sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

No Montecarlo.

 

 
Jorge de Sena e os escritores do café Montecarlo de Lisboa
 
 
Durante vários anos, por ocasião das minhas estadias em Portugal, pelas férias de Natal e de Verão, dedicadas a pesquisas na Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda e Biblioteca da Academia de Ciências, para já não falar da Biblioteca da Universidade de Coimbra, da Biblioteca Municipal do Porto, da Biblioteca e Arquivo Distrital de Évora,  fiz do Montecarlo o meu café preferido.             
Pouco a pouco, fui adoptado pelos escritores que mais frequentemente aí se reuniam em longas tertúlias e em conversas da mais variada natureza, como costumam ser, em geral, as conversas dos cafés. Entre os escritores com quem mais convivi no Montecarlo, contam-se Alexandre Pinheiro Torres, Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, João José Cochofel, José Cardoso Pires, José Gomes Ferreira e Urbano Tavares Rodrigues.
Sabendo das minhas relações com Jorge de Sena, desde o facto de havê-lo tido como professor no meu curso de doutoramento na Universidade de Wisconsin e como principal orientador da minha tese de doutoramento sobre Fernão Álvares do Oriente até ao facto de continuar em contacto com ele, uma das primeiras coisas que esses escritores me pediam, aquando da minha primeira aparição no Montecarlo, eram novidades sobre Jorge de Sena. E eu, lisonjeado por ser convidado a falar sobre o Mestre, dizia-lhes dos seus extraordinários dotes docentes, do seu saber enciclopédico, do seu brilhantismo em conferências e em congressos, da sua produção literária mercuriana, indo da poesia ao ensaio e da ficção ao teatro, passando pela crítica literária e pela história da cultura.
Mas brevemente me dei conta de que os escritores do Café Montecarlo não estavam particularmente interessados nos triunfos académicos e nos sucessos editoriais de Jorge de Sena. Pelo contrário, o seu interesse e o seu desejo íntimo – vim a perceber - seriam ver Jorge de Sena apagado. Mas poderia tal coisa acontecer? De forma alguma. E porque não? Carlos de Oliveira, uma vez, à guisa de metáfora, explicou-me parcialmente por quê, começando por dizer que eu poderia saber muitas coisas sobre Jorge de Sena, mas que certamente ignorava muitas outras. Sabia eu, por exemplo – perguntava-me retoricamente Carlos de Oliveira, com certo ar de malícia mal disfarçada – que Jorge de Sena tinha tanta carência de reconhecimento e de admiração, que escrevia à média de trinta cartas por mês para pessoas de Portugal, para que o não esquecessem? Isso para não falar das crónicas e críticas literárias e ensaios que escrevia na imprensa portuguesa. (Informo entre parêntesis que Jorge de Sena por mais de uma vez me manifestou o seu alto apreço por Natércia Freire, por esta lhe publicar, no suplemento literário do Diário de Notícias, que ela dirigia, tudo quanto ele lhe mandava, sem qualquer interferência da censura.) Sabia eu, por exemplo, prosseguiu Carlos de Oliveira, que fora o salto para o estrangeiro que contribuíra para que Jorge de Sena adquirisse o prestígio que tinha? Prestígio que ele jamais teria adquirido se tivesse continuado a viver em Portugal? Que, quando aí vivia, lá aparecia ele de vez em quando com a sua pastinha e com os seus versos – esclarecia Carlos de Oliveira – pela Brasileira do Chiado e pela Portugália, mas que, praticamente, ninguém dava pela sua existência e muito menos pela sua importância.
