sábado, 4 de junho de 2016

Lisboa, não sejas francesa.

 

 

     

         Deus é um cara gozador, adora brincadeira
 
Lembro-me como se fosse ontem. Manhã anormalmente quente para Setembro em Lisboa, saudou-me um bafo seco e pesado quando saí à rua para me encontrar com o Bernardino. Íamos receber as nossas amigas a Santa Apolónia. Uma austríaca e uma alemã, vinham conhecer Lisboa, destino final do seu inter-rail à Europa – e nós, jovens alfacinhas orgulhosos, fazíamos questão de lhes servir de cicerones num roteiro pelos cantos postaleiros da cidade. O menu de degustação pretendia ser suficientemente ecléctico para agradar a todos os paladares: um amuse-bouche no Campo das Cebolas, uma entrada fria na Sé e um primo piatto no Castelo; Alfama, agridoce, para dar trabalho às papilas; a Mouraria, picante, para saltar a cerveja no Martim Moniz; uma subida ensopada ao Bairro Alto, com São Pedro de Alcântara a digerir; para terminar, a sombra doce do cipreste do Príncipe Real. (Há aqui algures um fado de Carlos do Carmo, ou uma marcha de José Mário Branco, ou um conceito para uma petiscaria. Mas não vou gastar já os cartuchos.)
É maravilhoso o que o turismo faz por uma cidade. Esta Lisboa encantada era também a Lisboa que nós próprios desconhecíamos: tantas vezes palmilhada, só se dignou a exibir-se quando se sentiu olhada com interesse. A vaidosa! E nós, que a compreendemos, fingindo que não era nada connosco, mascarámos o espanto de existir numa espécie de fado imaturo (como quem arregaça as mangas do casaco do pai) e convidámo-las, às nossas amigas, para mais um copinho.
Foi nesta cidade que decidi viver. Não é o facto de nela ter nascido e de nela ter sido criado que retira peso à minha decisão: ao preço das viagens, podia ter escolhido Berlim, Bruxelas ou Bragança. Mas foi para as colinas que desci quando saí de casa da mãe, com a missão de pôr em prática o ideal de cidade que tinha teorizado nas minhas viagens. Depois de um ano e meio em Santos-o-Velho e de uma breve passagem pelo Bairro Alto, mudei-me com a Maria para as portas do Castelo. Da janela daquele terceiro andar víamos os telhados de Alfama, o estuário do Tejo e os candeeiros do Barreiro. Se nos empoleirássemos, a nascente, apanhávamos o zimbório do Panteão.
No entanto, coisa estranha: de dia, infiltrados nas ininterruptas excursões de turistas sexagenários, contávamos pelos dedos das mãos os vizinhos carregando hortaliças, as velhas subindo ao autocarro da manhã, o empregado do café a fumar à porta; à noite, encerrados os portões do monumento mais visitado do país, silêncio na aldeia. Foi a Mouraria, nosso bairro adoptivo, que nos deu aquilo que procurávamos: as compras na mercearia, os almoços na taberna, os rendez-vous fortuitos de sexta-feira, os concertos rotineiros ao sábado, as melancolias domingueiras; do Castelo, estava visto, extinta a freguesia e seus habitantes, sobrava uma marcha popular. Nisto, passaram-se dois anos. Mas já lá vamos.
 
 

