quinta-feira, 21 de julho de 2016




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 84 - DAVID MURRAY

 
 

 
 
Passeie o veraneante pelas frescas ruas de Sines e poderá ter a sorte de topar David Murray. Tão bem foi tratado há uns anos pelo Festival de Músicas do Mundo, que sinaliza a vila alentejana no roteiro mundial dos festivais verdadeiramente estimulantes, que decidiu comprar por lá uma casa de vilegiatura. Mas não se deixe o forasteiro iludir com o ar decerto descontraído de Murray, pois diante de si tem um dos mais intensivos e prolíficos músicos de jazz das últimas décadas: 130 discos publicados em 40 anos de carreira (só na década de 90: 39 em nome próprio, 11 como cooperante e 7 sob a égide do World Saxofone Quartet) não desmentem essa reputação. 
Todas as peças da discografia de David Murray são de valor igual? Claro que não. Umas serão ensaios e esboços, outras curiosidades resultantes de uma pesquisa, mas até estas, se ouvidas como episódios de um enredo em progresso têm o sabor de uma fatia de bolo. A obra de Murray é, assim, comparável à de certos poetas, que significam pelo todo da sua ecologia estética do que pelos primores que nela se incubam.
Cada um terá que se entender com o período histórico em que os azares o colocaram; a David Murray coube despontar na década de 80, quando as hostes do jazz ficaram tripartidas, com o free para cá, o jazz rock, para lá e o neo-classicismo de Marsalis a vingar pelo centro. O que fez ele? O mesmo que Reth Butler: não estar com ninguém, nem contra todos. Desalinhar-se, portanto, da maneira mais complicada, absorvendo destemidamente todas as influências. É de crer que não haja género que Murray não tenha tentado e absorvido, assimilando à sintaxe do jazz qualquer vocabulário musical com que deparasse. Um exemplo: em 1996 traduziu com o seu octeto composições dos Grateful Dead, em “Dark Star”, ano em que também homenageia o pianista Don Pullen e grava “Fo Deuk Revue” com uma falange de músicos e cantores senegaleses.
 
 
Like a Kiss That Never Ends
2001
Justin Time - JUST 1532
David Murray (saxofone tenor, clarinete baixo), John Hicks (piano), Ray Drummond (contrabaixo), Andrew Cyrille (bateria).
 
 
Intérpretes que fizeram história ao fenderem o núcleo do jazz, houve uns tantos, até porque a tendência dominante é a de evocar os sísmicos, os que revolveram a paisagem do género, os inovadores que mudaram os postulados de lugar. Mas nunca ninguém procurou a fusão nuclear no jazz com tanta perseverança como David Murray. Interpolando o saxofone tenor com o clarinete baixo – o ar e o fogo – ele já navegou por todas as latitudes e longitudes do planeta jazz: quarteto, octeto, big band, instrumentações clássicas ou inusitadas, trios de órgão, ritmos latinos e estruturas harmónicas ásperas – Murray fez… Que os dois Colemans, o Hawkins e o Ornette, bem mais separados do que por uma distância geracional, se possam encadear no intervalo de uns compassos, isso só é possível sem disparate na cabeça e nos sopros de Murray. E digam lá de outro capaz de sinapses entre os primórdios de Sidney Bechet e as disjunções de Albert Ayler? Fique-se com o convincente epítome de Gary Giddins: “quanto mais pede emprestado, mais individualizado ele soa.”
Vários audazes debalde tentaram discriminar uma obra que relevasse sobre as demais na discografia de David Murray. Oiça-se então “Like a Kiss That Never Ends” na conta de amostra da dinâmica e do estilo de Murray. “Um bom conceito seria não ter conceito – apenas escrever bons temas e tocá-los.” E se bem o disse ele, em detrimento de uma época que mais depressa parece apreciar o meta-jazz do que o jazz-chão, à semelhança de outras desgraçadas artes, melhor o fez aqui.
Com Murray formam quadrado 3 gatos velhos – no mínimo mais velhos do que ele 10 anos – com unhas de sobra para qualquer guitarra: o pianista John Hicks, discreto co-piloto de muita e vária gente, desde Betty Carter a Mingus, atleta do ritmo e da resposta pronta; o contrabaixista Ray Drummond, asa de Hicks em muitas gravações, dedos de manteiga ao serviço de um sentido melódico classicista; e o baterista Andrew Cyrille, que baralhou muitas cartas na mesa de Cecil Taylor. Sem uma tal infusão de veterania o polimórfico repertório de “Like a Kiss That Never Ends” redundaria num ecletismo sem nexo. Com esta gente é uma viagem onde à esquina de cada compasso toca-nos uma entusiástica, vulcânica e, acima de tudo, prazenteira surpresa.
 
 
José Navarro de Andrade
 

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