quinta-feira, 23 de maio de 2013

Eu financiei Lenin (3): o caso dos documentos Sisson.


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Cartaz norte-americano de propaganda de guerra, aqui 




O Committee on Public Information (CPI) foi criado pelo presidente Woodrow Wilson em Abril de 1917, através da Executive Order 2594. Dele faziam parte o Secretário de Estado, o Secretário da Defesa e o Secretário da Marinha, o que demonstra a importância que lhe era dada. A liderança executiva do CPI foi atribuída, bem à maneira pragmática americana, a um jornalista, George Creel.
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George Creel
 
 

O seu objectivo era fazer a propaganda da intervenção dos EUA, algo decisivo porque a Grande Guerra era então vista como um conflito europeu. Note-se que o próprio Wilson fizera campanha para a sua reeleição em 1916 prometendo que os Estados Unidos não participariam na guerra. O lema era: “He kept us out of war!”. Quanto a incumprimento de promessas em democracia, estamos conversados…

É muito interessante o papel que foi reconhecido à propaganda, em notável contraste com países como Portugal, onde a decisão de entrar em guerra não foi preparada junto da opinião pública, nem a intervenção foi alguma vez entendida pela população, o que contribuiu em boa medida para o descrédito da Primeira República.

O CPI usou de todos os meios ao seu alcance para criar entusiasmo junto da opinião pública, de modo a sustentar a posição do presidente de Wilson. É o que se pode constatar no relatório final do chairman George Creel (ver aqui http://archive.org/details/completereportof00unit). O CPI também procurou influenciar as decisões de outros povos, como se pode verificar em cada capítulo dedicado ao trabalho realizado em vários países. Cada país tinha um capítulo. À Rússia são dedicados nove capítulos. Não admira: depois da revolução democrática de 1917, a grande questão era a de saber se a Rússia faria a paz com os alemães antes dos americanos terem um exército a sério na Europa. E, se tal sucedesse, a Alemanha ganharia a guerra.

Em 27 de Outubro de 1917, o chefe da secção russa do CPI, Edgar Sisson, deixa os Estados Unidos, chegando a Petrogrado em 25 de Novembro. As suas ordens são as de abrir escritórios da CPI em várias cidades russas. A sua missão? Tudo fazer para manter a Rússia ao lado dos aliados. O maior risco? Os bolcheviques tomarem o poder. A melhor maneira de proceder? Provar que os bolcheviques estavam ao serviço dos interesses da Alemanha imperial.

Edgar Sisson era um antigo editor da The Cosmopolitan (de 1914 a 1917) que levou alguns colaboradores da revista para a CPI. Foi o caso de Carl Byoir. Note-se que Byoir não era jornalista, mas homem da publicidade e da área comercial. O seu objectivo era aumentar as vendas das publicações do império Hearst. Fazia um duo imparável com Edward Bernays, também recrutado para a CPI. Veja-se o destaque que ainda hoje se dá ao seu contributo seminal no sítio “The Museum of Public Relations” (http://www.prmuseum.com/byoir/cb13-19.html). Acresce que Edward Bernays (nascido em Viena, em 1891) era sobrinho de Sigmund Freud: filho de Anna Freud, irmã do mestre, também era sobrinho da mulher de Sigmund. Este financiou a emigração do pai de Edward para os Estados Unidos, assim salvando, pelo menos, uma das suas irmãs, a mãe de Edward Bernays.
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Edward Bernays
 
