quinta-feira, 7 de julho de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 47, # 48 - SONNY ROLLINS

 

 
Fotografia de Francis Wolff
 

 
Sabe lá ele quando começou. Aos 16 anos já não era a brincar que se irmanou com Jackie McLean, Kenny Drew e Art Taylor, todos da mesma mocidade, para abrilhantarem os saraus da escola. As vocações prematuras, se lhes cai o êxito em cima, tendem a acabar depressa e mal. Não foi o caso de Sonny Rollins, o derradeiro semi-deus do jazz, que a tudo sobreviveu, a gerações e a géneros, e na Primavera de 2016, 65 anos depois da sua primeira gravação, dá à estampa o quarto tomo dos seus “Roadshows”, que sob o título “Holding the Stage” compila actuações ao vivo, desde 1979 até 2012. Veredicto unânime: a chave da Arca da Aliança ainda é ele que a guarda – aos 85 anos.
Foi muito sôfrega a década de 50, talvez a mais empolgada do jazz. Em 1954 os 28 anos de Miles Davis insuflavam um prestígio que transbordava a sua verdura, auspiciando qualquer coisa de grandioso. Dele se abeirou um jovem 4 anos mais novo, o que nestas idades corresponde quase a um ciclo de vida, com três composições: "Oleo", "Airegin" e "Doxy". Num ápice é gravado e lançado o disco “Miles Davis With Sonny Rollins” que em 1957, já Miles e Rollins eram luminárias, foi consolidado no álbum “Bags Grooves”. Os temas vieram a cristalizar como imortais e deste estofo se fazem as lendas.
 
 

Saxophone Colossus
1956 (2014)
Concorde Music Group
Sonny Rollins (saxofone tenor), Tommy Flanagan (piano), Doug Watkins (contrabaixo), Max Roach (bateria).
 
Num período mais curto do que uma presidência, Sonny Rollins ascende de escudeiro a campeão. Só no ano de 1956 oficia um triângulo de ouro de obras que não há outro modo de as reputar senão de nucleares:
Em Janeiro e Fevereiro é ele o diplomata que acorda a aliança entre o trompetista Clifford Brown – outro nascido em 1930, mas que as parcas nos roubaram prematuramente – e o baterista Max Roach no supino “Clifford Brown and Max Roach at Basin Street”.
Em Maio grava “Tenor Madness” com um noviço que topara na sua passagem pelas formações de Miles e Monk. O jazz tinha ganho o hábito de ouvir os tenoristas de cada geração à maneira dos rounds do boxe: Coleman Hawkins, o abrasador, versus Lester Young, o ondulante; Dexter Gordon neste canto e Stan Getz no outro. Sonny Rollins não só arriscou como aumentou a parada convocando John Coltrane a medir-se com ele. O futuro separá-los-ia, como dois estrangeiros de vocabulário de tal modo distinto que inviabilizaria qualquer diálogo, mas aqui, no transcurso dos 12 minutos da faixa “Tenor Madness”, que dá nome ao disco, ambos se aliam em deturpar o jogo, conferenciando mais do que concorrendo – não eram planeta e lua, era a alvorada de duas estrelas.
Em Junho o caso de Sonny Rollins fica muito sério. Com “Saxophone Colossus” salda todas as promessas: patenteia uma plena maturidade e exibe uma personalidade musical rematada. E isto, ao contrário do que a jactância do titulo poderia augurar, asseverando um estilo sem saliências, nem a veleidade e a extravagância próprias da juventude que se quer afirmar contra o mundo.
Sonny Rollins é o Howard Hawks, o Mies Van den Rohe, o Steinbeck, o Barnett Newman do jazz. Em vez da explosão (Charlie Parker) ou da exploração de todas as variáveis possíveis como o rato num labirinto (John Coltrane), cada frase do saxofone tenor de Rollins é indubitável e incisiva, sem pontas soltas, expelida como se fosse uma evidência à espera de ser proferida. A Coleman Hawkins vai buscar a acutilância e a robustez, de Lester Young herda o ar olímpico de que aquilo sai sem esforço, de Dexter a verve e de Getz… bom, de Getz nada, sem desprimor para o próprio... “Saxophone Colossus” abre com o tema “St. Thomas”, ao género de calipso, como um manifesto: progressões harmónicas? Com certeza, sem elas não há jazz, mas “it’s melodics, stupid…” – é uma cápsula que encerra o ADN de Sonny Rollins.
Estava tudo dito? Não, não estava, ainda vinha aí “Way Out West” gravado menos de um ano depois, já em 1957. A capa do disco está entre as mais bizarras do jazz: Rollins, vestido no trinque de buckaroo, de peito feito e saxofone na mão como um revólver, a posar no deserto, com cactos, caveira de boi e tudo… Muito devem ter ele e o fotógrafo William Claxton gozado com esta maluquice a comemorar primeira visita de Rollins ao Oeste. O que está por detrás desta testada não é menos arrojado: um trio de saxofone sem piano? Coisa nunca dantes perpetrada… O baterista Shelly Manne era “angelino” de adopção e instituíra-se como um prumo da cena da “tinsel town”; Ray Brown estava de passagem pela cidade como acompanhante de Oscar Peterson. Quem sabe se não terá sido da atmosfera relaxada de Los Angeles – que na verdade é luva de cetim solapando punho de aço – nos antípodas do ambiente febril e fabril de Nova Iorque, que os terá inspirado a pegarem em dois temas de filmes western “I’m an Old Cowhand” e “Wagon Wheels” e com eles dar o tom para uma música a um passo de descambar na paródia mas sendo, de facto, uma apropriação irrepreensível pelo jazz de acordes que lhe são alheios, tão certeira como um tiro de John Wayne.
Decidir a preferência e a importância entre “Saxophone Colossus” e “Way Out West” – e para quê escolher se se pode ficar com os dois? – é questão de moeda ao ar.
Muita água correu desde então sob as pontes e na primeira de três licenças sabáticas foi literalmente debaixo delas que Sonny Rollins passou uma temporada a tocar – retomaria funções públicas com o álbum fielmente intitulado “The Bridge” (1962). Doravante teria um percurso avarandado, donde se debruçava sobre o que ia passando no caudal do jazz, arredio a mergulhar nele de corpo inteiro. Conviveu uns anos de casa e pucarinho com o free jazz: três crias na Impulse!, das quais “East Broadway Run Down” (1966) foi a que vicejou melhor até aos nossos dias. Durante a década de 70 molhou a sopa no jazz de fusão sem glória nem bronca e que atire a primeira pedra quem, tendo passado por ela, não sofreu a tentação do baixo e do piano eléctrico. Outros brotavam e soçobravam, lideravam, dividiam, inovavam e recuperavam; Sonny Rollins entrava e saía de cena, às vezes fazendo figura de misantropo noutras de um áugure que se escusa a revelar tudo o que sabe. Acerca dele começou a propagar-se a noção – tão legendária quanto real – de que havia dois Rollins: o dos discos, outro dos concertos. Certo era que evitava os estúdios, cujos preciosismos sonoplásticos o desgostavam e cujo recato sentia como fúnebre. Todavia nas suas actuações ao vivo nada estava garantido e só é possível comparar a sua conduta à da tradição tauromáquica: se o “duende” tomasse conta dele a sessão seria arrebatadora, se não, deixava andar, conformado com a má sina do dia.
 

