terça-feira, 19 de julho de 2016

No Boé, a 24 de Setembro de 1973.


 
 

 
1.     O PAIGC avança para a independência unilateral
A intenção do PAIGC de declarar a independência unilateral foi profusamente noticiada pela comunicação social a partir de uma conferência de imprensa em Argel, a 6 de Novembro de 1972. Amílcar Cabral regressava da sua intervenção na IV Comissão e das audições pelo presidente da Assembleia Geral e pelo Secretário-Geral da ONU (beneficiando já da qualidade de “observador”, que o PAIGC alcançara na Comissão de Descolonização), e do seu doutoramento honoris causa pela Universidade Lincoln, na Pensilvânia. Referiu-se ao êxito da recepção na ONU, ao “plano de paz de Senghor”, à disponibilidade para negociar com o Governo português, à próxima reunião do Conselho de Segurança e à convocação da recém-eleita Assembleia Nacional Popular (ANP) da Guiné – que previa se realizasse no final do ano ou, «o mais tardar, em princípios de Janeiro de 1973» [1].
Na dita reunião do Conselho de Segurança, pela primeira vez o PAIGC (embora, a título individual, tal como a FRELIMO e o MPLA) participou nos trabalhos, onde, por unanimidade, depois de muito negociada, foi aprovada a resolução S/322, de 22 de Novembro – que condenava o colonialismo português e, na parte dispositiva, apelava a imediatas negociações com não especificados “interlocutores válidos”. Avizinhava-se uma tempestade diplomática para um Governo português cada vez mais isolado[2].
 Além disso, em fins de 1972, o conflito militar agravara-se e o PAIGC preparava o ataque a Guilege, centro nevrálgico da presença portuguesa no sul do território, passando a dispor também dos mísseis terra-ar Strella. Amílcar Cabral conseguira obter significativo material militar em Novembro de 1971, aquando da sua participação no 44.º aniversário da Revolução Soviética. O seu fornecimento fora acelerado após a visita, em 1972, de dois generais soviéticos à fronteira sul da Guiné para apreciar a situação militar. O relato sobre a concessão destes mísseis  feito pelo “senior specialist” das colónias portuguesas no “Departamento Internacional”, Petr Yevsukov, demonstra a importância que o PAIGC alcançara e merecia nas mais altas instâncias da União Soviética[3].
  Em 1973, as forças portuguesas, além das escassas cidades, apenas controlavam as populações que habitavam junto aos seus aquartelamento e nos reordenamentos e Bissau tornara-se o último reduto[4]. Apreciando as possibilidades do inimigo e a provável evolução da situação o Comando-Chefe das Forças Armadas portuguesas da Guiné concluiu que se entrara num «novo patamar da guerra»[5]. A intensificação da luta e o empenhamento de meios mais eficientes pelo PAIGC visaria criar uma situação militar crítica que favorecesse o processo político[6]. Assim, previa-se, para o futuro próximo e imediato, um «agravamento progressivo e rápido de uma situação cuja súbita deterioração recente parece não deixar margem para dúvidas», destinada ao «estabelecimento de uma zona própria no interior», como território libertado a utilizar para o desenvolvimento de acções de tipo clássico, onde procederia à «próxima declaração de independência do novo ‘estado’ que, dispondo de Território, População e Governo próprios, alcançou todos os atributos de soberania»[7].
 
2.     Os últimos actos de Amílcar Cabral
 Em resumo, estava tudo preparado. A questão da independência foi o tema central da Mensagem de Ano Novo, de Janeiro de 1973, que ficou conhecido como “o testamento político” de Amílcar Cabral. O planeamento das variadas acções que caberiam à ANP, ao PAIGC e, muito particularmente, à OUA constam do último relatório que elaborou para apresentar ao Conselho de Ministros[8]. Esteve ainda presente nessa reunião, realizada de 8 a 13 de Janeiro em Acra, durante a qual a OUA deliberou apoiar, explicitamente, os planos do PAIGC de avançar para a convocatória da ANP que proclamaria o Estado da Guiné[9]. 
Após o assassinato de Amílcar Cabral, o calendário foi alterado mas a convocação da ANP (embora sem indicação de data e local) será confirmada pelo II Congresso, realizado de 18 a 22 de Julho de 1973.
 