 
É querer fazer arroz de cabidela
Importa explicar que sobrevivi ao olho do furacão. Os telejornais dos últimos anos, para celebrarem sazonalmente o boom do turismo da capital, poderiam ter montado o seu observatório estratégico naquele terceiro andar. Não precisámos de ligar a televisão para adivinhar os números: em 2014, Lisboa deu cama a 11 milhões de visitantes (11 milhões dos quais passaram à nossa janela) e foi a cidade europeia que mais viu aumentar o número de turistas que recebeu (quase o dobro do que viram aumentar, em média, os países do Mediterrâneo). Parece que não param de chegar as boas notícias: o turismo faz crescer todos os anos as nossas exportações de bens e serviços, contribui duas vezes mais para o PIB do que a média da Europa ou do mundo e emprega cada vez mais pessoas no sector dos serviços. Em 2015, a moda continuou: só nos primeiros sete meses, o turismo rendeu-nos 28 milhões de euros por dia (cada turista estrangeiro gastou 314 euros na sua estadia), mais 12,4% do que o ano anterior. Dizem as autoridades do turismo em Portugal (e dizem as ribeirinhas retroescavadoras do novo terminal de cruzeiros) que estes números ainda podem, vão e devem aumentar.
Com o país de carrinho, a economia moribunda, o défice descontrolado, a dívida externa impagável e o desemprego omnipresente, parece tolo argumentar contra uma actividade que mata tantos coelhos duma cajadada. Quem é que já se esqueceu de que ainda há pouco tempo se debatia a inevitabilidade da desertificação dos centros das cidades? Quem consegue ficar indiferente aos prédios de cara lavada, aos passeios recauchutados, às esplanadas animadas, às lojas que se atarefam para dar vazão a uma nova freguesia? Quem consegue duvidar dos benefícios de uma indústria que nos enche os bolsos e o orgulho sem pisar a risco a partir do qual se é chamado de xenófobo (ou, pior, de pedante) ao atravessar a rua? Porventura o senhor tem intenções de guisar a galinha dos ovos de ouro?
Por falar em galinhas: num Prós e Contras de há uns meses, discutia-se a questão do aumento do turismo em Lisboa. Dois trípticos apainelados de ilustres (responsáveis pelo sector no país, presidentes de associações de turismo regionais, representantes dos sectores do alojamento e da restauração, arquitectos, construtores e empreendedores de toda a espécie), cordialmente saudando-se de parte a parte, ensaiavam à vez redondíssimas intervenções que me fizeram esquecer, por momentos, que o nome do programa sugeria uma conjunção coordenativa. Foi preciso levantar-se da plateia (a meio do minuto 9) a senhora dona Filipa Gaspar, vendedora de castanhas do Rossio, para que ouvíssemos o único pensamento dissonante da noite. Começava assim: “Eu até acho isso tudo muito bonito”, e continuava, “mas qualquer dia não há lisboetas na Móraria, em Alfama... E os turistas vêm p’ra cá fazer o quê, ver-se uns aos outros?”. A risada geral! A magia da televisão em directo! Os espectadores, os comentadores – até a apresentadora –, todos se deixaram apanhar pelo rasgo de sabedoria popularucha daquela senhora. E eu, sozinho em casa e sem contracções abdominais, perguntava-me se me escapara o sentido de humor, ou se aquilo que via no ecrã era riso nervoso.
Na verdade, antes de lhe terem interrompido o raciocínio para dar a palavra ao empreendedor da cadeira do lado, a vendedora de castanhas do Rossio estava a tentar provar-nos o paradoxo do turismo. O seu discurso, e isto é um supônhamos, continuaria assim:
 
O turismo, aquela actividade que para Guy Debord é simplesmente a “circulação humana considerada como um consumo”, “subproduto da circulação das mercadorias” que não é mais do que a “distracção de ir ver o que se tornou banal”, tem na verdade um objectivo muito concreto e transparente: mercantilizar o território. É uma indústria que trabalha sobre um determinado território, sobre a sua geografia e a sua cultura, para o tornar num bem consumível. O problema reside no facto de este bem consumível nunca chegar a ser mais do que uma versão do território que pretende retratar – e não o território em si mesmo. Promete-se a cidade ao consumidor; dá-se-lhe um modelo da cidade moldado às suas expectativas. É a lei do mercado. Procura-se? Oferece-se.
O resultado disto é que os turistas que visitam uma cidade razoavelmente turistificada não vão encontrar a cidade que procuram, por muito que tentem. Nos restaurantes em que jantam, nas casas de fado em que entram, nas lojas de souvenirs em que compram produtos regionais típicos, nos bares em que dançam, até nas ruas que fotografam – é-lhes vedado o acesso a qualquer tipo de veracidade, porque tudo o que encontram são protótipos, objectos de consumo. Que ali estão para os satisfazer. Que de outro modo não existiriam. A cidade que o turista visita é uma representação de si própria, na qual todos os dias são dias da marmota, maquinalmente repetidos para uma massa amnésica de seres humanos. Entretanto, a cidade verdadeira – aquela que deu o sinal de partida para a sua própria mercantilização –, perdeu-se-lhe o rasto, já não mora ali.
É este o paradoxo do turismo: ele vive da realidade que mata. Portanto, meus queridos, eu até acho isso tudo muito bonito, mas o último a sair que apague a luz.
 