Sigmund Freud




Diz-se que a influência do pai dos psicanalistas não se perdeu na concepção de Edward Bernays da comunicação como meio de orientar e condicionar o comportamento das massas (Bernays nunca deixava de lembrar a sua relação familiar com Freud e diz-se que se auto-intitulava “psicanalista de empresas em dificuldades”). Em suma, na CPI reuniu-se um grupo que percebia, como ninguém e mais cedo do que muitos, o modo como os novos meios de comunicação tornavam todas as palavras e imagens em armas. A história da CPI foi, justamente, contada num livro com o título Words that Won the War, onde se afirma que um dos mais importantes “invasores” da América Latina, em nome da CPI, foi Edward Bernays. Depois do armistício, Bernays fez parte da delegação americana à Conferência de Versalhes. O seu papel seria o proporcionar assistência técnica aos jornalistas americanos que cobriam o evento. Ou seja, a comitiva de Wilson já incluía um assessor de imprensa. Curiosamente, a tendência de Bernays mais para a publicidade do que para o jornalismo levou-o a divulgar informações demasiado bombásticas, como naquela ocasião em que disse que “the announced object of the expedition is to interpret the work of the Peace Conference by keeping up a worldwide propaganda to disseminate American accomplishments and ideals.” Dois dias depois o New York World titulava um artigo: “TO INTERPRET AMERICAN IDEALS.” Conta-se que vários senadores republicanos, de tendência isolacionista, ficaram furiosos, o que contribuiu para a posterior rejeição da entrada dos Estados Unidos na Sociedade das Nações. Bernays, pelo seu lado, critica o director da CPI, George Creel, por o não ter deixado desempenhar o seu papel, dando conta aos americanos do que verdadeiramente se estava a passar em França. Desse modo, concluiu, não foi possível criar uma opinião pública americana favorável à Sociedade das Nações. Em qualquer das versões, o propagandista Bernays teria influenciado o curso da história.

Bernays e Byoir usaram de seguida técnicas desenvolvidas no CPI para ganhar milhões no mercado das relações públicas. Esta designação é, em si mesma, um prodígio de spinning. O que Bernays e Byoir fizeram foi misturar técnicas de publicidade e propaganda, muitos interesses políticos e/ou comerciais e construíram o que mais tarde recebeu designações como lobbying, spinning e hoje é protagonizado, de modo mais ou menos conspícuo, pelas auto-designadas (eufemisticamente) agências de comunicação. Senão veja-se: o primeiro trabalho de Bernays e Byoir foi o de mobilizar a opinião pública americana para uma coisa que, não tenhamos dúvidas, preocupava sobremaneira os agricultores do Midwest: a independência da Lituânia. Hoje a campanha está esquecida, mas Bernays considerava-a “o protótipo mas modernas técnicas de relações públicas”. E também lhes valeu US $23.000, pagos pelo Conselho Nacional da Lituânia o que, compreensivelmente, os convenceu de que havia muito dinheiro a ganhar nesta área.

Esta digressão dá-nos uma ideia do modo como começou a ganhar forma no CPI uma convicção e uma técnica: as ideias são como uma arma e as palavras são como balas (expressão que Bernays gostava de usar). Mas é bom recordar que a filiação desta ideia é antiga, muito embora as técnicas variem. E sempre foi muito melhor entendida nos Estados Unidos do que na Europa. O papel de Samuel Adams e de John Hancock, os propagandistas da Revolução Americana, bem o demonstra. O momento que  melhor o revela é o da proclamação do comandante inglês, o general Gage, datada 12 de Junho de 1775, nos termos da qual todos os insurrectos seriam perdoados, se tivessem a delicadeza de se entregar. A todos seria proporcionada essa última oportunidade. A todos menos a dois, Adams e Hancock, precisamente aqueles que não usaram a espingarda como arma, mas tão somente a palavra.

A estadia de Edgar Sisson em Moscovo deve ser vista a esta luz. Em Fevereiro de 1918 foram-lhe mostradas cópias de documentos promissores porque pareciam demonstrar que o governo de Lenine estava a ser diretamente financiado pela Alemanha, pelo que Sisson deve ter ficado deliciado por ter à mão tudo aquilo que queria e em tão pouco tempo. Dispôs-se de imediato a pagar somas avultadas pelos mesmos (aproveita-se para esclarecer que a alegada ingenuidade americana, tantas vezes denunciada como causadora de desastres na área das informações, não foi a única responsável: Sisson foi informado pelo chefe dos agentes ingleses em Petrogrado, um tal E. T. Boyce, que era sabido que o russo que apresentara os documentos a Sisson estava em contacto com quem estaria, do lado russo, a redigir toda a informação sobre as negociações de Brest-Litovsk, assim dando credibilidade ao vendedor). Nesse mês e no seguinte, Sisson comprou toda a numerosa documentação que lhe foi apresentada e, muito contente consigo mesmo, iniciou a complicada viagem de regresso aos Estados Unidos.

