quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um mês no Luberon: extractos dum diário provençal (6).







Aguarela de Paul Hogarth





13-VIII                                                                                    
Aix revisitada

 

As cidades são como pessoas, isto é, ligamo-nos ou resistimos a elas como o fazemos com os outros viventes que nos rodeiam. Em ambos os casos, a estima ou desafecto que nos liga a elas perde-se ou aumenta seguindo a mesma química complexa dos sentimentos inter-humanos. Passámos quatro abençoados anos de Exílio aqui, nesta radiosa cidade-refúgio, onde a Guida Miriam como eu conseguimos fazer poucos amigos íntimos nesse período feliz de expatriação, ocupados cada um de nós com os seus afazeres essenciais e absorventes, ela coma educação dos nossos filhos, cujo número aumentou com o nascimento da Sibila em Aix, eu com o ensino na universidade e a escrita dos meus livros, esperando sempre o Regresso à Ítaca voluntariamente perdida para escaparmos à humilhação de viver debaixo da Ditadura de Salazar e, por fim, de Caetano. As constantes revisitas feitas nos anos seguintes a Aix, com a peregrinação ritual ao bairro das Tourelles, onde tínhamos alugado um apartamento donde víamos a emblemática montanha de Sainte-Victoire, aquela que Cézanne incessantemente pintou e repintou, foi a nossa maneira de reavermos uma época, apesar de tudo feliz, ali passada.

Foi nesses sossegado recanto periférico que vivemos esse quadriénio feliz, junto do pequenino rio Arc, o mesmo onde, muito tempo antes, Émile Zola e Paul Cézanne pescavam camarões quando por aqui viveram também. O nosso apartamento ficava num primeiro andar duma pequena vivenda, com vizinhos que nunca visitámos nem nos visitaram, já que o gaulês, mesmo do Midi, não é dado a acolher estrangeiros. Verdadeiramente falando, só tivemos dois amigos íntimos, Mme. Gravagne, professora primária dos nossos filhos na escola infantil a dois passos de nossa casa, e o seu marido, um simpático e culto professor de Latim num  liceu de Aix, contente por  descobrir em mim um admirador de Virgílio e Ovídio. Curiosamente, esta estima reforçou-se sobretudo quando, a seguir ao 25 de Abril de 1974, esta casal nos convidou para uma almoço destinado a celebrar a democracia portuguesa e, ao mesmo tempo, hélas!, a nossa partida definitiva em regresso a Portugal. No nosso bairro tínhamos ainda uma vizinha próxima que nos estimava muito por via do seu filho ser meu aluno na Faculdade de Letras de Aix, o estabanado e sempre jovial Marc Cleaver, cujos conhecimentos de língua portuguesa  levariam  a visitar o Brasil e  ali coleccionar, desde então, desastrosas ligações amorosas tão ardentes quanto breves, sempre com mulatas brasileiras que enchiam de desgosto a pobre Madame Cleaver, uma viúva delicada e muito infeliz.

Eram, em contrapartida, quase inexistentes as nossas relações com os outros colegas no medíocre departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Faculdade de Letras, chefiado por um francês das Landes, um barrigudo e pedante especialista de teatro dos Jesuítas em Latim, no século XVII, que dessa especialidade literária tão aberrante conseguiria a pirueta extraordinária de saltar para o ensino da língua portuguesa e a direcção do departamento. Estava ele casado com uma senhora católica e muito carola. Os demais professores do departamento também não valiam um figo, havendo ainda um brasileiro semianalfabeto que prosperaria, apesar da sua vacuidade intelectual, naquele acanhado mundo académico do Midi, espécie de Aldeia dos Macacos numa terra ensolarada. Nenhum deles deixou vestígios de assinalar nos estudos de que se diziam profissionais encartados. Contudo, para mim, pestiferado aos olhos das autoridades portuguesas, mesmo depois do refalsado aggiornamento político da Ditadura levada a cabo pela hipócrita cosmética de Marcelo Caetano – que crismava a Censura de Exame Prévio, a PIDE de DGS (Direcção-Geral de Segurança) e, sobretudo, persistia na criminosa guerra colonial em três frentes africanas –, [1] aquele lugarzito na Faculdade de Letras de Aix (o velho edifício universitário anterior ao nosso moderno prédio, ostentava pomposamente, incisa na fachada, a menção de ser “Aquarum Sextiarum Literarum Facultas”) garantia-me pelo menos um viático suficiente para esses anos de espera, mesmo que o grau de doutor pela Universidade de Estrasburgo não me tivesse dado ali a posição académica a que tinha direito. “Faça-se nacional, peça a nacionalidade francesa – e então lhe daremos o lugar de maître-assistant (professor auxiliar)!”, dizia-me com azedume o meu barrigudo director, conselho que, por fim, decidi seguir, preenchendo os papéis necessários para vir a adquirir a nacionalidade francesa nesse anos em que Portugal não passava dum país com três guerras coloniais e sem hipótese alguma de entrar na Comunidade Económica Europeia. Felizmente a lentidão do processo e, sobretudo, as minhas hesitações em abdicar da minha escarnecida e aviltada nacionalidade lusa, tornaram o meu processo de aquisição da cidadania francesa tão lento que o 25 de Abril chegou e, com ele, a solicitação foi deitada às urtigas. A nossa vida ensimesmada naqueles quatro anos aquenses-sextienses tinha aspectos que, olhados agora de longe no tempo, parecem bizarros, como o de não usarmos de telefone, já que este pouco ou nada serve para quem vive isolado numa ilha e não coabita com os outros ilhéus nem precisa de entrar em contacto com a pátria longínqua donde se exilou.

E agora, passeando uma vez mais pelas ruas da sempre airosa Aix, sinto com uma recalcada tristeza que já nada me prende a ela, que talvez nunca mais aqui volte a subir o Cours Mirabeau, debaixo da sombra dos seus plátanos, a esta terra onde outrora passei quatro anos de Espera e Desespero e até consegui ser feliz, na medida em que até no Exílio a alma busca consolações que lhe façam esquecer as suas tribulações mais secretas e insuperáveis, confiante embora na vinda do Encoberto no final da expatriação tão longa e. apesar de tudo, útil.
 

 
João Medina





[1] Eu agravava, nesses anos de expatriação francesa, a minha desafeição pela nossa Ditadura lusa colaborando na Seara Nova e no Diário de Lisboa, publicando neste último com uma crónica semanal que vinha já dos tempos de Estrasburgo, em 1968, “A Torre de Babel”.

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