 
A galinha da vizinha é tão galinha como a minha

 
Tomemos Barcelona como exemplo. Crê-se que os seus habitantes aprenderam a lição – ou, pelo menos, uma lição. Assim à distância, é fácil de identificar os Jogos Olímpicos de 1992 como o início de um longo período de investimento coerente e planeado no turismo, nomeadamente através da divulgação para o estrangeiro da imagem de uma cidade com um património cultural riquíssimo, único, imperdível. A mensagem passou tão bem que, decorridos vinte e dois anos de rendas e preços de serviços a disparar, moradores fugindo das suas casas para a periferia, comerciantes homogeneizados e bairros inteiros descaracterizados, Barcelona elegeu para presidente de câmara a única candidata que se propôs a interromper a engrenagem e estancar a sangria, proibindo a construção de novos hotéis e o licenciamento de novos alojamentos turísticos.
E Lisboa? Bom, há que dizê-lo: era inevitável que isto acontecesse. Catarina Portas, puxando a brasa à sua sardinha (mas com um abanico suficientemente largo para avivar o meu lume), fala das circunstâncias que explicam o estado de emergência do comércio tradicional lisboeta, mas que podem anunciar ao mesmo tempo o estado de graça (ou desgraça) do turismo lisboeta. O “tufão”, como lhe chama, resulta da ocorrência simultânea de três condições climatérico-conjunturais, não necessariamente intempéries por si mesmas.
Começa com uma subida gradual do nível médio das águas do mar – ou, metáfora a martelo, do potencial imobiliário da cidade: os edifícios do seu centro histórico estavam (e estão ainda) maioritariamente degradados ou abandonados. Por isso, o mercado imobiliário lisboeta era (mas não será jamais) muito mais barato do que o de outras capitais europeias. Pechinchas para os investidores internacionais – que, sem demoras nem remorsos, sacam da carteira para as comprar, recuperar e vender, fazendo disparar os preços. E isto com a alta estima da câmara municipal, que finalmente descobre a solução para a “reabilitação urbana”.
Depois, o salseiro da nova lei das rendas, que põe fim a regras rígidas que impediam que os senhorios fizessem obras de conservação das suas propriedades, mas que abre a caixa de pandora dos despejos arbitrários dos arrendatários. “Hoje, com a lei em vigor, uma loja centenária pode ser despejada no espaço de poucos meses sem apelo nem agravo caso o proprietário invoque a realização de obras profundas no imóvel”, escreve a lojista, aludindo provavelmente ao número 95 da Rua do Alecrim, onde funciona desde 1916 a loja de cerâmica da Fábrica de Sant’Anna, agora intimada a sair para ali se construir mais um hotel.
Se juntarmos a isto a corrente de ar de uma imprensa internacional rendida às qualidades da cidade (em tudo exactas e verdadeiras, embora à boleia de modas e publicidade agressiva), imprensa essa que “descobriu uma cidade com história, uma situação invejável de praia à porta, charme a rodos a passear pelas ruas antigas semeadas de lojinhas com carácter, vistas deslumbrantes a cada esquina” (Portas dixit), não há como não duvidar da sustentabilidade do processo e da candura dos seus intervenientes.
O tufão, dito isto, parece-me uma metáfora particularmente feliz, porquanto pode ser provocado por causas humanas (cfr. “Aquecimento Global”) – e ninguém me convence de que não estávamos a merecê-lo.
 