3.     O sim da Argélia
Entretanto, o PAIGC procurava garantir antecipadamente um número de reconhecimentos de Estado suficiente para a entrada imediata na OUA e em alguns organismos internacionais. A Argélia era o centro das diligências não só pela sua história e pelas ligações aos países árabes como pelo apoio multímodo e decisivo. Para ultimar (e ratificar) a intenção de proclamar unilateralmente o Estado, Aristides Pereira e Luís Cabral deslocaram-se expressamente a Argel. Primeiro reuniram com o Presidente Houari Boummediene – com o qual os problemas foram «abordados na sua generalidade» e remetidos para uma discussão mais aprofundada com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Abdelaziz Bouteflika. Este concordou com a oportunidade do projecto, disponibilizou os ensinamentos proporcionados pela experiência do “Governo Provisório” argelino e prometeu a mobilização da sua diplomacia no sentido de obter o maior número de reconhecimentos após a Proclamação. A única dúvida que levantava decorria da aparente contradição de o PAIGC – criado para lutar pela independência da Guiné e Cabo Verde – se limitar à proclamação do Estado da Guiné-Bissau, omitindo Cabo Verde. Luís Cabral limita-se, a propósito, a acrescentar que esta última discussão, apesar de muito demorada, foi «altamente interessante e útil»[10].
 
4. A cerimónia    
Inicialmente, decidira-se realizar a cerimónia no Cubucaré em 19 de Setembro, festejando o 17.º aniversário da fundação do PAIGC. Dois factores levaram a alterar o local (deslocando-o da “frente sul” para a “frente leste”) e, consequentemente, a data: os bombardeamentos da força aérea portuguesa (concentrados na fronteira e também na ilha de Como) e a ruptura de relações diplomáticas entre as Repúblicas do Senegal e da Guiné (que, à última hora, dificultou a presença de representantes e jornalistas).
Finalmente, a sessão da 1.ª ANP realizou-se na mata, na colina sobranceira à tabanca de Lugadjole, na região do Boé, para onde se haviam transferido deputados, quadros e forças militares do PAIGC e uma quinzena de jornalistas e convidados[11]. Durante as duas reuniões da ANP, a programação foi cumprida, com formalismo e emoção, embora o sistema de defesa anti-aérea (mísseis Strella) não estivesse funcional e o temor de ataques aéreos fosse constante. 
A primeira reunião realizou-se no domingo à tarde, 23 de Setembro, com abertura por Aristides Pereira, secretário-geral do PAIGC, eleição da Mesa da Presidência, ensaio da cerimónia e um resumo do texto da Constituição. 24 de Setembro foi o dia grande e cheio. Na presença dos 120 deputados, sob presidência de Nino Vieira, os trabalhos abriram de manhã cedo pela leitura da Proclamação do Estado da Guiné-Bissau. Muito aplaudida, seguram-se-lhe o hino e um desfile militar. Depois, foram aprovados (também por “braços levantados” e aplausos) a Constituição da República da Guiné-Bissau e quatro diplomas complementares: Lei n.º 1/73 (vigência transitória da lei portuguesa), Lei nº 2/73 (composição do Conselho de Estado), Lei nº 3/73 (composição do Conselho dos Comissários de Estado) e Lei nº 4/73 (homenagens a Amílcar Cabral). Não houve qualquer discussão, nem assinatura.
Seguiram-se vários discursos e a retransmissão da “Mensagem de Ano Novo” (gravada) na qual, em Janeiro, Amílcar Cabral expusera os traços fundamentais da declaração de independência. A sessão terminou, a meio da tarde, com uma festa popular.
Filmada e fotografada, a cerimónia foi divulgada, a partir de 26 de Setembro, pelas agências noticiosas, pela Rádio Conacri e pela imprensa senegalesa. À notícia intitulada «os nacionalistas proclamam a República nos territórios que controlam», o jornal Le Monde, de 27 de Setembro, acrescentava um comentário premonitório e acertado: o nascimento do novo Estado iria criar «um delicado problema de direito internacional». Os textos foram imediatamente tornados públicos e, mais tarde, publicados oficialmente[12]. Apesar da grande importância simbólica desta sessão da ANP, o PAIGC manteve na íntegra o seu papel “força, luz e guia” e, a partir de agora, também “governo central”[13].
 