No entanto, em maio, ao chegar a Washington, ficou furioso quando deparou com alguma resistência à utilização da documentação que reunira. O Departamento de Estado, em particular, não manifestou qualquer interesse pelo seu conteúdo. É certo que o tratado de Brest-Litovsk fora assinado em 3 de Março e que a Rússia já estava fora da guerra. Mas, para o CPI, perfilava-se já um novo objectivo: ferir o mais possível o governo bolchevique, para beneficiar os seus opositores na guerra civil o que isso teria a ver com a função do CPI é outra questão). Sucede que o Departamento de Estado estava preocupado com o seu pessoal ainda colocado em áreas controladas pelos bolcheviques, enquanto os homens do CPI que se encontravam na Rússia estavam todos nas áreas controladas pelos exércitos brancos. Os últimos membros do grupo da Rússia e Sibéria chegariam aos Estados Unidos, em segurança, em Junho de 1919.

George Creel não se acanhou. Tendo acesso ao Presidente, dirigiu-se ao próprio Woodrow Wilson, pelo que foi com a superior autorização presidencial que os documentos foram publicados em Outubro de 1918 (ler aqui http://archive.org/details/germanbolshevikc00unit). Depois, como surgissem algumas acusações de que o seu conteúdo não poderia ser verdadeiro, a documentação reunida foi submetida pelo CPI à avaliação de dois especialistas americanos, um historiador (Franklin Jameson) e um linguista (Samuel Harper), que não puseram em causa a sua veracidade: “We have no hesitation in declaring that we see no reason to doubt the genuineness or authenticity of these fifty-three documents”.

Por essa altura, o presidente Wilson hesitava quanto ao modo de reagir contra a tomada de poder pelos bolcheviques. O grande explorador George Kennan, considerado o maior conhecedor americano da Rússia, profundo crítico do regime autocrático czarista, defensor dos liberais russos, amigo de Kropotkin, denunciou então a timidez da resposta da administração Wilson. Tendo viajado no século XIX pela Rússia, sobretudo na Sibéria e no Cáucaso, escreveu um livro – Siberia and the Exile System –, onde denunciava os abusos do sistema penal, ao mesmo tempo que apresentava um quadro fantástico sobre a vida nessas paragens que ainda hoje, segundo os especialistas, pode ser lido com grande proveito  (ver aqui: http://archive.org/details/siberiaexilesyst01kennuoft). Essa obra tornou-o famoso no seu país, permitindo-lhe entrar no circuito de conferencistas. Dedicava seis meses por ano ao speaking tour. Em 1895 calculava que, em dez anos, já teria sido visto e ouvido por cerca de 400.000 americanos e ingleses. Vangloriava-se de ter, sozinho, criado uma opinião pública americana sobre a Rússia, influenciando-a claramente contra o regime czarista.
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George Kennan, 1868
 



George Kennan




Apesar destes antecedentes, George Kennan tomou, em 1918, uma posição muito frontal contra os bolcheviques, por considerar que lhes faltava tudo – conhecimentos, experiência e educação – para lidar com os tremendos problemas criados pela queda do Czar.

Tinha razão, claro! Quem possuía respostas ideológicas tentadoramente simples não poderia senão tentar simplificar a realidade. Pois o que foi o leninismo senão uma simplificação, empobrecedora do ponto de vista das ideias, mas extremamente funcional no plano da acção, do pensamento de Karl Marx? E o que foi o leninismo no poder, com a planificação, e, sobretudo, com o estalinismo, senão uma enorme e trágica tentativa de simplificação? Uma simplificação que exigia a uniformização pela força dos povos e dos modos de vida existentes na Grande Rússia não podia deixar de ter custos humanos espantosos, intuía George Kennan.