 




Hoje há moelas, amanhã não sabemos

 
Aqui como em Barcelona, o turismo pode, quer e vai esvaziar a singularidade da cidade. Para um pescador em crise, tudo o que vier à rede é peixe. E o turismo não se faz de empreendedorismos lingrinhas – faz-se de multinacionais musculadas, mascaradas, sem ligação afectiva ou fiscal aos territórios onde investem. O seu único vínculo é o do cacau. Dá dinheiro? Compro. Até quando? Já cá não estarei para contá-la. Por isso, não só é normal que transformem as cidades onde investem, como é natural que as cidades se deixem transformar a troco de investimento.
É, mais uma vez, o mercado a funcionar. Imaginemos um arrendatário de um apartamento no centro da cidade, pagando há alguns anos uma imodesta renda de 500 euros por um T2. No momento em que é despejado, cercado de dinheiro por todos os lados e convivendo com uma procura de espaços para hotéis e arrendamentos temporários muito maior do que a sua oferta, é empurrado para a periferia porque a inflação não lhe permite encontrar outra renda acessível no seu bairro. E os proprietários, no meio disto? O fenómeno do turismo é de tal modo efervescente que aqueles poucos que resistem a vender o seu imóvel a um fundo de investimento (não há caixa do correio que não derrame berrantes brochuras de agentes imobiliários) acham ainda assim aliciante mudar-se de livre vontade para zonas limítrofes da cidade e arrendar a casa a turistas para receber algum livre de impostos.
O turismo cresce como um vírus – alastrando-se. Começamos com um hotel; no quarteirão do hotel, brotam como metástases os negócios que já sabem que se alimentam dos turistas ali hospedados. A casa de bifanas e sopas ao balcão aumenta a clientela se improvisar uma esplanada com tábuas de queijos e mojitos a seis euros; o minhoto reforma-se mais cedo se abandonar os rojões e servir uma típica paella; o letreiro da ourivesaria dá lugar ao toldo com camisolas da selecção; os pastéis de Belém vencem os folhados de Chaves por 2-1; até a casa de apostas aposta numa jovem de xaile ao ombro para apregoar um fado à entrada. No quarteirão ao lado, por contágio, constrói-se um novo hotel – e o sistema imunitário do bairro correndo atrás do prejuízo (melhor, do lucro), e assim sucessivamente.
Este vírus é, à primeira vista, apenas um incómodo para os lisboetas. Mas será também, e não a longo prazo, um incómodo para a própria indústria do turismo. Se há característica que os turistas que visitam Lisboa procuram, é a sua autenticidade – por outras palavras, a singularidade da sua identidade, única e inimitável. Este é, aliás, um atributo que a maior parte dos turistas valoriza nas suas viagens, e que costuma encontrar nos locais de turismo “alternativo”, longe das metrópoles mais visitadas (como Paris, Roma ou, mais recentemente, Barcelona), mas que em Lisboa tem um peso especial: cá, não temos os museus, os eventos, ou simplesmente a dimensão de outras cidades. O que vendemos é a nossa cultura – heterogénea, complexa, pessoal e intransmissível –, e a preços particularmente baixos.
O problema, portanto, está à vista de todos: neste hiperactivo processo de implantação do turismo no tecido social, cultural e económico de Lisboa, onde é que encontramos uma análise crítica, uma discussão produtiva ou um simples confronto que contribuam para a definição de uma estratégia de desenvolvimento sustentável do turismo? Conseguimos dar ouvidos à voz dissonante da vendedora de castanhas, ou andamos todos atrapalhados a aviar fregueses? Que faremos quando rebentar uma bolha que já representa 6% do PIB e 15% das exportações? Conseguiremos sobreviver ao consumo canibal? Certezas, só temos uma: quando a bolha rebentar, rebenta-nos nas mãos.
 


