quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A fisherboy of Portugal.

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Se há domínio que apaixona os bibliófilos nacionais ele é, sem dúvida alguma, o do «Estrangeiros em Portugal». O tema desperta, aliás, a geral curiosidade da generalidade dos portugueses: adoramos saber como os outros nos vêem. Fizeram-se até antologias de escritos de estrangeiros sobre Portugal, como De Fora Para Dentro, organizada por Aníbal Fernandes e editada pela Afrodite em 1973, ou They Went to Portugal, de Rose Macaulay. No que toca a colecções, o Catálogo da Livraria Duarte de Sousa mostra bem a que extremos pode ir uma paixão bibliófila.
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Nos anos 50 e 60, o Portugal estadonovista, captado a preto-e-branco, tornou-se um lugar de peregrinação dos profissionais do olhar. A Nazaré, então, foi esquadrinhada por dezenas de caçadores de imagens, de imagens «fortes», contrastadas na luz dura e no sofrimento terreno. Apesar de algumas delas ostentarem fartos bigodes e sulcadas rugas, as mulheres vestidas de negro da Nazaré converteram-se em top models para nomes grandes da fotografia estrangeira. No Grand Monde, aqui, a Ângela Castelo-Branco fez uma belíssima resenha dessa vaga que se espumou nas areias de Portugal, revelando ao mundo a faina dura que deixava as mulheres em terra, de terços na mão e preces aos santinhos, e levava mar adentro filhos e maridos, rumo a um horizonte incerto. Cartier-Bresson esteve lá. E o cineasta Stanley Kubrick também. Nazaré e Fátima eram os destinos favoritos dos que amavam o exotismo da dor, mostrado e chorado em lágrimas de branco e preto.
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A fotógrafa de origem alemã Ingeborg Lippmann escolheu outro destino, menos explorado: Peniche. E fez os retratos e o texto de A Fisherboy of Portugal, publicado em 1971. Recentemente, vários trabalhos de Lippman estiveram expostos na Fundação Mário Soares. Mas regressemos ao fisherboy de Peniche, Joaquim António de seu nome. Tinha treze anos quando Lippman lhe contou a história. O livro inseria-se numa série, «Friend Around the World», que seguia sempre o mesmo mote, a do rapazinho ou da rapariguinha de uma qualquer parte do mundo. Assim, sem mais. Além do nosso amigo de Peniche, Ingeborg Lippman fotografou um menino da Islândia. Terras agrestes. Outros trataram de Ali, da Turquia, de Dayapala, do Ceilão, de Majola, um rapaz zulu, de Shaer, do Afeganistão, de Ketut, do Bali. Eram esses os países escolhidos, num propósito implícito de mostrar a vida e o trabalho de crianças, de jovens adultos. O que se visava não era propriamente alcançar os homens que nunca foram meninos, de Soeiro Pereira Gomes. Mais do que neo-realismo, a ideologia da série era humanista e universalista. O livro, aliás, evita mergulhar em digressões sociológicas ou pintar a cores negras a vida do rapazito Joaquim António. O texto é pueril, quer no tema, quer na forma. Simples, talvez até demasiado simples, quase simplório, descreve o dia-a-dia de um aspirante a pescador no litoral oeste da Península Ibérica. Jamais se conta algum episódio mais triste ou sequer um pormenor desagradável. A vida de Joaquim António decorre alegre entre leituras nocturnas de livros juvenis, a aprendizagem das artes da pesca, jogos de pingue-pongue. À mesa da família não faltava o bacalhau com batatas. E na rua, a rua seguríssima, abundavam os jogos e as brincadeiras de rapazes. Assim crescia Joaquim, mirando as águas gélidas de Peniche, fartas de peixe. Fez-se homem e, sendo homem, pôde fazer-se ao mar. Ficou feliz. Deste modo termina Lippman a sua narrativa, algo ingénua e condescendente. A obra, repetimos, não tinha um propósito militante. E Ingeborg Lippman não possui, de modo algum, o talento da escrita e a graça soberba de John Gibbons, que nos deu esse maravilhoso livro intitulado Não Criei Musgo. Premiado pelo Estado Novo, o livro de Gibbons é um relato ímpar do Portugal rural da década de quarenta. Foi reeditado duas vezes pela Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães. Não se percebe a razão, mas os editores nacionais, mais virados para as sagas de vampiros e para cinquenta sombras de S&M, deixam passar ao lado livros excepcionais como este, Não Criei Musgo, de John Gibbons.
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Quanto à obra de Ingeborg Lippman, que será feito de Joaquim António? Está vivo, está morto? Tem passado bem? Malomil adora este follow-up’s, como se pode ver aqui ou ali. Isto supera o mero divertimento ou o gosto inocente por meras curiosidades antiquárias. De facto, é comovente ver o passar dos anos através da imagem, olhar quem se tornou aquele que um dia foi mais jovem, ou menos velho. Que esperanças incumpridas, que expectativas superadas, que vida se fez e atravessou um homem ou uma mulher a partir do passado retratado na fotografia.
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Quarenta e um anos depois da publicação de A Fisherboy of Portugal, Joaquim António Amaro da Trindade continua a viver em Peniche. O que hoje pode parecer o extraordinário privilégio de ter a sua jovem vida narrada e fotografada por Ingeborg Lippman pareceu ao jovem de treze anos um fardo pouco apetecível. A morte recente da irmã deixava-o pouco inclinado para aquele projecto. Lippman queria retratar a vida de um filho de pescador na então vila de Peniche e dirigiu-se à Capitania, que identificou Joaquim entre os alunos da Escola de Pesca. Joaquim acabou por aceitar e tem hoje uma colecção de belíssimas fotografias, um livro publicado sobre si e uma história para contar aos netos.