Anos mais tarde, o seu primo afastado, o americano George Frost Kennan, curiosamente nascido no mesmo dia, mas em 1904, veio dar-lhe razão. Em The Decision to Intervene (Princeton University Press, 1958) defendeu que o desembarque na Rússia de forças aliadas, em 3 e 4 de Agosto de 1918, foi um ponto de viragem na História, marcando todo o século XX. Aquelas forças, além do mais insuficientes, ao intervirem permitiram aos bolcheviques atrair alguns nacionalistas para a luta contra o estrangeiro, dissuadir alguns daqueles que se lhes poderiam opor e isolar os exércitos brancos, garantindo a sua vitória final. Para este Kennan, ali, naquela decisão pífia, estaria a origem da divisão do mundo em dois blocos.

Ora, antes de publicar essa obra, na edição de Junho de 1956 do The Journal of Modern History George F. Kennan tinha desmontado de forma radical todo o edifício de ilusões em que se baseavam os documentos comprados e apresentados por Edgar Sisson. O célebre autor do Long Telegram, reputado russólogo tal como o seu primo, agora na versão sovietólogo, publica naquela revista científica um artigo sob o título “The Sisson documents”, no qual destrói qualquer pretensão: tudo não passava de documentos forjados, misturados com um ou outro que, sendo verdadeiro, nada continha de relevante, mas dava laivos de credibilidade ao conjunto. Por outras palavras, parafraseando alguém, os documentos verdadeiros não continham nada de relevante, os documentos relevantes não continham nada de verdadeiro.
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George F. Kennan
 

Datas erradas, personalidades que estavam onde não podiam estar, factos que não podiam coincidir com a realidade, uma série de insinuações e meias-verdades que pretendiam construir uma estória credível. A CPI, publicando aqueles documentos, no fundo provou do mesmo veneno que tinha disseminado: engoliu por boa uma ficção.

Os próprios especialistas pouco sabiam do que atestavam. Um, o historiador, não conhecia os factos e não sabia russo, pelo que não podia ler os documentos. Outro, o linguista, apenas sabia da língua. Ou seja, a CPI quisera que os documentos fossem verificados mas, como os cria (e queria) verdadeiros, encontrou quem lhe dissesse o que pretendia que fosse dito.

Kennan revela que, se o conteúdo dos documentos fosse verdadeiro, teria de se acreditar em coisas absurdas: numa altura em que a Rússia ainda estava em guerra com a Alemanha, os principais líderes estariam na lista de pagamentos do governo germânico, o Estado-maior alemão teria dois escritórios secretos em Petrogrado e o mesmo Estado-maior teria decidido as eleições de Janeiro de 1918 para o comité central do partido bolchevique (só se intitularia partido comunista em Março desse ano) e ainda que as negociações de Brest-Litovsk tinham sido uma farsa, pois todos os negociadores bolcheviques estariam ao serviço dos alemães (curiosamente, Edgar Sisson, com a maior tranquilidade, asseverava isso mesmo quanto às negociações: tudo tinha sido a fingir).

Além disso, havia erros infantis. Por exemplo, cartas de oficiais alemães escritas em russo perfeito o que, podendo acontecer, não era provável nem tinha lógica: os líderes bolcheviques dominavam o alemão. Pior era o facto de as assinaturas dos oficiais alemães conterem caracteres em cirílico…

Kennan concluiu que, muito embora não se pudesse afastar a hipótese de um financiamento alemão ao governo bolchevique, e até fosse crível que ele tivesse existido, os documentos Sisson nada provavam. Não passavam de uma colossal mistificação.

Quem fora o mistificador? George F. Kennan foi ao ponto de analisar grafologicamente a letra presente em muitos daqueles documentos, para atestar que a sua autoria deveria ser atribuída a Ferdynand Antoni Ossendowski. Mas a descoberta deste nome tem a sua pequena estória. Acontece que Edgar Sisson comprara os documentos a um tal Evgeni Semenov, jornalista russo da rede de periódicos de Aleksei Suvorin, conhecido anti-alemão e anti-semita.

