terça-feira, 25 de maio de 2021

O mais belo parágrafo da Literatura da Guerra da Guiné.

 



O Capitão Nemo e Eu, Crónica das horas aparentes, por Álvaro Guerra, Editorial Estampa, 1973, representa a despedida do escritor das temáticas da guerra da Guiné, território onde combateu e foi ferido. É uma obra injustamente esquecida, muito provavelmente porque ainda está marcada pela corrente do Noveau Roman, que tanto seduziu o escritor na primeira fase da sua carreira, hoje atrai mais os estudiosos, desorienta profundamente o leigo que nela mergulha. Álvaro Guerra despede-se e sai pela porta grande, vamos encontrar neste seu romance páginas admiráveis, logo a abertura:

“Que perdi a memória – dizem. E logo dão o nome a esta imunidade que pretendem retirar-me. Dizem isso com precaução e manha como se quisessem disfarçar o despeito. Defendo-me. Só agora, na metade do tempo em que a droga do sono se esgota e sei que é meu o que me circula nas veias, só agora me visito: primeiro, o estojo duro e branco que esconde o grande golpe na coxa direita, as ligaduras que encontro ao passar a mão pela testa. Também procuro os resíduos invisíveis das anestesias e só me revelo um estranho gosto na boca. É uma visita tosca e breve, que se cansa de mim ou me recusa para repousar nas quatro paredes brancas e no teto branco e nos brancos panos da cama, simetria nem ao de leve desfeita pelos retângulos da porta e da janela velada por cortinas de cassa tão leves que, constantemente ondulantes, me repetem existência do ar em movimento, ar sossegado, filtrado, prisioneiro e puro, e não com partículas de sal lançadas em bátegas por um vento furioso varrendo as duríssimas arestas das rochas...”.

É o ferido que retoma consciência em ambiente hospitalar, e acrescenta: “Devo sujeitar-me aos horários dos remédios, às injeções, a ser colocado sob as placas de vidro dos aparelhos de radiografia e ao emaranhado de fios presos à cabeça, através dos quais é possível ler o meu cérebro…”. E vemo-lo na Guiné, fala na língua Fula, há por ali crianças acocoradas à nossa frente, ventres inchados entre pernas cruzadas, isto passava-se sobre o cheiro adocicado da terra da Guiné, e tudo se articula com outras histórias, num cosmopolitismo parisiense, que Álvaro Guerra conheceu, pois ali estudou e trabalhou antes de vir professar o jornalismo em Lisboa, no jornal República. Há reminiscências da infância, um pouco à semelhança do que o escritor praticou em obras anteriores, um carrossel de imagens que podem meter cenas taurinas, vida agrícola, a imensidão da lezíria. A memória anda à solta naquele hospital onde o ferido se trata, e o autor lembra um capelão militar que lhes procura incutir denodo e lançar para o bom combate: “Irmãos, longe dos vossos lares, das vossas famílias, das vossas noivas, de todos os entes-queridos, tendes por consolo e por razão o amor da Pátria e a fé em Cristo que aqui vos trouxeram para defender a terra dos vossos antepassados que vieram oferecer ao gentio selvagem, com suor e sangue, a verdade, a justiça e a fé em Deus Nosso Senhor. Vós sois os soldados de Cristo que combatem os infiéis, os ímpios. Vencereis, tal como São Jorge venceu o dragão. Que Deus seja convosco, meus bem-amados irmãos”. Depois, suportando mal os 47ºC à sombra, inundado num suor incrivelmente espesso, almoçava carne de vaca com molho picante, na messe. Aplicado, ruidoso, tasquinhando o bife, sem se distrair do apetite, lutava com a mão sapuda contra o permanente ataque dos mosquitos”.

O doente já se passeia de muleta, no jardim, à sombra de castanheiros e chorões, volta ao Forreá, a Contabane, de novo conversa na língua Fula, o espírito anda num vaivém, as feridas se hão de curar, há talvez feridas que nunca passem, e de novo o passado entremeado com tudo o que se passou naquele Sul da Guiné que levou Álvaro Guerra ao hospital, por ali ciranda um anjo branco que serve de ponte entre o passado e aquele encaracolado presente.

Estamos a caminho do parágrafo mais admirável de toda a literatura da guerra da Guiné. O alferes recorda a viagem de avião, tudo começou com uma manhã fustigada por vento gelado. “De tudo o que espreitei lá de cima, nas longas horas desse voo, se devem referir três pontos cruciais: a linha de espuma branca que separava o deserto do mar, uma ilha cor de ferrugem, sem vegetação nem água, onde o avião pousou e levantou; e o pântano onde o verde escuro do mato alternava com o quadriculado dos arrozais e os minúsculos círculos das moranças. Foi no meio desse pântano que o avião desceu e me deixou. Durante dois anos, por mais de uma vez, amaldiçoei os fidelíssimos enviados do infante que se aventuraram até à foz do Geba.

Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e a meio como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.

Aquele hospital ele sabe que a tudo o que se passou foi arrancado, entre a vida e a morte e confessa a alguém: “Ao princípio tinha medo de adormecer, porque chegavam os fantasmas, as explosões, os tiros, o sangue, o sorriso de Safi, uma aldeia a arder e os gritos das pessoas. Por fim, consegui olhar para a cicatriz, sem me lembrar de muitos pormenores. Pois é. Tudo passa. Por fim, pensei que tinha perdido definitivamente qualquer coisa que só agora julgo saber o que é”.

E segue-se a viagem a bordo do Nautilus, com o capitão Nemo. Nem tudo ficou para trás esquecido, como o autor adiantará: “Desmontar uma pistola metralhadora foi a tarefa mais complexa e inquietante que até hoje executei, talvez apenas superada pelo trabalho de a montar com correção. Experimentava depois uma falsa sensação de consciência em paz, ao verificar que a culatra oleada deslizava impecavelmente. Até ao último momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem, porque nunca o instinto foi tão ferozmente como quando tudo isso aconteceu, ao cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa ficou liquidada para sempre, e nunca mais um dever cumprido trouxe paz à minha consciência”. E o Nautilus prossegue viagem, mas o poder da memória é mais forte, e de novo se regressa à Guiné por uma outra viagem que até pode ser de caravela, e onde se guardam aspetos que maravilharam os primeiros descobridores ou aventureiros, como o voo fulvo do faisão, os grus emigrantes sobre as bolanhas, a gesticulação do macaco cão, e cruza-se com Mariama, à cabeça a roupa de lavar – Tanaala? No pindá? E como se estivesse profundamente angustiado, como criatura de Shakespeare, Álvaro Guerra interroga-se: “Se não é esta a minha terra, para que me fizeram aqui vir? Aqui se fecha o livro da memória guineense, ou quase, porque somos forçados a interpelar o que ali se passou, como ele o faz e descaradamente naquele ano de 1973 em que pontificava a censura:

“Perguntando nós que guerra era aquela, sempre ouvimos como resposta grandes palavras ocas e, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao Jardim Zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda lá estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento”. E tanto quanto me é dado saber, para meu pesar, este escritor vila-franquense a quem a sua terra natal lhe dedicou uma bela escultura perto da nova biblioteca à beira-rio, como se contrariasse as recordações dessa guerra feroz e persistente, não voltou à Guiné, pelo menos em literatura, ficou aquele parágrafo que é ímpar e tudo leva a crer que jamais será ultrapassado. 


Mário Beja Santos 

 






4 comentários:

  1. Não conheço a sua obra. Mas, confesso, é um livro que eu gostava de ler.
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    Cumprimentos poéticos
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