 


O amendoim e a roda dentada

 
Valerá a pena fazermos uma crítica radical do conceito de turismo, assente no seu paradoxo, hipoteticamente exposto pela vendedora de castanhas do Rossio? Sim, vale sempre a pena. Mas a crítica radical do turismo implica, como se vê, uma crítica radical do capitalismo – e para essa não contem comigo, não porque não a considere aliciante (e, de resto, pertinente), mas porque ocuparia algumas páginas marginais ao objecto desta reflexão. E porque, francamente, não me sinto habilitado a fazê-la. Vamos, portanto, admitir que: um, o turismo em doses moderadas é benéfico para a cidade; dois, o turismo de massas é indesejável mas inevitável. Daqui, procuremos algumas soluções para os seus funestos efeitos.
A solução que envolve menos esforço é a de esperar que o mercado se auto-regule. Mas será mesmo possível que o mercado do turismo, este tumultuoso e informe casal da oferta e da procura de produtos turísticos, se aperceba de que a única forma de salvar a sua relação é dar-lhe um tempo (sempre acautelando o superior interesse da cidade), antes que seja tarde demais? Antes que economistas com background em aconselhamento matrimonial se detenham nesta pergunta retórica, respondo eu que não, não é possível que o mercado do turismo se auto-regule: uma vez que consuma até à extinção as matérias-primas de Lisboa, sobra-lhe o resto do mundo para explorar.
Podemos, se quisermos muito, usar os poderes públicos para regular esta indústria, reordenando as prioridades de investimento e apostando num planeamento urbano que ponha em primeiro lugar a qualidade de vida de quem mora ou trabalha na cidade. No entanto, a heterorregulação tropeça nas rasteiras de duas sinistras e incógnitas entidades: o “dinheiro”, por um lado; a “opinião pública”, por outro. A primeira entidade esgueira os seus tentáculos em cada prédio em ruína; a segunda, desinformada e maniatada pelos tentáculos da primeira, mas seguramente ufanada pelo súbito interesse dos estrangeiros, olha com desconfiança qualquer ingerência das autoridades nos assuntos da cidade.
Talvez o segredo esteja em desencantar uma modalidade de regulação do sector que não accione os sensores de movimento dos alarmes destas entidades. Podemos contrariar o êxodo do centro da cidade com um sistema de quotas que garanta a justa proporção de habitação, turismo e serviços, impedindo a fixação de mais do que uma dada percentagem de alojamentos turísticos por freguesia, quarteirão ou metro quadrado. Podemos dar dinheiro e poderes a programas de desenvolvimento do comércio local e preservação das lojas e actividades que fazem parte do património cultural da cidade (o projecto “Lojas com História” foi apresentado pela câmara há quatro meses, mas desconhece-se a sua acção desde aí). Importam-se que cite de novo Catarina Portas, já que se trata de consultora deste projecto camarário? “Um turista estrangeiro vai à Luvaria Ulisses, no Carmo, e tira uma fotografia. Depois vai à H&M ou outra loja desse género. Se a Luvaria Ulisses não existir, para que vai o turista àquela zona?” A pergunta sugere, e bem, que a estratégia também pode passar por revelar às grandes cadeias internacionais a evidência de que é do seu interesse que as cidades onde conduzem os seus negócios não se descaracterizem por completo. Infelizmente, já percebemos que um amendoim não desalinha as rodas dentadas do capitalismo. (Este provérbio chinês fui eu que inventei.)
Podemos fazer tudo isto, ou nada disto, ou muito mais. Certo é que, cá para mim, ultrapassámos há muito o ponto de rebuçado, e nem lemos com atenção o aviso de quebrar em caso de emergência. Preferencialmente com dinheiros públicos, mas venham daí os dinheiros privados – é altura de interromper as máquinas, remediar os estragos e planear o futuro.
 