Do Peniche de então, ainda há o que reste. Há muito que as traineiras desapareceram do fosso da Muralha, mas ainda aparecem, raras, no porto de pesca. O Stella Maris, instituição da paróquia retratada no livro, continua activa. O estaleiro naval mudou de sítio, mas continua a produzir barcos – na sua maioria para o estrangeiro e poucos de pesca. O Carnaval parece continuar tão animado como há 40 anos, trazendo para as ruas milhares de pessoas. A Fortaleza continua antiga e, muito embora tenha deixado de ser um terrível cárcere, mantém um ritmo de decadência que urge travar. A história de um quotidiano que a olho nu parece ter sido edulcorado surge hoje como o relato de um Portugal distante e a Joaquim como recordação de um tempo “melhor que este”. A passos da célebre prisão opressora, a vida de Joaquim parece ter passado ao lado das tensões políticas. O lápis azul não teria tido necessidade de tocar este livro, tivesse ele alguma vez sido traduzido. A antiga Fortaleza de Peniche é descrita apenas como “an old fortress” junto da qual as mulheres estendiam a roupa e remendava redes e as crianças jogavam à bola. “Não se falava disso, não se podia falar”, recorda Joaquim quando perguntado pela referência inócua ao monumento.
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Joaquim António Amaro da Trindade no local de onde Ingeborg Lippman fez a fotografia que serve de fundo à capa do livro.




A denominação no nome do livro, fisherboy, já nessa época não correspondia bem à verdade e isso fica claro da sua leitura. Diz-nos Joaquim que “nunca quis ser pescador, nunca quis andar ao mar”, porventura influenciado pela dureza da vida nas ondas altas, de que Lippman dá apenas uma ténue imagem. Então e agora, pescador, só à linha. Sempre que pode, Joaquim vai pescar com os amigos para as impressionantes escarpas de Peniche, como antes ia pescar com o pai. Joaquim António emerge do livro como um jovem confiante, determinado e alegre. Hoje os traços desse mesmo espírito são claramente identificáveis na forma como fala connosco e nos conduz pelas ruas de Peniche, em busca dos locais onde ‘Inge’, diminutivo pelo qual conhecia a autora do livro, mostrou aos leitores esta criança e o mundo que a rodeava. Todos o conhecem, todos o cumprimentam.

