domingo, 3 de julho de 2016

Lisboa, 1940.

 
A. J. Liebling (1904-1963) 

 
Abbott Joseph «A. J.» Liebling (1904-1963) foi um dos mais conhecidos repórteres da revista New Yorker, onde começou a escrever em 1935, e aí permaneceu até à morte.
         Nesta nota, enviada de Lisboa em 24 de Junho de 1940, e publicada na New Yorker na sua edição de 6 de Julho do mesmo ano, Liebling dá conta da atmosfera vivida na capital portuguesa após a invasão de França pelos exércitos nazis e, bem assim, da tensão existente no país e nas comunidades estrangeiras que aqui residiam ou se encontravam de passagem.
         À semelhança do que ocorreu com textos aqui publicados (de Hugh Trevor-Roper ou Mary McCarthy), a tradução da reportagem de Liebling não pretende ser particularmente rigorosa ou, digamos assim, «profissional».  
 
 

Lisboa, 1940

 
 
Carta de Lisboa
24 de Junho 1940 (por Clipper)
 
         Actualmente, Lisboa é das poucas cidades europeias confortáveis que restam, mas paira no ar alguma inquietação. Os acontecimentos em França refrearam o ímpeto dos preparativos da comemoração dos 800 anos da independência e da «libertação do jugo espanhol» que pôs termo a uma união temporária com o país-vizinho. Pacíficos por natureza, os portugueses não podem deixar de pensar que pouco conseguirão fazer para evitar o regresso do jugo espanhol, caso Franco assim o deseje, e esperam que ele não se sinta muito melindrado pelas festividades em preparação.
         O regime do Senhor Salazar, um professor universitário de economia política que envergou as vestes de ditador absoluto, manteve Portugal um país solvente, mas desarmado. A Espanha fascista, com uma situação financeira em descalabro, como qualquer bom economista poderá explicar-vos em dez minutos, começa a erguer a cabeça com a sua dispendiosa artilharia. É a habitual equação canhões vs. manteiga, aqui aplicada a uma escala reduzida. O condutor português do Wagons-Lits que faz o percurso de Irun até Lisboa já deixou de gracejar com o contraste entre os preços das refeições na carruagem-restaurante e aquilo que os espanhóis têm para comer. O seu apetite e a comida continuam bons, mas anda preocupado. 
         O Senhor Salazar alimenta a esperança de que o General Franco se mostre grato pelos favores que lhe fez durante a Guerra Civil. Está ciente de que, pela primeira vez desde as guerras peninsulares, a tradicional aliança de Inglaterra com Portugal constituiu mais uma ameaça do que um trunfo. Não é, em todo o caso, uma aliança que mesmo um ditador possa romper de um dia para o outro, já que o inglês é a segunda língua falada em Lisboa, os bancos ingleses controlam o sistema financeiro do país, durante séculos os ingleses foram os grandes consumidores de vinho do Porto e Portugal sabe que, caso a Grã-Bretanha seja derrotada, as colónias portuguesas serão confiscadas. Por outro lado, os Portugueses são afectuosos e sentimentais; aqueles que não têm posses – ou seja, a grande maioria da população – reagiram às derrotas de França de uma forma ingénua, entrando em pânico. Os italianos não são populares por aqui, nem mesmo os alemães, ainda que a comunidade germânica de Lisboa seja numerosa. Há umas semanas, a polícia fez uma rusga ao clube e à escola alemã e descobriu uma apreciável quantidade de armas – tantas que quase chegariam para formar um exército em Portugal.
         Para quem viva em Lisboa, é difícil abstrair muito tempo da situação política, mas, na aparência, a vida corre sem sobressaltos, seja na capital, seja na Riviera portuguesa, uma região em forma de crescente que começa ao norte da cidade e se espraia por umas trinta milhas ao longo da costa. Não é necessário tapar as janelas à noite, algumas sessões de cinema chegam a começar à uma da manhã e o Casino Estoril, a zona de veraneio mais em voga no país, só se anima por volta das três da madrugada. Para aqueles que acabam de chegar de França, de Inglaterra ou da Alemanha, tudo isto parece outro mundo. A vida social britânica, que sempre teve a atmosfera típica de uma festa de jardim de um governador colonial, prossegue sem alterações, com os ingleses a jogar às cartas com os seus compatriotas, a fazer representações de teatro amador (Sir John Barrie e Ian Hay são os dramaturgos favoritos), a apostar moderadamente no Casino. Espera-se que o duque de Kent participe na abertura das comemorações centenárias e um comité especial do Royal British Club está a preparar com rigor a sua recepção, apenas se interrogando se os alemães e os italianos não chegarão antes dele.     
         Em caso de emergência, a Marinha inglesa certamente será capaz de resgatar do país os residentes de nacionalidade britânica, mas, até que isso aconteça, os ingleses enfrentam grandes dificuldades em regressar a Londres. Não existe uma linha regular de transporte de passageiros e os navios fretados são pequenos, desconfortáveis e escassos. Os únicos meios para abandonar o país são os Pan American Clippers, com destino a Nova Iorque, e as carreiras que rumam à América do Sul. Como estas últimas não são muito procuradas, os hotéis de Lisboa enchem-se de americanos vindos de França que esperam por um lugar no Clipper. À primeira vista, o número total, cerca de mil pessoas, não parece significativo. Contudo, se compararmos os passageiros que um Clipper pode transportar – no máximo, vinte cinco, na viagem para Oeste – e os quartos decentes que existem nos hotéis de Lisboa e da linha do Estoril, apercebemo-nos de que aquele número é astronómico. 
    ***
         Perante o que se passou, os ingleses continuam a abanar gravemente as suas cabeças, dizendo que é comum Churchill abster-se de recriminações, e que o que restou do exército francês deveria ter sido evacuado para defender as Ilhas Britânicas. O desaparecimento daquele exército alterou de tal forma a correlação de forças entre as diversas nações europeias que ainda ninguém se habitou à ideia; foi como se tivesse morrido subitamente a pessoa que é o ganha-pão de uma família numerosa.
         No mês passado, em Nancy, quase todos os correspondentes ingleses e americanos juntaram esforços em busca da única divisão britânica que supostamente alcançou a frente de batalha. Actualmente, essa divisão esfumou-se. O episódio têm o seu quê de divertido, já que os perigos criados pelo falhanço do governo de Chamberlain em enviar tropas para a frente de combate só se tornaram patentes no mês passado, quando o exército francês, reduzido a menos de um milhão de homens, para não falar das divisões imobilizadas na fronteira italiana, tentou enfrentar em campo aberto três milhões de soldados alemães.
 