5.     Os dias seguintes
Entrevistado “a quente”, em Dacar, Victor Saúde Maria expôs os traços gerais da política externa: relações Estado a Estado com os países que procedam ao reconhecimento; sede no interior do território, onde se instalariam o Conselho de Estado e o Conselho dos Comissários de Estado; a questão da capital resolver-se-ia posteriormente visto que eram controladas vastas regiões, apesar de o PAIGC não encarar o controlo das cidades[14]. Efectivamente, pouco depois, o PAIGC iniciou a construção em Madina do Boé de uma “capital para o futuro”, com cabanas, palhotas e pré-fabricados, onde se instalariam alguns titulares dos órgãos executivos e apresentaram credenciais alguns embaixadores.
Logo após a proclamação, Mário Pinto de Andrade esboçou um esquema das suas consequências, distinguindo vários planos:
a)- no plano interno: (i) consolidava a unidade nacional e reforçava a confiança (quanto aos militantes comprometidos na luta armada e às populações das áreas libertadas); (ii) era um poderoso encorajamento (para as os militantes e populações de Cabo Verde); (iii) constituía um reforço da coesão (para a direcção político-militar do PAIGC);
b)- no plano das relações com os países fronteiriços: poderia tornar-se, eventualmente, num novo factor de segurança;
c)- no plano africano: além das manifestações de solidariedade dos membros da OUA, proporcionava a aplicação dos seus compromissos de apoio militar;
d)- no plano internacional: (i) quanto à ONU, seria uma ocasião para declarar a ilegalidade da presença colonial portuguesa e teria ainda uma série de outras implicações; (ii) quanto aos aliados na NATO: isolaria o governo português;
 e)- no plano das relações de força com o inimigo directo: tornava viável um Dien-Bien-Phu português[15].
Em Novembro, Luís Cabral realizou uma visita oficial a Dacar, assinou um acordo de cooperação e conseguiu reforçar o apoio do Governo senegalês. Em Janeiro de 1974, em Zinguichor, a uma quinzena de quilómetros da fronteira, em extensa entrevista, referiu que o executivo funcionava no interior do país, onde ele próprio, muitas vezes, ia presidir ao Conselho de Estado; era verdade que no tipo de guerra travada também as forças portuguesas se deslocavam por quase todo o território, mas havia vastas áreas que não dominavam; pelo contrário, ia-se construindo um verdadeiro Estado, que não era mero meio de combate no terreno diplomático, antes dispunha de forças armadas, administração e aparelho judicial; Luís Cabral mostrou-se também convicto que mais tarde ou mais cedo o governo português aceitaria sentar-se à mesa de negociações[16].
 
6.     O futuro presente
Na concepção de Amílcar Cabral, a quem a ANP atribuiu o título de “Fundador da Nacionalidade”, a proclamação era um momento transcendente pois da situação de colónia dispondo de um movimento de libertação nacional, a Guiné-Bissau passava à situação de um país dispondo do seu Estado e tendo uma parte do seu território nacional ocupado por forças armadas estrangeiras. Foi também essa a posição adoptada pela OUA e pela ONU.
No terreno, a guerra prosseguia e, do lado português, o general Bethencourt Rodrigues tentava definir e impor uma nova estratégia militar, assente na retracção e concentração do dispositivo militar e na preparação da defesa anti-aérea.
 Entretanto, regressado a Lisboa, o general Spínola teorizava a sua experiência no livro Portugal e o Futuro, e, em Bissau, nascia o Movimento das Forças Armadas (MFA).
 