Quando Ingeborg Lippman acompanhou a vida dos Amaro da Trindade, já Joaquim António regressara de Santarém, onde estudara. Estava na Escola de Pesca mas não queria ser pescador. Recorda a vida de então com saudade. A vida simples e modesta que Lippman descreveu é, na memória do nosso fisherboy, um tempo em que nada lhe faltou, em que era relativamente fácil ganhar dinheiro do trabalho. Assume-se como um privilegiado desses tempos, um dos primeiros jovens de Peniche a ter um carro aos 18 anos.

Joaquim com antigos pescadores de Peniche, recordando o temporal descrito por Lippman e que ficou na memória de todos.

Joaquim em frente à Capitania de Peniche, no mesmo local onde foi fotografado com o pai,
há 41 anos.



Há 41 anos, imagem de Ingeborg Lippman 


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Na capa do livro, uma montagem colocou o molhe leste do porto e a hoje célebre praia dos Supertubos, cujas ondas tantas pessoas trazem a Peniche, sob uma fotografia de Joaquim António a reparar redes. É aí que começamos o nosso passeio numa manhã de Sábado de Dezembro e recordamos onde terminava a ribeira, para onde o memorável temporal descrito por Lippman arremessou do mar uma colossal (ou enorme) pedra que veio cair em terra firme, para espanto dos pescadores de então, lobos do mar de hoje. Alguns deles corroboram a história quando os encontramos na Avenida do Mar, junto ao restaurante com o sugestivo nome Katekero, sinal de tempos que vieram e tardam em ir. Joaquim mostra entusiasmado as fotografias do livro e todos se recordam das ondas desse dia e da pedra que a força do mar levantou, prova de um poder que nenhum homem que lá tenha andado questiona. A devoção à Senhora da Boa Viagem, que todos os anos levam ao mar em Agosto, bem o atesta.



Imagem de Ingeborg Lippman

Rua Salvador Franco, em Peniche, onde Joaquim António morava com os pais


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Subimos um par de ruas até à Rua Salvador Franco, onde Joaquim António morava com os pais. O peso das palavras de Raul Brandão, que em 1919 escreveu que “Peniche é horrível, cai-nos sobre os ombros. O horrível de então, das “edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins”, surgiria seguramente aos olhos de hoje como castiço ou pitoresco, porventura elegante, quase cénico. Estará ainda suplantada pelo remendado alcatrão sujo a calçada que serpenteava em frente da casa de Joaquim? Estará lá com ela a alma destas ruas? Prédios verdadeiramente horríveis, que dia algum foram ou serão graciosos, surgem onde antes havia casas modestas com roupa estendida à porta. Serão também estes sinais de tempos em que “os homens dos municípios”, que já Brandão culpara, nada aprenderam. Peniche vai-se perdendo a cada passo, a cada novo projecto que não respeita o que antes havia.

Ao virar a esquina encontramos a prima de Joaquim que aparece também no livro, alegre, a cantar as Janeiras, tradição dos dias das festas do Natal que cada vez mais rareia por estas bandas. Lembra-se bem do livro e da “Inge” e Maria da Conceição acede à fotografia. Seguimos para o Mercado Municipal. Foi inaugurado no ano em que Lippman o fotografou, fresco e airoso. Está igual. Porventura menos fresco e mais vazio, embora conserve airosas as vendedoras que olham com interesse para as fotografias que lhes mostra Joaquim António. No bar do Mercado encontramos João, um colega da escola de pesca que está numa fotografia em redor de um barco. Com ele o nosso fisherboy recorda esses tempos e diz-nos como gostaria de reunir todos aqueles que ali estão, reeditar aquela fotografia, estes 40 anos volvidos. Mas logo se apercebem como seria difícil, estando a maioria daquela dúzia de jovens hoje fora do país, levados uns há mais, outros há menos anos, em busca de um futuro melhor.