E umas vezes com mais subtileza e outras com menos, de uma maneira geral os escritores e intelectuais do Montecarlo manifestavam claramente que não morriam de amores por Jorge de Sena nem tinham admiração por ele. Ou teriam e não queriam admiti-lo? Os ciúmes, como os camaleões, vestem-se de muitas cores. É que de minimis non curat praetor. Aliás, a admiração, ou melhor dito, a falta de admiração dos escritores neo-realistas por Jorge de Sena e a deste por eles era mútua. Não me esqueço de ter ouvido mais de uma vez dizer a Jorge de Sena, observação de que se faria eco Dona Mécia de Sena, que Carlos de Oliveira passara a vida a refazer Uma abelha na chuva. E por mais de uma vez ouvi também dizer a Jorge de Sena que a salvação de Vergílio Ferreira como romancista foi ter abandonado a tempo o dogmatismo dos neo-realistas e enveredar pelo romance psicológico e existencialista, na peugada de Jean-Paul Sartre.
E veio o 25 de Abril e muitos dos autênticos exilados políticos – e dos chamados exilados políticos – e muitas das vítimas do regime totalitarista de Salazar – e das chamadas e presumíveis vítimas do regime totalitarista de Salazar – tomaram de assalto as universidades portuguesas e as associações culturais e académicas e os jornais e a rádio e a televisão e sanearam professores universitários de alta qualidade e idoneidade e praticamente apolíticos, em muitos casos, forçando injustamente e maldosamente vários deles ao exílio. 
         Meses após a Revolução e um ano após a Revolução e dois anos após a Revolução, os escritores do Montecarlo perguntavam-me se Jorge de Sena não estaria também interessado em ir ensinar para uma universidade portuguesa. E a minha resposta era invariavelmente a mesma: que Jorge de Sena nunca tinha sido convidado; que o convidassem formalmente, como tinham feito a tantos outros, que nem de longe tinham as credenciais e os méritos que tinha Jorge de Sena, para ver o que acontecia. E eles davam sempre a mesma resposta, fazendo assim, sofisticamente, da sua inquirição uma mera pergunta de retórica: que certamente Jorge de Sena nunca aceitaria esse convite, pois iria ganhar muito menos para Portugal do que ganhava nos Estados Unidos, e todos sabiam que ele tinha nove filhos para criar. E a essa conclusão falaciosa, por parte dos escritores e intelectuais do Montecarlo, retorquia sempre eu, mais ou menos com estas palavras: que essa questão de sacrifício financeiro e de responsabilidade pela criação dos nove filhos só a Jorge de Sena dizia respeito e só a Jorge de Sena competia resolver. Que aos portugueses – e especificamente aos autoproclamados donos da Revolução – só lhes restava formular o convite, uma vez que diziam  reconhecer-lhe idoneidade e credenciais; que a Jorge de  Sena – e só a Jorge de Sena, frisava eu – lhe competia aceitar ou rejeitar o convite potencial.
E para que conste direi o que neste mês de Outubro de 2009 me contou D. Mécia de Sena: que no próprio dia em que se deu o 25 de Abril, Jorge de Sena, ao ouvir pela rádio que tinha caído a ditadura em Portugal, se voltou para ela e lhe disse, com uma alegria e um entusiasmo quase infantil: - “Ó Mécia, vamos para Portugal”? Ao que a D. Mécia respondeu: -“Ó Jorge, como é que podemos ir assim sem mais, se tu não tens nenhuma garantia de emprego em Portugal nem sabes sequer se to vão oferecer? Vamos esperar e depois se verá.” E a verdade é que, através dos anos, por mais de uma vez me referiu a D. Mécia que o tal convite para ensinar numa universidade portuguesa só foi feito a Jorge de Sena quando ele estava no leito de morte, no hospital, em Santa Bárbara, no ano do Senhor de 1978. Fizera-lho António Reis, na sua qualidade de Secretário da Cultura num dos governos socialistas. Que nesse momento, muito comovido e sensibilizado pelo convite, Jorge de Sena se voltou para a D. Mécia e lhe disse: - “Vamos, Mécia”? Ao que a D. Mécia respondeu: - “Jorge, primeiro tens de melhorar; depois falamos nisso”. 
 
António Cirurgião
 
 
 

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