segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

No 90º aniversário de Mein Kampf (5).

 
 
 
Do “princípio da chefia”(Führerprinzip)
ao processo genocidário posto em prática pelo III Reich
 


Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 
 
“Durante os doze anos terríveis do III Reich, o povo alemão conheceu nele qualquer coisa de metafísico quase incompreensível só pela razão. Da região austro-bávara do Inn, ali onde, entre o Natal e a Epifania, as ferozes tradições ancestrais são ainda as mais vivazes, surgiu um homem. A vulgaridade estava marcada sobre o seu rosto por uma mecha negra e o ridículo crescera debaixo do seu nariz; ele tinha o olhar ardente do predestinado. Ele tocou tambor durante muito, muito tempo, através de todo o país, anunciando-se como sendo ele mesmo o Messias antes do Advento do ódio, até ao momento do solstício em que a tempestade se levantou levando consigo a Alemanha. Todos estavam fascinados por ele como se estivessem agachados na esperança de que a tempestade passaria sem estragos por cima das cabeças deles ou mesmo que se tivessem juntado, de cabeça levantada, ao exército nacional-socialista: membros do Partido, directores de fábricas de armamentos, porta-estandartes da Juventude Hitleriana, dirigentes de organizações femininas, chefes de bairros, raparigas, soldados, soldados cujas guerras relâmpago devastaram a Europa. Envolvido numa brilhante alegoria, ele lançou-os na chuva apocalíptica de fogo e de bombas dos juízes finais. Tombados num abismo de miséria e degradação, os sobreviventes acordaram por fim, no meio de ruínas e de cadáveres, na apatia duma nova consciência. O que é que acontecera? Como é que aquilo sucedera? Mas não era possível! Tudo aquilo acontecera mesmo? Mas não era possível! Tudo aquilo não o tínhamos sabido!”
                                                                                          Eugen Kogon, O Estado SS, 1946.[1]
 
 
            1. O Führerprinzip

 
O Führerprinzip (“princípio do chefe” ou da chefia) está definido no Mein Kampf como “princípio da personalidade”, ou seja, como pedra angular desde a mais pequena célula que a comuna constitui até ao governo supremo do conjunto do país, insistindo Hitler que “não há decisões da maioria mas penas dos chefes responsáveis”, sendo necessário retomar esse princípio que fizera outrora do “exército prussiano o mais admirável instrumento do povo alemão tem, em sentido lato, de ser o princípio da construção de toda a nossa noção de Estado: a plena autoridade de cada um sobre os seus subordinados e responsabilidade perante os superiores. (...). Desde a comunidade até à liderança do Reich, o Estado racial-nacionalista não tem nenhum corpo de representantes que tome decisões por maioria, mas um corpo de conselheiros ao lado do líder escolhido, que lhes distribui o trabalho a fazer.”[2]
Em suma, este conceito basilar do regime político nazi - o princípio da chefia - torna evidente que na Alemanha totalitária a edificar o princípio der chefia deveria ser a pedra angular de um Estado autoritário com poderes que emanam do chefe no topo da hierarquia política. Antes mesmo de redigir o M.K., Hitler insistira na ideia de que no NSDAP era este princípio que dominava no partido, sendo a democracia uma tolice – tema recorrente no seu livro autobiográfico e, ao mesmo tempo profecia e programa publicado como vademecum nacional-socialista em 1925 e 1926.[3]
 


Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 
           2. A “Gleichschaltung” operada pela ditadura totalitária do III Reich
 
