quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

De como me tornei democrata monárquico.

 
 
Soutelinho da Raia
Imagem de Gastão de Brito e Silva

 
 
Era eu pequenino quando minha avó nos contava uma estória diferente das estórias que normalmente se contavam às crianças. Era uma estória verdadeira parecida com as estórias da carochinha, ou estórias inventadas.
A estória era assim. Era uma vez um senhor chamado Alfredo Pires, casado com uma senhora chamada Gracinda Amaro. Pessoas boas e tementes a Deus, após um ano e tal de casadas foram contempladas com uma filha chamada Delfina, a quem muito amavam.
Esse bom casal cristão vivia numa aldeia arraiana, chamada Soutelinho da Raia, freguesia do concelho de Chaves, situada aproximadamente à mesma distância – uns catorze quilómetros - entre esta cidade e Montalegre, distando cinquenta metros da raia algumas das casas da aldeia, entre as quais se contavam duas das cinco casas desse “bom casal cristão”: um casarão para a palha e para o feno e outro para a lenha. (Para edificação dos leitores, esclareço, entre parêntesis, que a terra dos meus avós, Soutelinho da Raia, juntamente com Cambedo e com Lama de Arcos, fez parte dos Povos Promíscuos (sic), até à assinatura do Tratado de Lisboa, em 1864, entre Espanha e Portugal. Esses “Povos Promíscuos”, encravados entre os dois países peninsulares, foram independentes desde o século X até ao ano da assinatura desse tratado.) 
Os meus avós, além de possuírem uma vasta e farta casa de lavoura, com muitas terras para batatas, centeio, milho e feno, e três leiras para toda a espécie de hortaliça, própria da região, soutos de castanheiros, e vários vinhedos, localizados estes, como todos os vinhedos dos habitantes de Soutelinho, no termo de Couto de Ervededo, tinham uma loja abastecida de todos os géneros alimentícios essenciais (próprios de uma mercearia típica),  desde o arroz, o macarrão e o açúcar ao azeite e ao petróleo; desde o vinho e o vinagre ao bacalhau e aos presuntos; e abastecida também de produtos de primeira necessidade, tais como tecidos e panos para roupa, e linhas, dedais, e coisas desse jaez. Além de estabelecimento de víveres, a loja estava também sortida de rações para cavalos, éguas e burros, que tão convenientes eram para os almocreves que andavam noite e dia de terra em terra e de feira em feira, e que com tanta frequência se viam surpreendidos por fortes temporais e, sobretudo, por enormes nevões, que os impediam de continuar caminho, obrigando-os, portanto, a pernoitar, eles e os animais de carga, num dos nossos armazéns, a que chamávamos o Pátio, e onde eram alojados  regularmente os animais da família Pires.
Dito o quê, passemos a falar do caso a que alude o título desta prosa.
Deu-se o 5 de Outubro, em 1910, e nele e com ele a morte da monarquia e o nascimento da república, em Portugal. Como alguns sabem, a transição não foi totalmente pacífica. Por aqui e por além, através do país, houve casos de resistência por parte dos monárquicos. Porém, os núcleos principais dessa resistência foram o concelho de Vinhais, por onde, no dia 4 de Outubro de 1911, entraram as tropas monárquicas, sob o comando de Henrique Paiva Couceiro, anos mais tarde chamado o Paladino, e o concelho de Chaves, onde se deram os combates ou escaramuças entre as tropas monárquicas e as tropas republicanas. E foi assim que um dia do ano do Senhor de 1911, quando minha mãe tinha apenas um ano e tal de idade, passou por Soutelinho da Raia um destacamento de militares monárquicos (digo “destacamento” por ser ignorante em nomenclatura e terminologia militares), o qual entrou na loja do meu avô Alfredo e comprou, ao preço estabelecido, e a pronto pagamento (vai em negrito para abono e encarecimento da honra dos monárquicos), praticamente todo o sortido, que a loja continha, de comida para gente e para animais, de que sobressaíam os presuntos e as rações para os jumentos.
Ora sucedeu que algum tempo depois entrou na loja de meu avô Alfredo um destacamento de militares republicanos, não para comprar  coisa nenhuma, mas para confiscar tudo (no português castiço de Soutelinho da Raia dir-se-ia roubar) e para prender o meu avô Alfredo. E por que lhe confiscavam os bens e por que o prendiam?  – perguntou o meu avô. Que mal tinha feito ele? A resposta a esta justa pergunta, por parte do comandante, ou lá o que era, foi dizer que meu avô tinha cometido um crime ao vender os géneros alimentícios e as rações dos animais às tropas monárquicas. O ter o meu avô replicado que, como comerciante de loja aberta ao público, era obrigação dele vender a quem lhe pagasse, de nada lhe valeu. De maneira que, ao ver-se algemado e levado preso, a caminho de Chaves, só teve tempo de dizer à minha avó: - Ó Gracinda, pega na filha ao colo e atravessa imediatamente a fronteira para a Espanha. E foi o que a minha avó fez, sem qualquer hesitação. Correu para a Lamarelha (o bairro de Soutelinho mais próximo da Galiza) e atravessou a fronteira, junto da fonte e do poço de lavar roupa, fronteira assinalada por um marco de granito, enterrado no solo, o qual, como todos os outros, inclusive um que se encontrava no meio de uma das nossas propriedades chamada Poulão, tinha  de um lado um P para designar Portugal e do outro lado um E para designar Espanha.
Atravessada a fronteira, dirigiu-se a Vidiferre, a aldeia da Galiza mais próxima da nossa, e aí encontrou a minha avó Gracinda, para ela e para a filha de colo, asilo e calor humano em casa de uma das várias famílias amigas dos Pires de Soutelinho da Raia.
E foi por causa desse acto discricionário, ilegal e inumano perpetrado pelos republicanos portugueses que eu fui sempre romanticamente democrata monárquico, com certa pena de nunca poder ter sido orgulhosamente monárquico constitucional.
      
                                        António Cirurgião



4 comentários:

  1. presumindo que seja excerto de um livro, muito gostaria de saber qual.

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    1. Não querendo substituir-me ao autor do texto, julgo ser um escrito (ainda) inédito

      Cordialmente

      António Araújo

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    2. Resposta

      Prezado Sr. Dinis, embora António Araújo, em nome do MALOMIL, já lhe tenha dado a resposta apropriada, julgo ser meu dever informar que o presumível livro a que o Sr. alude se encontra em estado de gestação no ventre cioso e preguiçoso da minha computadora.
      Perante a sua lisonjeira hipótese, apetece-me opinar que o canibalismo literário cresce em proporção geométrica com a cibernética, mas, quanto ao auto-canibalismo literário, que a sua observação pressupõe, é minha convicção que ele é apanágio dos génios, como, por exemplo, do recém-falecido Umberto Eco, o qual declarou que se plagiou a si mesmo, no seu último romance: Número Zero.
      Antes de pôr um ponto final na minha prolixa e pernóstica resposta, apraz-me informar, por ser verdade, que essa historieta que o Sr. presumiu ter sido transcrita de um livro meu publicado, foi escrita há uns quatro dias, por sugestão de uma sobrinha minha. Tendo-lhe contado recentemente, por telefone, esse episódio de família, ela pediu-me, como costuma fazer, que a pusesse em letra de imprensa, e eu fiz-lhe a vontade.
      Atentamente,
      António Cirurgião

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  2. Muitos rapazes após contactos com clérigos um pouco por todo o mundo .Contatos íntimos e dolorosos deixaram de acreditar em Deus.Não é que essa descrença os tenha tornado piores ou melhores mas faz sentido?!Creio que não mas lá está não sou crente.

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