 
Without a Song, the 9/11 Concert
2005
Milestone - 93422
Sonny Rollins (saxofone tenor), Clifton Anderson (trombone), Stephen Scott (piano), Bob Cranshaw (baixo eléctrico), Perry Wilson (bateria), Kimati Dinizulu (percussão).
 
No imediato rescaldo do 11 de Setembro de 2001 os repórteres predavam as ruas limítrofes dos escombros World Trade Center em busca de aflições que pudessem melodramatizar a catástrofe. Por sorte, no raio de visão de um deles despontou o tipo ideal: um velho negro de barba branca, jungindo um saco de plástico com os parcos haveres e, pormenor comovente, segurando um saxofone debaixo do braço. Na brevíssima entrevista o tom do repórter foi o de comiseração e paternalismo que é hábito da profissão dedicar aos desvalidos com quem se quer mostrar simpatia. Ignorava ele que se tratava de Sonny Rollins. Dizia muito do estado do jazz, quanto à sua popularidade no dealbar do século XXI, que um dos seus maiores ídolos fosse, aos 71 anos, desconhecido de cara e, provavelmente, de nome.
Quatro dias depois, ainda sem casa nem bens pessoais, Rollins daria um concerto em Boston publicado em 2005 sob o título “Without a Song, the 9/11 Concert”. Mal habituada – ou melhor, demasiado bem habituada, porque aos heróis exige-se que deem sempre um pedaço de céu – a crítica venerou mais do que amou a obra, detectando o dilema do costume: fora uma noite de música impecável, porém cursiva, sem rasgos excepcionais de criatividade. O próprio Sonny Rollins diria mais tarde que não se lembrava de nada. 
Mas foi o público quem 4 anos após o horror do 9/11 reconheceu e sentiu nesta obra a expressão genuína daqueles dias dolorosos. E assim é que escutando “Without a Song” com os critérios da emoção mais despertos do que os do intelecto, se torna palpável o pathos do momento onde até os defeitos comovem. O disco ganhou pregnância na memória colectiva andou de mão em mão, tanto como andará um disco de jazz hoje em dia, e, o que é meramente simbólico, mas por isso mesmo não despiciendo, à faixa “Why Was I Born?” foi atribuído um Grammy com ovação de pé. Um ano depois, a revista JazzTimes dá a mão à palmatória e, sem mudar uma linha da sua crítica ao valor intrínseco da obra, porque não era disso que se tratava, reconheceu-lhe o merecimento que havia ignorado.
De “Without a Song” em diante, Sonny Rollins ganhou novo fôlego, ou foi-lhe dada uma nova atenção que na sistemática do jazz o retirou da classe dos dinossauros e recolocou na dos mamíferos vivazes. Seguiu-se a ainda inconclusa série de “Roadshows”.
Sonny Rollins: aquele que já é imortal insiste em continuar a sê-lo.
 
 
 
 
José Navarro de Andrade
 
 

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