domingo, 2 de junho de 2013

O zero e o infinito.









Esta história não tem política nem ideologia. Dela, ninguém sai bem: nem o comunismo da Alemanha de Leste, nem o capitalismo das farmacêuticas ocidentais. A notícia, que eu saiba, não chegou aos nossos jornais, mas posso estar enganado. O El País publicou-a e o Der Spiegel tem acompanhado o caso, com novas e cada vez mais graves revelações. Nunca me canso de aconselhar e, novamente, aqui vai: não percam a edição online em língua inglesa do Der Spiegel. Têm notícias sobre o caso aqui, aqui e aqui.






Do que se trata? Em poucas linhas, do seguinte: durante anos, cerca de 50 clínicas da República Democrática Alemã (RDA) colaboraram com multinacionais farmacêuticas, realizando mais de 600 testes. Os alemães de Leste foram usados como cobaias de testes de produtos que, devido às normas mais apertadas que vigoravam do lado de cá do Muro, não poderiam ser realizados na Europa ocidental. O rol das empresas implicadas é extenso e parece uma espécie de Alamanch Gotha da indústria medicamentosa: Sandoz, Ciba-Geigy (agora, do grupo Novartis), Bayer, Pfizer, Schering, Boehringer (agora, do grupo Roche), Sandoz... Firmas alemãs, suíças e norte-americanas, com a cumplicidade das autoridades da RDA, fizeram testes em milhares de pessoas. Calcula-se que 50.000 seres humanos foram objecto de testes, muitas vezes com o envolvimento de médicos corruptos, segundo as notícias mais recentes.  Por cada ensaio, os depauperados cofres da Alemanha comunista  arrecadavam cerca de 450 mil euros. A Stasi, claro está, acompanhava a operação. O actual director do arquivo da antiga polícia política referiu há dias que a indústria farmacêutica “beneficiou das condições políticas autoritárias na RDA”. O pior do comunismo ao serviço do pior do capitalismo. Num caso e noutro, um denominador comum: o desprezo pela dignidade humana. Quimioterapia, antidepressivos, medicamentos para o coração, tudo foi testado, sem regras nem lei, na Alemanha de Leste. Várias pessoas morreram. De muitas não há sequer notícia do que lhes aconteceu, sendo difícil saber se morreram devido a estas experiências que revelam uma desumanidade arrepiante. Não irei entrar em pormenores macabros. Apenas uma história, entre tantas: em 1989, a Boehringer realizou tratamentos hormonais em, pelo menos, 30 bebés prematuros.

Somente um pedido: nada de histerias e, menos ainda, não se compare isto com as experiências médicas nazis. Por muito grave que este caso seja – e muito ainda há a revelar, já que as empresas se eximem a dar explicações… –, por muito grave que este caso seja, repito, não é minimamente comparável ao que fazia o dr. Mengele e tantos outros nos campos de extermínio do Holocausto. 

Em todo o caso, e com serenidade, é impressionante ver como Ocidente e Oriente se souberam entender para tratarem juntos de um único interesse: o lucro, o ganho, o vil proveito. Mesmo que à custa de lesões irreversíveis ou até de mortes. Ao certo, não se sabe quantas mortes, mas algumas já foram determinadas. Passou-se tudo isto aqui ao lado, na Europa «civilizada», a quatro ou cinco horas de avião de distância de Lisboa, num tempo em que já éramos nascidos e crescidos. Aqui ao lado, com o Muro de permeio. Brutal.
 
 
António Araújo

3 comentários:

  1. ... brutal, sim, mas porque é que já 'nada' surpreende realmente? Porque será que a cada revelação de mais uma monstruosidade individual ou colectiva apenas um cansaço imenso acompanha a dor surda que nos acode? Parece que dos homens tudo se espera e nada faz ter esperança. Nem é sinal de tempo algum em concreto, a vilania é transversal aos séculos, aos povos, à humanidade. Brutalmente desumana. Para sempre.

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  2. neste exacto momento a Margarida (23:43) pode contabilizar uma existência aproximada de 7000 milhões monstros individuais. a probabilidade de tudo correr mal é do caraças

    luís de jesus

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  3. O mais grave é que a situação está longe de ser coisa do passado. Como tantas outras industrias, foi deslocalizada:
    http://www.bbc.co.uk/news/magazine-20136654

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