terça-feira, 2 de outubro de 2018

Eu, Alexandre Herculano.

 
 




“É a minha nova instalação artística”, diz Daniel Blake depois de pintar a spray numa das paredes exteriores do Centro de Emprego uma frase em que, além de denunciar a incompetência grosseira dos serviços, aproveita para gozar com a música chata a que esses mesmos serviços o sujeitam durante as horas em que o deixam pendurado ao telefone. O filme Eu, Daniel Blake, que despertou apaixonadas discussões em 2016, ano de estreia, passou um destes dias na RTP e logo uma nova poeira de debate se ergueu no ar. Como nunca o tinha visto aproveitei agora a oportunidade, e o episódio de “street art” que relato em cima serve para explicar o motivo pelo qual, apesar de todas as “provocações” do realizador Ken Loach, não verti uma lágrima durante os 96 minutos.
Inicialmente, através de um processo de auto-análise e também por causa dos subtis comentários que a minha mulher ia soltando, atribuí a aridez das glândulas lacrimais à incapacidade de sentir sentimentos sentimentais sensíveis, mas a verdade é que, depois de afastar o ruído inerente à reflexão sobre o eu, bem como o ruído inerente ao convívio prolongado entre seres humanos de sexos opostos, lembrei-me dos riachos que escorreram pela minha cara quando vi o Umberto D., clássico do neo-realismo italiano com o qual Eu, Daniel Blake estabelece óbvios paralelos. A diferença decisiva entre o desgraçado Umberto Domenico Ferrari, um italiano que se vê mergulhado numa situação de gravíssima privação material, e o desgraçado Daniel Blake, um inglês que se vê mergulhado numa situação de gravíssima privação material, é a atitude com que cada um deles enfrenta a provação. Umberto D. é um símbolo quase perfeito daquilo a que damos o nome de pobreza envergonhada; pelo contrário, Blake, no meio do desastre, mantém a cabeça erguida, reclama, satiriza, provoca amigavelmente os vizinhos do lado e, saudavelmente encolerizado, ainda ameaça o vizinho afastado de lhe esfregar a cara na merda do próprio cão se ele se voltar a atrever a fazer do jardim dos outros casa de banho para canídeos. Salvo melhor entendimento de carácter meloso, acredito que Daniel Blake merece que não choremos por ele.
 
 
 
Antes de avançar na análise recuperemos resumidamente o guião. Daniel Blake é um marceneiro viúvo que acaba de sofrer um ataque cardíaco. Fruto de uma época em que o trabalho tinha não só uma função económica mas também uma forte componente de legitimação da própria existência, vê-se, de repente, encalacrado numa armadilha procedimental: os médicos dizem-lhe que ainda não pode regressar ao emprego e a Segurança Social, depois de lhe fazer uma dúzia de perguntas, considera-o apto para trabalhar e não lhe concede o subsídio de doença. Sem salário e com os apoios públicos a minguarem a cada dia, rapidamente se vê forçado a vender os poucos pertences que tem para conseguir sobreviver, ao mesmo tempo que percorre uma enervante via-sacra nas repartições de um Estado dominado pela desumanidade, frieza formal e rigidez legalista.
Álvaro Cunhal, no ensaio A Arte, o Artista e a Sociedade, recorda, a propósito do significado da obra de arte, uma frase cortante do crítico Dobrolyubov. Para esse revolucionário russo do séc. XIX, cuja prematuridade se traduziu em escritos poéticos aos treze anos e morte por tuberculose aos vinte e cinco, a sentença era clara: o que um autor pretende exprimir é muito menos importante do que aquilo que realmente exprime. Não é nada fácil contestar esta ideia, seja em relação a artistas propriamente ditos, a desculpas dadas às três da manhã com hálito a whisky e batom no colarinho da camisa, ou a discursos contra a especulação imobiliária proferidos da varanda de um prédio lisboeta reabilitado com o objectivo de gerar mais-valias pantagruélicas. No entanto, para ser justo, devo dizer que, embora tenha dúvidas sobre algumas análises ao filme de Ken Loach, não afirmo peremptoriamente que aquilo que pretendeu exprimir seja diferente daquilo que realmente exprimiu. Parece-me antes que estamos, usando uma comparação muito em voga, perante um Teste de Rorschach: projectamos no ecrã as nossas convicções e por isso vemos na história de Daniel Blake aquilo que queremos ver. O que não deixa de ser irónico, dado que essa costuma ser a reacção do público perante uma obra abstracta e o trabalho do realizador britânico é, supostamente, um marco do realismo. 
Conhecemos bem, por nunca a ter escondido ou disfarçado, a sua ideologia fortemente esquerdista. A estreia do filme em Londres contou, aliás, com a presença do amigo e líder trabalhista Jeremy Corbyn, que logo o aproveitou para atacar as políticas de direita do governo do partido conservador. A premissa para essa investida é simples: Daniel Blake, bem como a sua companheira de infortúnio Katie Morgan (que conheceu nos corredores da sinistra burocracia kafkiana que nos é apresentada), são vítimas dos ataques “neoliberais” ao Welfare State protagonizados pelos tories. De acordo com esta visão o sistema foi, por razões economicistas, propositadamente ”afinado” para complicar a vida dos cidadãos, até que estes, cansados e desmoralizados, se afastam e desistem do suporte estatal. No entanto, e aqui regresso à mancha de tinta de Hermann Rorschach, podemos olhar para o drama dos personagens através de uma lente diferente, à qual podemos dar o nome, em jeito de homenagem, de “lente de Herculano”. E tentar responder a uma pergunta muito simples: há neste enredo macabro alguma sombra de liberdade, ou, pelo menos, de não intromissão excessiva do Estado na vida dos cidadãos? Ou estamos, pelo contrário, a assistir a uma actuação de “Estado-papá”, em que, por contrapartida de uma “mesada” raquítica, vemos o funcionalismo a controlar ao milímetro a vida de Katie e Blake, ao ponto de, por causa de um ligeiro atraso, castigarem a primeira com a suspensão da dita “mesada”? Katie Morgan e Daniel Blake estão, de facto, a ser esmagados pelos formalismos e idiossincrasias dos serviços públicos, mas interessa perceber se tal não acontecerá por estarmos na presença de uma quase relação absolutista “soberano-súbdito”, relação essa contra a qual o liberalismo nasceu no século XVII.
E esta é apenas a interpretação dominante do oposto ideológico de Ken Loach, pois, numa análise à lupa, conseguimos encontrar no filme argumentos ao gosto de todo o tipo de fregueses: o entusiasta do rigor prussiano pode achar correcta e adequada a atitude intransigente da repartição (os dinheiros dos contribuintes devem ser geridos sem contemplações sentimentais e a verdade é que Blake, tendo passado o filme a andar de um lado para o outro e a fazer biscates na sua casa e na casa de Katie, deu sempre a impressão de estar com vontade e em condições de trabalhar); o libertário pode especular que, sem a existência do Estado, Daniel Blake teria poupado o dinheiro que foi descontando para a Segurança Social e não estaria agora com a própria vida nas mãos de burocratas; e, acima de tudo, o “gajo de Alfama” encontrará mais uns quantos motivos para afirmar que os funcionários públicos são uns madraços da pior espécie e que só servem para fazer trinta por uma linha com o objectivo de lixar o pessoal.
Em resumo, Ana Avoila até pode ter pensado que gostou deste filme, mas talvez não seja má ideia reflectir mais um bocado no assunto.
 
Sérgio Barreto Costa
sbcosta13@gmail.com
 
 
 

          

 

 

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