Joaquim António com a sua prima Maria da Conceição, uma das crianças que aparece alegre a cantar as Janeiras numa das primeiras fotos do livro de Lippman.



Imagem de Ingeborg Lippman

No Mercado Municipal de Peniche.




Seguimos, em busca do primo Carlos Eduardo, Quicas, um irmão para Joaquim, de quem Lippman fala no seu livro. É com ele, com o pai e um outro amigo que hoje vive na Austrália, que o fisherboy surge na impressionante fotografia que abre a obra, com a Berlenga em fundo. É para lá que seguimos. Junto ao Santuário da Senhora dos Remédios, as pedras recordam-nos que o tempo passa por nós muito mais depressa que por elas. Não os sabemos nós, mas aquelas rochas têm nomes, dados pelos homens, que as contemplam, tiram parecenças e os vão passando de geração em geração. A fotografia de Lippman podia ter sido tirada ontem. As rochas têm as mesmas rugas. Ao longe, a Berlenga é a mesma mancha de então, sombria num dia sombrio.
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Recordando as actividades da escola de pesca com o antigo colega João.


Há 41 anos.


Junto ao Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, Joaquim António e Quicas recriam a fotografia de há 41 anos.






Joaquim António voltou a Santarém quando saiu da Escola de Pesca e acabou por ir para a Marinha. O mar acabou por estar presente na vida do fisherboy que nunca quis ser pescador mas que Lippman põe com a ambição de ser armador. Casou, teve filhos e divorciou-se. Assume-se como um “bon vivant”. O seu regresso a Peniche foi marcado pelo mesmo respeito aos pais que nos é narrado no livro. Joaquim trabalhou com o pai e depois com a mãe na venda do peixe, no Mercado da Lourinhã. Fê-lo até à morte da mãe e depois mudou de vida. É hoje responsável pelo complexo de piscinas de Peniche, logo à entrada da cidade, bem perto da praia – entretanto engolida pelo progresso – onde Lippman o fotografou à pesca, com o pai. Perdeu o seu exemplar do livro já por duas vezes. Vai recuperá-lo.

António Araújo / Ademar Vala Marques

6 comentários:

  1. O Malomil é mais serviço público que toda a RTP junta.

    JM

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  2. "Malomil adora este follow-up’s..."

    São de facto fantásticos. Cá estaremos to follow the Malomil.

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  3. É de louvar o interesse e o trabalho desenvolvido pelos Srs. António Araújo e Ademar Marques nesta "crónica".
    Fiquei extremamente satisfeito com este relato, não por ser o meu Pai a figura principal, mas com o recordar de outros tempos e acompanhar o desenvolvimento de uma Cidade como Peniche.
    Felizmente existe essa Obra, que se pode tratar mais como uma foto-biografia do que outra coisa qualquer, em que pude "conhecer" o meu Avô paterno que faleceu tinha eu somente dois anos de vida, assim como fotografias da época.
    Infelizmente já não habito lá mas volto sempre que posso às minhas raízes.
    Um muito obrigado aos autores pelo interesse.
    RT

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário. Foi com o maior gosto - e bastante emoção - que escrevemos este texto sobre o seu Pai.
      Saudações cordiais,
      António Araújo / Ademar Vala Marques

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  4. Nada pode apagar uma história... As coisas boas que passaram ficaram na memória.
    A vida é um milhão de novos começos movidos pelo desafio sempre novo de viver e fazer todo sonho brilhar. PARABÉNS por esta publicação interessante , UM BEM BEJA a todos que nela participaram. SIMPLESMENTE FABULÁSTICO!!! LZ

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  5. Os autores fizeram-me transportar a outros tempos. O texto é belíssimo e o trabalho de investigação pós-Lippman fantástico. Para quando um livro? Muitos parabéns!

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