 


 


A oitava colina
Lembro-me como se fosse ontem. Subia uma ladeira de escadinhas quando avistei um caricato turista asiático. O sujeito, certamente sabedor de que era o “intruso” no bairro (não porque não se sentisse bem-vindo, mas porque o seu propósito quotidiano era o de explorar um itinerário alheio do qual não pretendia fazer parte, mas apenas recolher a memória), tentou disfarçar o embaraço de ser caçado a fotografar um estendal de furtivas ceroulas brancas, mais a respectiva proprietária que as estendia.
Lembro-me como se fosse ontem, mas foi há dez anos, durante o roteiro que preparei com o Bernardino para as nossas amigas estrangeiras. Hoje, se quiséssemos repetir a delicadeza de anfitriães, precisaríamos da agilidade da primeira juventude para escaparmos ilesos ao fogo cruzado das máquinas fotográficas. Fosse como fosse (e aqui repousa o busílis da tese), hoje, talvez não repetíssemos aquele roteiro. Talvez nos envergonhássemos do que fora feito de Lisboa e evitássemos os trilhos e acepipes que lhe deram a fama.
De Alvalade a Xabregas, há uma colina por inventar. Foi para essa colina que a Maria e eu viemos morar, encerrado um capítulo de dois anos naquela densa colina primordial. Se foi da carta de despejo que recebemos no correio, se foi do teste de gravidez que encontrámos no lavatório, acho que nunca saberemos.

 
Referências falhadas
 
Lisboa, não sejas francesa é uma marcha celebrizada por Amália Rodrigues, com letra de José Galhardo e música de Raúl Ferrão. Fado xenófobo e levemente machista.
“Deus é um cara gozador, adora brincadeira” (“pois, p’ra me jogar no mundo, tinha o mundo inteiro”) é um verso do samba Partido Alto, de Chico Buarque. Sobre uma visão particular do povo brasileiro.
“É querer fazer arroz de cabidela” (“sem frango, nem arroz, nem a panela”) é um verso da canção Vim aqui falar, de Sérgio Godinho. Sobre o falhanço do socialismo no pós-PREC.
As galinhas, as moelas e os amendoins são termos sintomáticos de apetite.
 
 

 
Bibliografia
 
BRAGA, Isabel, “A Baixa de Lisboa está a mudar de rosto”, Junho de 2013, O Corvo
BECKER, Elizabeth, “The Revolt Against Tourism”, Julho de 2015, The New York Times
CARVALHO, Ricardo, “Learning from Barcelona”, Junho de 2014, Público
COLAU, Ada, “Mass tourism can kill a city – just ask Barcelona’s residents”, Setembro de 2014, The Guardian
DUARTE, P., “Notas para uma crítica radical do turismo” I, II, III e IV, Fevereiro de 2014, L’Obéissance est Morte
FERNÁNDEZ, Eduardo Chibás, “Bye Bye Barcelona” (filme), 2014
NOGUEIRA, Regina, “Lisboetas sentem-se cada vez mais acossados pelos turistas”, Junho de 2015, Público
PALMINHA, Joana, “Desenhar uma estratégia para lá do turismo de sempre”, Outubro de 2015, Observador
PINCHA, João Pedro, “Querida, arrendei a casa a turistas (e a cidade nunca mais será a mesma)”, Agosto de 2015, Observador
PORTAS, Catarina, “O tufão”, Janeiro de 2016, Diário de Notícias
SOARES, Marisa, “Porta sim, porta não, a Baixa está entregue aos turistas”, Novembro de 2015, Público
 
João Berhan
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Muito bem. Pergunta-se no texto o que é que os turistas irão procurar no carmo quando a luvaria ulisses deixar de existir. Para além de todas as considerações de bom senso do post, eu acrescentaria a seguinte :

    Neste momento, uma parte substancial, e provavelmente mensuravel, dos turistas que se deslocam a Portugal vêm ca por exclusão de partes, porque não podem ir ao Egipto, nem à Tunisia, nem a Marrocos, etc. Portanto a resposta literal à pergunta é que o turista que hoje faz entrar divisas vai ao carmo à procura de marraqueche e, se não tivermos cuidado, ele até nem se vai importar que se construa uma marraquexe no carmo.

    Como é obvio, isto acaba daqui uns anos e então vira a ressaca. Restar-nos-a um consolo : podermos mostrar aos estrangeiros genuinamente interessado nas idiosincrasias propramente lusas, mais uma triste consequência da nossa patega, cretina, provinciana, mas pelos vistos eterna, falta de previsão e de discernimento...

    Boas

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