundo disse mais tarde o produtor da ECM Records, «provavelmente, ele tocou assim porque não tinha um bom piano. Não conseguiu apaixonar-se pelo som do instrumento e, por isso, teve de arranjar outra forma de tirar o melhor que podia daquele piano». Ao início, Jarrett recusou tocar no piano roufenho que o aguardava em palco, mas Vera Brandes convenceu-o: na sala esgotada, 1.400 pessoas aguardavam, impacientes. O concerto fora marcado para uma hora esdrúxula, onze e meia da noite. Era a única hora que os responsáveis pela Ópera de Colónia tinham concedido a Vera Brandes para se realizar um espectáculo de jazz naquele recinto distinto. Quando tudo apontava para um desastre, aconteceu um milagre. Ainda hoje, quando ouvimos o Köln Concert, ficamos boquiabertos ao saber que aquilo poderia nem sequer ter acontecido. Se o concerto fosse realizado no dia seguinte, com o piano adequado, afinadinho, tudo seria diferente, não seria aquele, não seria aquilo, como o demonstra o facto de, muitos anos depois, Jarrett o ter repetido no Carnegie Hall. Concerto de Jarrett no Carnegie Hall: alguém notou, alguém morou? Não; o que fica e ficará é o Concerto de Colónia. Um improviso a solo num piano de reserva.
 
 

 
Let us not wallow in the valley of despair.
 
 
Anos antes, em 1963, outro feliz acaso do destino, mais um triunfo do improviso sobre as forças do mal iminente e prenunciado. Na véspera da Marcha sobre Washington, Martin Luther King Jr. reuniu-se com os seus companheiros de luta, um grupo que sofrera na carne, com prisões e humilhações várias, o combate heróico contra os preconceitos fundados na cor da pele. Nesse combate, Luther King era o cavaleiro que trespassava o dragão do ódio, como no quadro de Ucello na National Gallery.
 
 
Paolo Ucello, São Jorge e o Dragão, c. 1470
National Gallery, Londres
 
 
 
Os colaboradores de King aconselharam-no a não usar o refrão I have a dream. Martin já o utilizara diversas vezes, era um cliché, uma fórmula batida e repisada, sem qualquer novidade ou carga apelativa. Discutiram o texto horas a fio. Pelas 4 da madrugada, cansado e gasto, King subiu ao seu quarto, dizendo aos companheiros que ia rezar para que Deus lhe dissesse que palavras deveria usar na manhã seguinte. A Marcha sobre Washington, por causa de mil e uma peripécias, esteve quase para não se realizar. Muitos tentaram boicotá-la. Ao longo dessa manhã de 28 de Agosto de 1963 milhares de pessoas, vindas de toda a América, aglomeraram-se junto ao Monumento a Lincoln. Muitos oradores falaram antes de Martin Luther King Jr. Quando chegou a vez deste, o último a discursar, Martin começou a desfiar o que trazia escrito. A sua voz tonitruante ia percorrendo as linhas escritas no papel. Mas, de súbito, King largou os papéis, começou a improvisar: «So even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream.»
Wyatt Tee Walker, um dos seus conselheiros, aquele que mais inflamadamente estivera contra o uso do refrão do sonho, olhou para o chão do Mall; desalentado, disse para si, entre dentes: «Aw shit. He’s using the dream». Martin Luther King já falara do seu sonho diversas vezes, inclusive na semana anterior, num discurso em Chicago; e poucos meses antes, num comício gigantesco em Detroit. Se tivesse seguido os avisados conselhos dos seus companheiros, plenos de sensatez e tino, Luther King não teria dito as palavras I have a dream – e tudo o mais que improvisou depois, sem papel escrito, arredando as folhas do discurso que trazia consigo. Mas, muito provavelmente, se não tivesse falado do seu sonho hoje não saberíamos sequer que Martin Luther King Jr. fizera um discurso em Washington. Ignoraríamos até, muito provavelmente, que em 1963 houve uma Marcha sobre Washington contra a segregação racial. Pelo sonho é que foi. E pensarmos que James Earl Ray, o assassino de Luther King, na sua fuga à polícia passou por Lisboa, hospedando-se numa pensão do Cais do Sodré, contratando os serviços de uma prostituta… Chamava-se simplesmente Maria, deixou-se fotografar, o seu rosto  correu mundo.
 