***
         Curiosamente, os fascistas espanhóis continuaram a trocar francos por pesetas, ao passo que os portugueses, francófilos mas prudentes em questões financeiras, recusam-se a aceitar a moeda gaulesa. Até agora, o único movimento ostensivo de Espanha foi a ocupação da zona internacional de Tânger, algo que, segundo a versão oficial, foi feito «com o consentimento dos governos francês e britânico». Os homens de negócios de Lisboa só se aperceberam daquela operação quando começaram a receber correspondência com selos ostentando a cara de Franco em vez dos retratos do rei Jorge e da rainha Isabel.   
         Em Irun, a cidade fronteiriça onde é habitual esperar várias horas pelo Sud-Express para Lisboa, já servem refeições, o que não sucedia há nove meses atrás. Os espanhóis dizem que a alimentação é demasiado cara para os seus níveis salariais, mas o mero facto de ela existir é já um progresso. Os jornais espanhóis são, naturalmente, pró-nazis e pró-italianos, ainda que as pessoas que encontramos nos bares de Irun ou nas tabernas de Fuenterrabia, nas redondezas, façam troça dos italianos. «Os alemães não lhes vão dar nada de nada», dizem. Admiram os alemães e congratulam-se por ver os franceses humilhados. Os espanhóis antifascistas mantêm-calados, e não é certo que ainda nutram grande simpatia pelos ingleses.
         Há umas noites atrás, um alemão que falava inglês virou-se para um casal de americanos num bar de Lisboa e disse-lhes: «Meus caros, Hitler não tem quaisquer pretensões relativamente ao Canadá ou aos Estados Unidos. É um homem recto, que apenas reclama aquilo a que tem direito». Faz lembrar o que alguém disse de uma eleição realizada no Sarre já parece há quase um século, em 1935.
 
A.   J. Liebling
 
 
Tradução de António Araújo 
 
 
 
 
 

 

6 comentários:

  1. Obrigada, António!
    Maria Teresa Mónica

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    1. Ora, Teresa, eu é que agradeço!
      Com amizade,
      António

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  2. Excelente ideia António, esta das cartas... a caminhar para outra ( que não sei se já se concretizou) : um repositório de correspondência de e sobre Portugal visto por estrangeiros durante o Estado Novo .

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    1. Assim haja tempo para isso, meu caro Ricardo...
      Um abraço,
      António

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  3. "de uma forma ingénua, entrando EM pânico" ?

    Boas

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