sexta-feira, 8 de novembro de 2024

‘Grand Tour’, ou a sua impossibilidade intrínseca.


 

 

Há um momento completamente inesperado no início da segunda parte do filme ‘Grand Tour’, de Miguel Gomes, em que se faz luz sobre a sua cuidadosa e aparente falta de sentido: é quando uma das duas personagens principais, Molly, desatando a rir - de lábios franzidos, qual criança traquinas - emite um som cómico totalmente inesperado e irreverente, de puro gozo. Trata-se de um som difícil de reproduzir graficamente (brrr, brrr, brrr?) que julgo todos já ouvimos – e que alguns de nós já emitimos, quando quisemos dizer “Deixa-me rir!”

Este ‘ruído’ feito por Molly é um ruído que podemos considerar brechtiano – e não só – sobretudo porque que nos acorda de vez da lengalenga narrativa temporalmente situada em 1918, de lógica ainda tão fim de siècle - embora já disruptivamente mesclada com imagens contemporâneas de várias regiões asiáticas como pano de fundo. Essa narrativa apresenta-nos um estereótipo plausível, à época: uma rapariga noiva há sete anos (Molly), cansada de esperar pelo casamento, decide ‘perseguir’ o noivo (Edward), mas – e aqui reconhecemos mais uma insidiosa estranheza subtilmente inoculada – completamente sozinha por longínquas terras da Ásia, desenvolta, desembaraçada, como um torpedo perfeitamente direcionado (em gritante contraste com a contínua desorientação e indecisão do noivo, que se limita a uma contínua fuga reativa). Este paradoxo mudo e simultaneamente gritante instala cuidadosamente a primeira dúvida mais óbvia sobre a construção da personagem da menina casadoira e tradicional que vê no casamento o seu único objetivo e saída. A segunda dúvida – que, como dito, se nos apresenta como um sinal (talvez o mais importante, entre muitos) – surge quando esta jovem da alta burguesia inglesa, com a respetiva educação e etiqueta, decide sem mais, num espaço público, emitir o som em causa, à época seguramente ‘inestético’ e de ‘mau tom’.  (O ruído de gozo dos lábios franzidos de Molly repetir-se-á, de resto, várias vezes ao longo do filme, ficando-nos na memória como um alerta e uma ‘marca’ - cómicos e altamente disruptivos - que conhecemos de outros filmes inesquecíveis, como p. ex. as gargalhadas estridentemente cómicas do Mozart de Milos Forman.)

Mas voltemos ao momento em que o estranho ‘ruído’ é emitido por Molly pela primeira vez. Longe de despontar sozinho e do nada, ganha especial significado no contexto e exato minuto em que surge. Temporalmente, esse momento localiza-se imediatamente depois de Molly: a) ter viajado milhares de quilómetros até Rangum, na Birmânia, para finalmente se casar com o noivo Edward, e de constatar que este fugiu; b) ter verbalizado a vontade de o seguir para Singapura sem que este o tenha solicitado; c) ouvir ‘a’ pergunta porventura mais óbvia e lógica de todas, que o primo lhe coloca: não será que o noivo perdeu a intenção de casar com ela?

É, pois, em resposta a esta pergunta, que Molly emite súbita e inesperadamente o cómico ruído em questão, rindo a bandeiras despregadas e acrescentando, em exclamação, a palavra (que completa a) chave: “Absurdo!!!” E é esse o momento que, subitamente, nos confirma a lógica de ‘inversão’ já semi adivinhada do filme, até porque, como já ficou dito, ao longo de ‘Grand Tour’ Molly repete o dito ‘som’ e a respetiva exclamação da palavra “Absurdo” várias vezes. Através deste ‘mecanismo’ de Molly, os raciocínios da lógica mais comum, prosaica e tida como ‘normal’, passam a ‘absurdos’, e os que habitualmente se consideram ‘absurdos’ passam a apresentar-se não só como perfeitamente plausíveis, como também – e consequentemente - destruidores da suposta ‘normalidade’ vigente e de todos os seus inquestionados estereótipos.

E este absurdo que nos pretende desinstalar do conforto dos nossos estereótipos abarca, insidiosamente, todo o filme, por várias vias, e sobretudo pela via inesperada e subterrânea da língua falada, ‘normalmente’ tida como um simples ‘canal’. Vejamos: no universo totalmente britânico e/ou de colonialismo britânico que ‘Grand Tour’ nos apresenta, as personagens - todas britânicas ou de (ex) colónias britânicas - insistem, pasme-se, em falar umas com as outras – apenas, sempre e contra toda a lógica - em português. Este facto não é naturalmente de somenos importância (quem consegue aqui não lembrar o aforismo de Mac Luhan “the message is the medium”?) e leva-nos a várias (muitas!) perguntas encadeadas, porque é isso que ‘Grand Tour’ faz, leva-nos a colocar muitas perguntas:

- Porque consideramos tão absurdo o português falado por britânicos entre si no seu dia a dia, se assistimos todos os dias a filmes de todas as culturas e regiões do globo falados em inglês sem um pestanejar?

- Porque é que num filme português, em que toda a ação se passa em cenário colonial (territórios asiáticos quase todos seguramente pisados por portugueses antes dos ingleses) não há uma única referência explícita a Portugal nem aos portugueses - com exceção da referida língua/canal, ironicamente sempre presente, do género ‘gato escondido com o rabo de fora’?