Como se chegou a Ossendowski? Quando Semenov fugiu da Rússia, passou por Londres onde teve várias reuniões com Sir Basil Thompson, diretor da Scotland Yard. Foi aí que disse que fora Ossendowski quem lhe entregara os documentos.
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Ferdynand Antoni Ossendowski




Quem era Ossendowski? Por estranho que hoje nos parece, no primeiro quartel do século XX era considerado um dos maiores escritores de literatura de aventuras do mundo. Era mesmo visto como o escritor polaco mais famoso, depois do autor de Quo Vadis, Henryk Sienkiewicz (defensor da independência polaca, quando recebeu o prémio Nobel, em 1905, este declarou: “A Polónia foi declarada morta; eis uma prova de que ela vive!”).

Ora, os livros de Ossendowski, alguns deles supostamente autobiográficos, narravam aventuras extraordinárias. Hoje põe-se em causa quase tudo o que de pretensamente histórico deles consta. Nascido na Polónia dominada pelo império russo, em 1876, a sua vida é envolta em lendas alimentadas pelo próprio. Ter-se-á envolvido com a oposição russa e com nacionalistas polacos, estando uma temporada atrás das grades. A sua imaginação atribuiu a detenção a uma suposta relação próxima com o ministro Conde Witte e ao facto de ser “especialista em questões sobre ouro e platina”.

O que parece certo é que Ossendowski, hábil manuseador da pena, foi, também ele, “propagandista”. Esteve ao serviço de grupos de interesses russos que cobiçavam os capitais alemães e que, por isso, difundiam um discurso nacionalista em jornais por si controlados. Entre 1914 e 1917, esses grupos julgaram chegada a oportunidade de se assenhorearem dos negócios alemães que até aí prosperavam na Rússia. Ossendowski foi um dos seus peões: assinava artigos nos jornais nacionalistas de Suvorin que defendiam esses interesses. Não eram notícias nem editoriais. Pareciam artigos de opinião, mas eram pagos à peça. Só nos primeiros seis meses de 1915, detectaram-se vinte desses artigos, sempre no mesmo sentido, todos de Ossendowski.

Em 1917, Ossendowski serviu brevemente os serviços de informação militares russos no período entre as duas revoluções. Mais tarde, acrescentou ao seu currículo a qualidade de espião. Parece que foi apenas um professor dos verdadeiros espiões militares, na qualidade de especialista em “propaganda anti-alemã”. Acontece que os serviços de informações estavam preocupados com a superior qualidade da propaganda bolchevique e julgou encontrar em Ossendowski alguém que poderia encontrar meios de a contrariar.

Depois da revolução de Outubro, tinha disponível muito material que podia fornecer ao seu amigo Semenov para este vender aos representantes dos aliados, de modo a “provar” a filiação alemã dos bolcheviques. Pouco depois, no entanto, julga-se que em maio de 1918, teve de fugir. Optou por seguir pela Sibéria. Depois, como conta na sua obra mais famosa, afirma ter passado, depois de inúmeras aventuras, pela Índia. É nesse livro – Beasts, Men and Gods, assim mesmo em inglês (o livro foi publicado, com imenso sucesso, em 1922, quando da sua estadia nos EUA e pode ser lido aqui – http://archive.org/details/beastsmengods00osseiala – e é mesmo um bom livro de aventuras) – que dá conta dessa outra lenda do período da guerra civil, o “Mad Baron” ou “Bloody Baron” que Hugo Pratt faz contracenar com Corto Maltese na Sibéria.
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Corto Maltese
 


Roman von Ungern-Sternberg




Lidas as páginas que Ossendowski dedica ao barão general von Ungern-Sternberg, pouco se retira da loucura desmedida que lhe é atribuída por outros. O que é curioso, dado que a principal fonte de informação que é invocada sobre a personagem fantástica do general budista, um místico sanguinário que tentaria criar um reino na Ásia Central, sublevando os mongóis e impondo o seu mando com métodos selváticos, é o próprio livro de Ossendowski.  A sensação com que se fica é que, ou Ossendowski não conheceu von Ungern ou, se o conheceu, que este é menos brutal do que se conta (é certo que ficou atestado que, na Grande Guerra, von Ungern cometeu actos de grande selvajaria que levaram ao seu afastamento da frente a certo ponto, criando assim uma reputação que o seguiu até ao fim, fim esse que aliás, se deu de modo brutal pouco depois de Ossendowski pretensamente ter contactado com ele).