Maria

O quarto em que pernoitou o foragido James Earl Ray
 
A história do estribilho I have a dream é mais ou menos como a do piano da Ópera de Colónia: se Keith Jarrett não tivesse que tocar num piano roufenho talvez não improvisasse daquela maneira única, de um lirismo transcendente. Num e noutro caso, o acaso feliz produziu uma mudança histórica. A partir da Marcha sobre Washington, nada seria igual na luta contra a segregação dos negros. O Concerto de Colónia, por sua vez, assinala uma viragem na história do jazz, que à época se encontrava bloqueado pelo tédio da fusão jazz-rock (antes que os especialistas me apedrejem e lapidem, leiam isto e já agora isto).
Um dia, há um par de meses, numa das nossas conversas, a Mena Mónica usou a palavra serendipity. Sim, sei que a expressão tem um significado preciso e bem definido, e que se não confunde com sorte ou azar, destino ou acaso. Mas isto é só um blogue, não façam caso. A serendipidade não aconteceu apenas em Colónia, quando um piano de terceira categoria, tocado pelo génio humano, produziu uma sonoridade única, irrepetível.
A serendipidade, o acaso feliz, aconteceu noutros lugares da Alemanha, e há muitos anos atrás. Dentro de dias, a 30 de Abril, assinala-se o 70º aniversário do suicídio de Hitler no bunker de Berlim. Em 8 de Maio de 1945, a população de Demmin, uma pequena cidade do nordeste da Alemanha, decidiu suicidar-se em massa ante as notícias da morte do Führer e da chegada iminente dos russos. O maior suicídio colectivo da história da Alemanha, um país que, ao longo da história, já se suicidou várias vezes. Dos 15.000 habitantes de Demmin, entre 700 e 1.000 pessoas optaram pela morte voluntária. Levaram meses e meses a resgatar os cadáveres na correnteza do rio Penne. Diversas mães atiraram os filhos ao rio antes de se lançarem elas próprias nas águas vorazes. A mãe de Bärbel Schreiner, então uma menina de seis anos, preparava-se para o salto derradeiro. O irmão de Bärbel interrompeu-a, com a inocente pergunta: «Mãe, nós não, pois não?» «Ainda me lembro da água avermelhada pelo sangue», diz Bärbel Schreiner, hoje uma senhora de 76 anos, que acrescenta: «sem aquela pergunta, estou convencida de que a minha mãe nos teria afogado aos dois.»   
 
 
Bärbel Schreiner em criança, com a mãe e o irmão mais velho
Demmin, 1944
 
 
 
 
 
Falando de efemérides e da Alemanha, e dos grandes momentos da História do Ocidente, convém recordar outra data fundamental da nossa civilização. A partir de raízes judaico-cristãs milenares, o Ocidente, que muitos asseveram estar em putrefacção e declínio, produziu coisas tão grandiosas como as cantatas de Bach, as catedrais ogivais e as ogivas atómicas, o papel higiénico e Manuel Luís Goucha. No cúmulo das maravilhas, uma instalação escultórica concebida em Horizontina, sul do Brasil, há precisamente 34 anos. No passado dia 15 de Abril, a modelo Gisele Caroline Bündchen, fruto natural da frondosa miscigenação germânico-tropical, abandonou as passerelles. Fê-lo no preciso lugar onde, vinte anos antes, desfilara pela primeira vez, a Semana da Moda de São Paulo. No ano 2000, já estrela bioagradável, apareceu num anúncio da Victoria’s Secret ostentando aos peitos um soutien avaliado em 15 milhões de dólares. Que no mundo existia um soutien de 15 milhões de dólares, enquanto só neste ano já morreram 1.600 seres humanos a tentar atravessar o Mediterrâneo, é algo que nos deixa confusos. Mas só se admira quem quer. Por nós, já aqui o temos dito, vezes sem conta: o mundo é um lugar estranho. Num instante, num segundo, a vida muda, e o mundo é capaz de reunir em si o melhor e o pior. Na semana passada, uma jovem migrante, Wegasi Neblat, foi salva de um naufrágio por um sargento do exército grego, Antonis Deligorgis. Tudo aconteceu por acaso, o puro acaso: o militar estava com a mulher, Theodora, e decidiram beber um café junto ao mar, numa praia da ilha de Rodes. Ao ver o naufrágio, o sargento Antonis fez-se ao mar traiçoeiro. Feriu-se a valer, com golpes fundos nas mãos e nos pés, mas salvou da morte 20 dos 93 migrantes que seguiam no navio destroçado. Três dias depois, Wegasi Neblat deu à luz a criança que trazia no ventre. Pôs-lhe o nome do seu salvador, Antonis, que de Rodes foi colosso.      
 
