segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (3).





 

Aix-en-Provence

 


9-VII
Aix revisitada


 


 

The past is never dead. In fact, it's not even past.

William Faulkner

 

 


Já não sei quantas vezes voltei a Aix desde que, em Junho de 1974, na companhia da Guida Miriam, conduzindo uma carrinha Renault carregada de livros e alguns móveis mais leves, me fiz à estrada para regressar a Portugal após a chegada recente de D. Sebastião. E cada visita que lhe faço, mesmo num passado Verão numa vivenda alugada em Puy Sainte-Réparade, ela me fornece uma sensação diferente, oscilante entre a decepção e a melancolia, a saudade e o alheamento progressivo resultante do passar dos anos. Agora, regressando uma vez mais à cidade mítica que foi a da minha residência nos derradeiros quatro anos de exílio francês, sinto que ela se afasta de mim e que pertence cada vez mais a um passado que passou, mesmo que este, como se sabe, nunca tenha passado, a não ser quando todo o nosso ser se dissolver no puro nada final donde viemos, deixando de haver o indivíduo em cuja lembrança estiveram cerebralmente guardada algum tempo as coisas idas, a menos que alguma memória perdure ainda dessas lembranças em escritos nos quais poisem outros olhos, ainda vivos, o que dará a esses rabiscos e sinais deixados em páginas brancas sílabas sobreviventes do que foi a nossa vivência, a experiência duma vida efémera como todas, prolongando nas mentes dos nossos eventuais leitores o prazer e a plenitude do que sentimos, a menos que, dessas páginas escritas se salve sobretudo a angústia da espera, o desespero de a vida ser sempre lenta e a esperança violenta, como o dizia Apollinaire, debruçado sobre o Sena na Ponte Mirabeau. a ver passar por baixo “dos eternos olhares a onda tão lassa”…

Antes de mais, aqui estou no Cours Mirabeau, com os novos plátanos que substituíram aqueles que há poucos anos atrás vi definhados, a secarem, o que esgarçou a abóbada de folhagem que torna esta curta avenida um dos locais mais agradáveis de Aix, com as suas fontes a meio da rua e os visitantes que deambulam com a lentidão de quem saboreia uma dádiva rara da vida, o estarem aqui, neste local mítico. A gente continua a ser a mesma, cosmopolita e indolente, satisfeita por se fazer fotografar no meio deste prazer feito de sombras, belas lojas, esplanadas de cafés célebres – como o Café des Deux Garçons, que eu conhecia dum filme de Chabrol, visto pouco tempo antes de vir viver para aqui, em 1970, recém-doutorado em Estrasburgo, agora na capital do “bon roi René”, na terra de Cézanne, para ensinar na universidade da Provença –, belos palacetes de fachadas com cariátides ou frisos decorativos. Depois, a dois passos do seu termo, tomando a estreita passagem Agard, o mercado em frente do tribunal, nos sábados de manhã, onde se vendem livros – foi aqui que comprei quase todos os exemplares que tenho da Biblioteca da Pléiade a preços menos exorbitantes do que nas livrarias –, saquinhos de alfazema, panos típicos provençais e frutas. Mas Aix desenvolveu-se bastante desde que tornei a Portugal graças ao 25 de Abril, já que há agora edifícios modernos impressionantes como a Cité du Livre e toda uma série de bairros novos e amplos que se estendem para a periferia a partir do exterior do velho burgo primitivo. Para me situar na Aix onde vivi os anos derradeiros de expatriação, tenho de voltar à encantadora praceta dos Quatro Golfinhos, o meu recanto mais acarinhado durante o tempo que aqui passei, sentando-me de quando em quando no rebordo da fonte desenhada no séc. XVII por Claude Cambot, ouvindo jorrar das bocas dos quatro cetáceos barrocos os fios tranquilos de água, com a sensação de que estava ali, de certo modo, o umbigo do universo ou, pelo menos, o meu meridiano de exilado à espera que em Portugal a Força das Coisas acabasse com a Ditadura e me permitisse retomar o meu destino de pobre lusíada desgarrado, encalhado, aguardando que a maré da História me fosse soltar daquele rochedo amável a que estava atado. Agora, nesta visita a Aix que talvez seja a derradeira, venho saudar em jeito de despedida os meus simpáticos golfinhos de há tantos anos atrás, alheios ao meu destino singular, empenhados tão só em encherem um tanque que nunca estará repleto de água, emblema mesmo dessa tarefa de Tântalo.

Valerá a pena amar uma terra, mesmo que esta, no fundo, como entidade humana colectiva, como comunidade de seres no tempo e no espaço, nunca se dê minimamente conta do modo como a amamos? A pergunta pode parecer ociosa ou mesmo grotesca. Todavia, ela tem a sua razão de ser, até porque as terras onde o acaso nos fez viver algum tempo da nossa limitada permanência nelas não sabem ou não podem responder ao carinho pessoal que lhes dedicamos, a menos que o responsável por esse sentimento a assinale de modo tão público, por um livro ou uma obra de pintura, que passa doravante a ser objecto de alguma retribuição pelos seus agentes culturais, Nada disto me preocupa realmente, isto é, nunca cuidei de ser estimado como resposta a uma devoção minha que pudesse manifestar por alguma terra onde passei algum tempo da minha vida, já que, no fundo, está na lógica do amor nunca pedir realmente que nos retribuam o nosso desvelo pelos objectos ou seres ou cidades da nossa ternura. O facto de me sentir um entusiasta da Provença e, em especial, desta maravilhosa cidade de Cézanne, não me leva a solicitar qualquer retribuição, pois o facto relevante é que essa cidade ocupou no foro mais íntimo da nossa memória, do nosso psiquismo ou da nossa saudade um papel importante, pois ali saboreei um exílio de algum modo doirado, depois dos três anos gastos na gélida e xenófoba Estrasburgo, três anos metido na sala 4 da Biblioteca Universidade, na Place de la République, a preparar a minha tese de doutoramento.

Aqui, ao contrário, cheguei a fazer alguns amigos e tive o tempo, oscilando entre o desespero e a esperança, de ansiar por um qualquer Messias ou D. Sebastião que me viesse libertar por uma revolução, uma golpe militar ou ainda qualquer outra forma de convulsão política que pusesse fim à longeva ditadura que durou de 1926 a 1974, e que eu, um dia, ao chegar atrasado a um colóquio do departamento de estudos luso-brasileiros, na Faculdade de Letras de Aix-en-Provence, deparei com expressões de espanto e apreensão nos rostos dos colegas e alunos que me olhavam com especial atenção: só num intervalo alguém me veio comunicou a notícia essencial que até ali m escapara, nesse 25 de Abril do ano de 1974, em Portugal, e que tornaria aquela data inesquecível no rol dos dias apagados que passam. Hesitante entre a certeza de que uma revolução feita pelas forças armadas só poderia ter um sentido positivo e libertador e o receio de que, ao invés, um quartelazo viesse a agravar a situação ditatorial de um país há treze anos desencaminhado numa sinistra guerra colonial em três frentes africanas, a verdade é que uma convicta certeza de que a dialéctica histórica nos forçava a escolher o caminho da Liberdade, aquele que me permitiria, dali a pouco mais de um mês, retomar a carreira que ambicionava no meu país, não naquela pátria emprestada e indiferente aos meus tormentos de expatriado.

 


João Medina



 

 

 

Sem comentários:

Enviar um comentário