 
António Duarte Silva
 
 


[1] Cfr. “Apontamentos para a conferência de imprensa em Argel” (manuscrito), in Arquivo Amílcar Cabral – Fundação Mário Soares, 04. PAI/PAIGC – Entrevistas/Imprensa, Pasta: 07197.166.055, e Julião Soares Sousa, Amílcar Cabral (1924-1973) – Vida e morte dum revolucionário africano, Edição do Autor, Coimbra, 2016, p. 515. Também Bruno Crimi, “Amilcar Cabral prêt pour l’indépendance”, in Jeune Afrique, n.º 619, de 18 de Novembro de 1972, o editorial de Simon Malley e a entrevista de Aquino de Bragança a Amílcar Cabral, in Afrique-Asie, n.º 18, de 27 de Novembro de 1972, pp. 25/26.
[2] Aquino de Bragança,”Après le vote du Conseil de Sécurité, le Portugal isolé”, in Afrique-Asie, n.º 19, de 11 Dezembro de 1972, pp. 10/12.
[3]  Ver Natalia Telepneva, Our Sacred Duty: The Soviet Union, the Liberation Movements in the Portuguese Colonies, and the Cold War, 1961-1975, tese de doutoramento, London School of Economics and Political Science, Outubro, 2014, pp. 213 e segs.
[4] Daniel Filipe Franco Gomes, Evolução do confronto estratégico durante o conflito na Guiné (1956-1974), dissertação de mestrado em História do Século XX, Lisboa, FCSH/UNL, 2008, pp. 241 e 247.
[5] Declarações iniciais do General Comandante-Chefe, António de Spínola, in Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné, Acta da reunião de comandos realizada em 15 de Maio de 1973, Bissau, Maio de 1973, pp. 2/3.
[6] Intervenção do Comandante-Adjunto Operacional, brigadeiro Leitão Marques, ibidem, p. 16.
[7] Intervenção do Chefe de Repartição de Informações, Tenente-Coronel Artur Baptista Beirão, ibidem, Anexo “A” – Análise da situação do Inimigo, pp. 5 e 9.
[8] Amílcar Cabral, “Situação da Luta do PAIGC em Janeiro de 1973” e “Memorando do PAIGC à IX Conferência da OUA”, in Arquivo Amílcar Cabral – Fundação Mário Soares, 07. Organizações Internacionais, OUA, Pasta: 04602.079 e Pasta: 04603.001, respectivamente.
[9] Juliâo Soares Sousa, op. cit., p. 521.
[10] Luís Cabral, Memórias e Discursos, Fundação Amílcar Cabral/Fundação Gulbenkian, 2014, pp. 115/117.
[11] Sobretudo, o boletim de informação PAIGC Actualités, n.º 54, Outubro de 1973, Luís Cabral, “O sonho de Amílcar Cabral”, in Visão, de 9 de Outubro de 1972, pp. 92/93, Bruno Crimi, “Naissance d’un État” e Jean-Pierre N’Diaye, “A l’aube en pleine brousse”, in Jeune Afrique, n.º 666, de 13 de Outubro de 1973, pp. 24/30, os artigos in Afrique-Asie, n.º 41, de 15 de Outubro de 1973, a edição da Présence Africaine, n.º 88, 1973 (separata), Halim Mokdad, “Guinée-Bissau: Un tournan décisif dans la lutte de libération”, in El Moudjahid, de 29 de Setembro de 1973, e José Manuel Rocha, “Os camaradas estão a perguntar se é assim que se toma a independência", in Público, de 24 de Setembro de 2013.
[12] Todos eles, no Boletim Oficial, n.º 1, de 4 de Janeiro de 1975.
[13] Por exemplo, Rosemary E Galli e Jocelyn Jones, Guinea.Bissau, Politics, Economics and Society, Londres/Boulder, Pinter/Rienner, 1987, p. 67.
[14] Jean Pierre N’Diaye, “Avec un Ministre de Guiné-Bissau”, in Jeune Afrique, n.º 666, de 13 de Outubro de 1973, p. 6.
[15] “Notas para a Simon Malley”, Arquivo Mário Pinto de Andrade/Fundação Mário Soares, 04. Lutas de Libertação/02. Guiné e Cabo Verde/Docs PAIGC/Organização do Estado, Pasta: 04360.004.019.
[16] “Guinée-Bissau: un an après l’assassinat d’Amilcar Cabral”, in Le Monde, de 19 de Janeiro de 1974, p. 10.

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