Depois de um período americano, Ossendowski voltou para a Polónia ainda em 1922, sem nunca se ter referido aos documentos Sisson. Tinha suficiente notoriedade (e credibilidade) para dar aulas na Escola Superior de Guerra e na Escola de Ciência Política da Universidade de Varsóvia. Também foi conselheiro do governo polaco. Era visto como um especialista na União Soviética (mais um, nesta estória …). Para o reforçar, escreveu então uma biografia de Lenine, que parece não ter grande interesse (mas que foi publicado nos EUA, em 1931, com um subtítulo interessante: God of the Godless, ou seja Deus dos Sem Deus, um título óptimo para os Estados Unidos –  sempre a habilidade para o uso da palavra como arma).

Durante a Segunda Guerra ainda terá colaborado com forças polacas que combatiam os alemães e preparavam um pós-guerra não dominado pela União Soviética. Tendo adoecido no inverno terrível de 1944, quando o Exército vermelho esperava tranquilamente que os alemães eliminassem os combatentes da resistência polaca, saiu de Varsóvia. Veio a falecer, no início de Janeiro de 1945, numa pequena aldeia.

É curioso notar que, sendo polaco e nacionalista – pelos vistos, nesse ponto, Ossendowski era genuíno, tal como Sienkiewicz –, atacou os alemães não apenas por interesses financeiros, mas também por entender que a Grande Guerra podia abrir portas à independência da pátria. Nesse cenário, a Alemanha, por ser mais forte, devia ser o mais possível debilitada. Depois, com a iminente derrota alemã, era preciso atacar a Rússia sovietizada. No final, os alemães, porventura por terem esquecido o velho “propagandista anti-alemão”, deixaram-no viver tranquilamente na Polónia entre 1939 e 1945. Mas os velhos bolcheviques não o esqueceram.

A longa mão estalinista chegou apenas um pouco atrasada. Duas semanas depois da sua morte, em 18 de Janeiro, mal a pequena localidade foi tomada, o NKVD apareceu à inquirindo do paradeiro de Ossendowski. Conta-se que foram ao ponto de exumar o corpo para ter a certeza da sua morte. Todos os seus livros foram proibidos na Polónia comunista. Todos os que foram encontrados foram queimados. Só voltariam a ser editados em 1989.

Os documentos Sisson são hoje vistos como um embuste muito mal executado e que, assim mesmo, enganou quem estava ansioso por ser enganado. Em Maio de 1916, na revista inglesa The Bookman, o então ainda editor da Cosmopolitan, Edgar Sisson, dava o seu contributo, respondendo a uma questão: “– Por que razão os manuscritos são rejeitados?” A sua tese era simples: os bons textos, mesmo que sejam rejeitados uma ou duas vezes, acabarão por ser publicados por alguma revista literária. Só os medíocres, defendia, não serão nunca aceites. O novo escritor talentoso, no seu entender, “receberá muitas cartas de rejeição, mas elas serão apenas uma parte do cenário no caminho que está a subir. A única forma de aprender a escrever é escrever, escrever e escrever mais uma vez. Muito do que os escritores de génio escreverão no início será mau – como os génios, olhando para trás, algumas vezes admitirão.”

Em 1956, Ungern e Ossendowski já não eram deste mundo. Não conseguimos determinar se Edgar Sisson ainda era vivo. Se o fosse, olhando para trás, talvez admitisse que a estória em que acreditou não era verdadeira. E que, não o sendo, tinha sido arquitectada por homens extraordinários, mas não por ele mesmo. Mas também não consta que Sisson fosse um inventor de estórias de génio (ou narrativas, como hoje soi dizer-se). Esse papel coube, na literatura e na vida, a homens como Ossendowski e von Ungern. Na política coube a homens como Bernays, Byoir e alguns aprendizes de feiticeiro que têm acolitado, a bom preço, muitos que chegam impulsionados ao poder e que, depois, não sabem o que fazer com ele. 

 
José Luís Moura Jacinto



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