sexta-feira, 10 de maio de 2013

Mundo às avessas.

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Obrigado, Bernardo. Graças a ti, pude ler há pouco um dos livros mais fascinantes por onde os meus olhos têm passado nos últimos tempos. A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt. É um livro que mete Lucrécio, o de De Rerum Natura, e Poggio Bracciolini, um caçador de manuscritos e textos antigos. Uma obra fabulosa. Stephen Greenblatt, professor em Harvard, é um dos grandes intelectuais do nosso tempo, autor de uma biografia excepcional de Shakespeare, um dos fundadores do New Historicism. Enfim, um colosso. Basta ver o que sobre ele diz a Wikipedia. A Grande Mudança ganhou o Pulitzer de 2012 e talvez isso tenha incentivado uma editora portuguesa a publicá-lo. Em boa hora o fez. Presumo, no entanto, que tenha sido um fracasso comercial. Pois com tantas histórias de rainhas, duques e princesas que andam por aí, tanta coisa  boa sobre a vida do Salazar, mais Camões melhorado por Peixoto, quem irá ler um livro sério e sólido, mas nada sisudo, maravilhosamente escrito, que se devora como um policial, sobre o tempo do Renascimento?
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         Na vida, quando julgamos que as coisas estão más, é sempre reconfortante verificar que ainda podem piorar um bocadinho. Portanto, nunca desespere. Constatei no site da Bertrand, com boquiaberto espanto, que o livro de Greenblatt, um dos melhores livros publicados em Portugal nos últimos anos, anda mesmo pelas ruas da amargura. Desceu aos infernos, bateu no fundo. Agora, imaginem, é oferecido como brinde promocional. Isso mesmo: quem adquirir Madrugada Suja, o novo romance de Miguel Sousa Tavares, apresentado como «Três histórias que se cruzam desde uma aldeia até ao topo do poder», terá direito a um exemplar de A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt  (*Oferta limitada ao stock existente). Provavelmente, trata-se de uma compensação por danos morais, da justa indemnização devida a todos quantos, por dolo ou negligência, tiverem a infausta ideia de entrar numa livraria ao entardecer e perguntar ao rapaz do balcão: «têm o último do Sousa Tavares?». Têm.  

Miguel Sousa Tavares é um escritor competente de livros para crianças, e não tenho palavras para lhe agradecer os momentos que passei com as minhas filhas na partilha doméstica de O Segredo do Rio. O problema é quando  pretende mudar-se para o mundo dos crescidos. Aí, temos pérolas. Destaco uma, refulgente: a página fatídica em que se transcreve, de fio a pavio, uma ementa do restaurante Tavares, enxertando-a no meio da narrativa, a escopro e martelo. A sinopse de Madrugada Suja, só por si, é um tratado. Ei-la aqui, da base até ao topo, ou do topo até à base, em que Filipe, o neto, se enreda na trama e esta, a trama,  se confunde com o seu passado esquecido. Enquanto isso, intercaladamente, aparecem várias vozes narrativas. Depois entram em palco o final do dia e o raio verde, que vêm pôr na ordem o caos aparente:


No princípio, há uma madrugada suja: uma noite de álcool de estudantes que acaba num pesadelo que vai perseguir os seus protagonistas durante anos. Depois, há uma aldeia do interior alentejano que se vai despovoando aos poucos, até restar apenas um avô e um neto. Filipe, o neto, parte para o mundo sem esquecer a sua aldeia e tudo o que lá aprendeu. As circunstâncias do seu trabalho levam-no a tropeçar num caso de corrupção política, que vai da base até ao topo. Ele enreda-se na trama, ao mesmo tempo que esta se confunde com o seu passado esquecido. Intercaladamente, e através de várias vozes narrativas, seguimos o destino dessa aldeia e em simultâneo o dos protagonistas daquela madrugada suja e daquela intriga política. Até que o final do dia e o raio verde venham pôr em ordem o caos aparente. 



Viva a Wiki!
Desenhado com a boca por um invisual de Arronches, Frédéric Chopin travestido de MST

 

         É o mundo às avessas: quem comprar Sousa Tavares, leva como brinde Stephen Greenblatt... Quando, em direitas contas, deveria ser o contrário: quem comprasse um livro de Stephen Greenblatt, poderia trazer para casa dez, ou mesmo aí uns doze ou catorze, romances de Sousa Tavares. São objectos muito práticos, dão sempre jeito em qualquer habitação. Depois de uma batida às lebres no Alentejo profundo, saboreando o tinto encorpado no lábio enfastiado, o  cenário marialva reclama sempre um adereço: a cálida companhia de uma lareira antiga. Então, quando falha a acendalha, que avance a prosa Tavares. Resulta sempre.         

         Só vejo uma vantagem nesta operação comercial: em casa, com calma e vagar, as pessoas sensatas poderão comparar os dois livros. Stephen Greenblatt vs. Sousa Tavares. Depois falamos, está bem?  
 
 
António Araújo  

 

7 comentários:

  1. Eh, eh! Diabólico, como sempre...
    Que escassez de iconoclastia tem este país, que falta faz malhar duro nos Domingos Amarais e Sousas Tavares que nos empestam o ar...
    E que raio será o raio verde?

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  2. Muito bem. Uma só picuinhice: o librorum venator chamava-se Poggio e não Poggi.

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  3. Vou ler com atenção "A Grande Mudança" e vou utilizar com ponderação, no próximo inverno, as acendalhas MST (já agora podemos também utilizar as páginas do Expresso)

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  4. Apesar de tudo, vale a pena ler a crítica de Jim Hinch sobre o livro, no Los Angeles Review of Books: Why Stephen Greenblatt is wrong. A crítica é de Dez. 2012, e contem tudo o que é necessário para um bom contraditório.
    Fernando Oliveira

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  5. O livro do Greenblatt é agradável (até já o ofereci a um familiar), mas está longe de qualquer rigor histórico e é facilmente desmontável por qualquer especialista da IM ou do Renascimento. E não é só a crítica do Jim Hinch a ser demolidora.

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  6. Acabei de ler a Grande Mudança e gostaria muito de agradecer a António Araújo a revelação desta obra. E comprei a obra propositadamente, não foi brinde. Ignaro talvez, mas não abusemos...

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