- Porque fica assim o ónus do colonialismo tão convenientemente evacuado do universo português?

- Porque continuamos assim a ‘tirar a água da capota’ tomando os outros por tolos – e sobretudo a nós próprios?

Não abusando da paciência do leitor, passemos das perguntas (longe de esgotadas) ao tópico seguinte de ‘Grand Tour’, na senda da sua inversão do conceito de absurdo:

O escamoteamento considerado ‘normal’, na época, da diferença abissal entre classes sociais e respetivas condições laborais - infelizmente ainda hoje presente em tantos cenários, óbvios ou insuspeitos, pois convém lembrar que os estereótipos são como as nódoas: atingem todos os panos… Julgo que aqui será suficiente referir um único instante do filme pois, pelo seu peso, dispensa quaisquer outros. Trata-se do momento em que Molly, contra todos os elementos, correntes, conselhos e razoabilidades possíveis, faz finca-pé e opta por um meio de transporte fluvial inviável e sinistro: a subida do rio (impraticável naquela época do ano) em barco puxado por cordas, a partir de terra, por seres humanos, num esforço desmesurado e desumano. A imagem destes homens e mulheres em esforço total, nus, sob a chuva torrencial e a inclemência dos elementos, dura talvez uns segundos. O seu impacto, esse, fica-nos gravado a fogo na retina, talvez para sempre. Por isso, quando no instante seguinte um padre (!), não por acaso com um jumento (!), aceita – com elegante retórica - o convite de Molly para se fazer transportar no mesmo barco, o absurdo e o terror confundem-se. Mais uma vez, em ‘Grand Tour’, uma questão absolutamente determinante (desta vez a insensibilidade total perante o sofrimento humano na base da pirâmide social) - é passada num ápice (percebemos a alergia a sentimentalismos), para quem puder ou quiser ver: gritante e insuportável para uns, invisível ou completamente irrelevante para outros.

Para fechar o ciclo, voltemos ao início - ao título do filme – tomando por base a primeira definição que a net nos disponibiliza:Grand Tour servia como um rito de passagem educacional. Associado inicialmente com a Grã-Bretanha, especialmente com a gentry e a nobreza britânica, posteriormente viagens semelhantes também seriam feitas por jovens endinheirados de nações do Norte da Europa e do restante do Continente.” Trata-se assim, relembremos, de uma das últimas versões da mítica ‘Viagem’ primordial, aquela que deverá conduzir ao ‘autoconhecimento’. No caso de Edward e de Molly, porém, este ‘Grand Tour’ é feito aparentemente de modo involuntário, impelido por razões externas, de modo apenas físico, geográfico e não assumido. Também por isso, o ‘autoconhecimento’ que cada um à sua maneira persegue, de modo encapotado e provavelmente inconsciente, escapa-lhes sempre, etapa após etapa, num percurso de milhares de quilómetros. Como todos (?), estes noivos desgarrados procuram – porventura sem o saber - o significado inerente à vida, não sendo já capazes de encontrá-lo num mar (literal e metafórico) de incertezas, um universo que se mostra cada vez mais sem propósito entendível, na lógica tradicional, e porventura noutras lógicas também. Daí que a inversão da lógica da ‘normalidade’, no filme, seja tão importante, assim como a tentativa de encontrar outras lógicas. Porque ‘Grand Tour’ está muito empenhado em mostrar que não há certezas, incluindo a certeza de existirem só incertezas. Daí o absurdo, usado não só para desmascarar a lógica ‘natural’ instalada, mas também – e quem sabe sobretudo – para apontar que nem tudo estará, eventualmente, perdido.

Não chegando a pontos tão extremados como realizadores que conhecemos do cinema absurdo – começando p. ex. com Buñuel e terminando com Yorgos Lanthimos - e talvez mais próximo do teatro do absurdo que o antecedeu – Beckett, Ionesco, até certo ponto Pinter e por aí fora – Miguel Gomes não apresenta aqui uma lógica (totalmente) niilista. Fazendo uso de elementos e lógicas oníricas (p. ex. selvas ameaçadoras em claro escuro, como já em ‘Tabu’), não abdica totalmente, como veremos, de um lado potencialmente utópico (Edward?) e alegre (Molly), nem de uma réstia de esperança no sentido da vida e do mundo, contra tudo e contra todos, incluindo a morte.

De facto, no final do filme Edward não encontra saída e Molly adoece e morre, mas depois desse ‘unhappy end’, num volte face inesperado, antes do genérico – num momento em que o espetador, supostamente, já não tem possibilidade de ver o que se passa em cena, - a atriz (ou a personagem Molly?), abre hesitantemente os olhos e ergue-se, qual Lázaro ressuscitado e, embora titubeante, continua a sua marcha numa direção desconhecida.

‘Grand Tour’ mostra-nos, assim, a sua impossibilidade intrínseca, num mundo contemporâneo ‘fluido’, sem inocência possível (como p. ex. ‘La La Land’ nos mostrou a impossibilidade de um musical clássico de Hollywood), mas faz questão de não fechar definitivamente a porta e, na estreita frincha da sua abertura, quem quiser - ou puder - vislumbrará um espaço por explorar, aberto.

                                                                                    Leonor Sá

 

 

 

 

 

 

 


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