Antonis Deligorgis salvando Wegasi Neblat
Rodes, Abril de 2015
 
Além de uma fortuna avaliada para cima de 400 milhões de euros, Gisele Bündchen é a serendipidade em forma de gente. A par de  Elle McPherson, o que a torna diferente dos outros modelos não é ser mais bela ou mais elegante; é ser uma celebração festiva à vida, uma conjunção radiosa e felicíssima de células e tecidos: 53 quilogramas de alcatra humana, estendida ao comprido por 1,80m de altura.      
O cancro é a serendipidade às avessas, uma conjunção celular negativa. Gisele Bündchen é o oposto disso, o anti-cancer. Não interessam nada as fotografias de agora, fabricadas e artificiais. O erotismo é tanto, e tão fogoso, que atordoa a nossa racionalidade  e obscurece o ponto que em Gisele mais importa, a vitalidade primordial. Esta encontra-se muito mais nas imagens de infância. Já lá estava, intacto e puro, o dom originário, a perfeita e saudável harmonia mitocondrial.
 

Gisele Bündchen, a própria, em criança


 
 A Mena não acredita muito nestes acasos. Há dias, falando os dois de acasos e destinos, respondeu-me à grande, com uma citação caríssima. William Shakespeare, e o Acto I de Júlio César:
Men at some time are masters of their fates;
The fault, dear Brutus, is not in our stars,
But in ourselves, that we are underlings.
 
         Admito, o destino é nosso, não está nas estrelas. Keith Jarrett, Luther King e a mãe de Bärbel Schreiner agiram, cada um a seu modo, seguindo a lei terrena do livre-arbítrio. Daí tivemos, por esta ordem, um concerto em Colónia, um discurso em Washington e duas crianças resgatadas à morte por afogamento na vila-suicida de Demmin. O sargento grego, é certo, poderia não se ter lançado às águas para salvar os seus semelhantes. Logo ele, cidadão de um país  à deriva, que desesperadamente tenta salvar-se do naufrágio. Em todo o caso, Antonis agiu; e agiu de uma forma tão impulsiva e imprevista como Keith Jarrett improvisou em Colónia ou Martin Luther King falou em Washington. O facto de ele e a mulher estarem ali, a metros da catástrofe, na praia de Rodes, não tem outra explicação que não esta: serendipidade.
         Em 1937, o professor Johanes Theinert e a sua mulher Hildegard, casados de fresco, começaram a escrever um diário. A última entrada tem data de 9 de Maio de 1945. «A guerra acabou. As armas calaram-se». Nesse mesmo dia, o professor Theinert deu um tiro na mulher e depois virou a arma contra si próprio, e disparou. Perante um gesto destes, outro trecho do diário do casal, escrito no dia fatal:
         Quem se lembrará de nós?
Quem saberá como acabámos?
Terão estas linhas algum sentido?
        
O diário seria encontrado. No meio de tanta devastação, só um acaso permitiu descobrir o caderno íntimo. Por causa disso, hoje sabemos como acabaram as vidas de Johanes e Hildegard Theinert. E, respondendo à outra pergunta que então fizeram, lembramo-nos deles hoje, 70 anos depois, pelo feliz destino que levou à descoberta do seu diário. Há nele uma derradeira interrogação, a mais difícil de todas: «terão estas linhas algum sentido?».
         Não sei. Esta é uma pergunta que tanto se pode aplicar ao diário dos Theinert como às linhas que acabei de escrever. Farão sentido? Não sei.
De certeza certa, só sei uma coisa: no mundo, Mena, neste lugar estranho e desconcertado, no mundo de soutiens de 15 milhões de dólares, não há maior serendipidade do que a amizade. À nossa.   
 
Para Maria Filomena Mónica.
 
António Araújo
 
 
post-it – já agora, e sem ofensa, dedico também este texto ao casal octogenário amoroso que anteontem vi no IKEA de Alfragide à volta de um prato de degustação de bolachas de gengibre. Cada um deles alambazou, no mínimo, umas sete ou oito bolachas (de gengibre). Depois foram para casa, todos contentes.  
 

4 comentários:

  1. Conserto? Estou aqui a ouvir por mero acaso o concerto de Colónia. Quantas bolachas o amigo comeu? Bem haja por mais esta maravilhosa deambulação pelo livre-arbitrio.

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  2. Num instante, num segundo, a vida muda

    "Houston, we have a problema"

    Estes podiam ter sido os anónimos da Apollo 13 assim também ficaram lembrados para sempre (bem, na realidade não eles mas o Tom Hanks).

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  3. Do Keith Jarrett às bolachas de gengibre em Alfragide.
    Obrigado por este belo texto.

    Quanto ao acaso, tanto nas ciências como nas artes, parece ser o esqueleto que sustenta a história da humanidade. Procurar uma coisa e encontrar outra.
    À procura da Índia descobrir a América. Partir um termómetro encontrar a fotografia. Entornar nitroglicerina criar o premio Nobel.

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  4. Belíssimo texto.
    Também vou passar a comer bolachas de gengibre.
    Como se lê/vê, elas fazem tão bem.
    Obrigado pela criação e pela partilha.

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