Tomado o poder em 1933, Hitler publicou uma série de diplomas que estabeleciam e reforçavam e de modo absoluto e total este Führerprinzip.[4] Iam nesse sentido irrevogável as grandes reformas político-constitucionais que estabeleciam a partir de 1933 o Estado totalitário e racial através da chamada Gleischaltung, isto é a coordenação e unificação de todo o Reich mediante uma série de leis que visavam criar um Estado altamente centralizado sob o domínio exclusivo e total do NDSAP, o partido nazi. Na base dessa coordenação total estavam essas duas premissas tão claramente e expressas e assumidas por Hitler no seu livro de 1925 e 1926 como imperativos categóricos de um pleno resgate da raça nacional, isto é, para além do princípio da chefia, o ditame rácico de restaurar a pureza da germanidade desse país que o Führer dizia adulterado pela presença dos judeus.
Integravam essa Gleichschaltung vários diplomas de instauração da radical ditadura nazi, aprovados a partir de 1933 e nos anos seguintes para completar a tal coordenação global do Estado, da sociedade, de toda a forma de actividade política, cultural e ainda a vida de todos os dias. Nesse ano de 1933, a “coordenação da vontade política” traduziu-se numa série de diplomas fundamentais: a 21-III, o diploma amnistiando todos os nazis até então inculpados de delitos e instauração de medidas contra boatos malévolos, assim como a criação de tribunais especiais (os “tribunais do povo”), assim como os deputados comunistas eram proibidos de tomar lugar no Reichstag, a 22-III, o decreto de “habilitações” (ou autorizações)  dando especiais poderes a Hitler por quatro anos ( diploma renovado em 1937), a 29-III eram abolidas as liberdades fundamentais e a chamada lei van der Lubbe prescrevia a forca como sanção retroactiva para incêndios, a 31-III a primeira Lei de Coordenação dos Estados e do Reich, estabelecendo novas assembleias estatais e locais, a 7-IV a segunda Lei da Coordenação nomeia novos governadores estatais, a 8-IV a lei da Reconstrução do funcionalismo público, distinguindo entre Reich, Estado ou instituições locais, afastando desde logo todos os “elementos desleais” e judeus, a 2-V são dissolvidos todos os sindicatos e criada uma Frente do Trabalho, a 17-V suprime-se o direito à greve, a 20-V os bens do Partido Comunista Alemão são confiscados, a 14-VI a lei da Nova Formação do Campesinato Alemão, e os decretos dissolvendo os partidos políticos -  a 22 o SPD, a 27 o DNVP , a 28 o Partido do Estado, a 4-VII o Partido Bávaro, a 5 o Partido do Centro (católico) –, a 8-VII é assinada a concordata entre a Alemanha nazi e o Vaticano,[5] a 14-VII torna-se o NSDAP o partido único, proibindo-se  a criação de novos partidos políticos, a 15-VII a lei da reorganização corporativa da Agricultura, a 14-X a dissolução do Reichstag, a 12-XI o referendo nacional  aprovando a política nazi com 95% dos sufrágios, a 1-XI a lei que assegura a Unidade do Partido e do Reich, a 12-XI as eleições para o Reichstag dão 93% dos votos ao NSDAP e um novo referendo autoriza a Alemanha a retirar-se da SDN. A esta avalanche de diplomas de coordenação ditatorial e absoluta seguir-se-iam ainda outros importantes diplomas, em 1934: em 30-I é promulgada a lei reorganizando o Estado e suprimindo as províncias (Länder), a 24-IV é criado o Tribunal do Povo (Volksrgerichthof), a 19-VIII 89.3 % dos votos aprovam os novos poderes de Hitler. Em 1935, a 13-I, um plebiscito aprova com 96 de votos o regresso do Sarre ao Reich alemão, a 14-III um decreto violando o tratado de Versalhes cria a Luftwaffe, a 16-III é aprovada a lei da reorganização da Wehrmacht, a 25-V  a lei do Serviço do Trabalho para o Reich, tornando-o obrigatório. aA 17-VIII é proibida a Maçonaria, a 15-IX são aprovadas a leis antijudaicas de Nuremberga e a cruz gamada ou suástica[6] é tornada emblema oficial do Reich.
A revolução hitleriana e o estabelecimento acelerado do III Reich milenar desde Janeiro de 1933, a começar em 24-III-1933 com a “Lei para remediar a miséria do povo e do Reich”, aprovada pelo Reichstag, que funcionou como uma espécie de constituição preliminar do Reich, deram ao gabinete de Hitler um poder legislativo ilimitado e o direito de determinar todas as disposições constitucionais necessárias, exceptuadas as parlamentares e do conselho federal (Reichsrat), o que, de certo modo, eliminava o poder legislativo do parlamento, conservado doravante como um mero poder decorativo, tornando-se o gabinete, deste modo, o legislador normal. O diploma de 24-III-1933 não só se unificou o poder estatal como este passou a ser absoluto. Quanto ao exército, foi também este ferreamente submetido a uma integração e obediência totais no sistema de captura e submissão de todos os corpos e poderes sociais da Alemanha. Em seguida, outros diplomas levaram o Estado totalitário ainda mais longe, pois todas essas medidas legislativas do período de 1933-34 se traduziam numa Gleichschaltung (“coordenação”) ou sincronização das actividades federais, dos estados regionais e provinciais (Länder), bem como das instâncias municipais, o que na verdade vinha concentrar todos os poderes alemães nas mãos do Führer, donde a fórmula triádica ritual em vigor desde então: Ein Volk, ein Reich, ein Führer”(“Um Povo, um Reino, um Chefe).
Foram suprimidos todos os partidos, sindicatos e organizações militares não-nazis, assim como destituídos todos os funcionários não-nazis em todos os sectores da vida profissional, assim como fisicamente eliminados os opositores políticos e internados em campos de concentração os inimigos do regime.[7] Em 1934, tendo já falecido Hindenburg (2-VIII), foi a chancelaria e a presidência do Reich unificadas na pessoa de Hitler, diploma que foi aprovado por 89,9 % dos votantes num referendo realizado em 19-VIII desse ano. Ainda em 1934, a lei de 20-I, destinada a “reconstruir o Reich”, transferiu para este todos os poderes soberanos regionais da Länder (regiões, países da Alemanha), destruindo de vez o Estado federal alemão, sendo os municípios também eliminados, pelo que o controlo total autoritário chegava ao seu termo absoluto.[8]


Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 
O Führer [9] era agora um chefe único chefe, omnipotente, sendo possível a cada responsável mandatado por ele exercer um poder arbitrário na sua esfera, o que tornava sacrossanto o dever de obediência, derivado do mesmo “princípio de chefia” cuja cúspide era o próprio chefe. Hitler, o artista austríaco falhado, o antigo vagabundo em Viena, vivendo em albergues nocturnos, o soldado alistado no exército alemão e mais tarde informador do exército após a derrota de 1918, o refundador dum minúsculo partido nacionalista, racial e totalitário na Baviera, e que em pouco tempo soubera transformar num aguerrida falange de ambiciosos que, após um falhado Putsch na cervejaria bávara, acabaria por tornar no seu dedicado aríete político, apto a apoderar-se do poder pela via legal e segundo os processos eleitorais vigentes na da frágil democracia liberal da República de Weimar, que entretanto se fizera naturalizar alemão e escrevera um longo e empolado livro que, além da autobiografia deturpada e mitificada duma vida excepcional, fadada a altos cometimentos de que o próprio autor era o profeta mais convicto, além de convincente, ao mesmo tempo que continha um programa ideológico simplista e agressivo para uso dos políticos, essa obra que aparentemente ninguém lera, embora se vendesse como um best-seller.
Gordon A. Craig, um dos mais abalizados estudiosos do dissonante e aberrante fenómeno nazi no contexto da história da Alemanha do séc.XIX e XX, resumiu em poucas páginas o sentido da chefia e da figura mesmo de Hitler, das quais transcreveremos alguns parágrafos.[10] Craig começa por desmentir que Hitler pertença a um continuum de estadistas germânicos que iria de Bismarck a Stresemann, até porque a faceta sui generis e as raízes do Führer o levaram a “tomar o poder pelo seu próprio prazer” e para “a destruição dum povo cuja existência era uma ofensa para ele e cuja aniquilação seria o seu triunfo coroado. (…). Nos anos de ascensão ao poder essa solidão desempenhou o seu papel. Criou uma distância entre ele e os camaradas de partido que ele deliberadamente cultivara para as suas vantagens psicológicas que lhe traziam, e isto não era o factor menos importante  para reforçar a sua indispensável ascendência pessoal. Isso deu um nimbo de mistério à sua figura que deslumbrou muitos que foram até à sua presença e deixaram raros nada impressionados. Daí resultou a sua própria imagem mágica sobre as multidões que vinham ouvi-lo e foram cativadas e levadas até ele antes mesmo de ele começar a falar.
A sua singularidade tinha outro aspecto. Entre todas as figuras proeminentes do período de Weimar, ele é o único do qual se pode dizer que inequivocamente possuía génio político (…), como animal político não tinha igual no seu tempo. Na sua pessoa combinavam-se a vontade indomável e a autoconfiança, o soberbo sentido do tempo que lhe dizia quando devia esperar e quando agir, a habilidade para sentir as ansiedades e os ressentimentos das massas e pô-las em palavras que transformavam toda a gente que tinha agravos num herói na luta para salvar a alma nacional. Uma mestria nas artes da propaganda, um grande talento para explorar as fraquezas dos rivais e antagonistas e a dureza na execução dos seus próprios desígnios que não eram embaraçados nem por escrúpulos de lealdade nem por considerações morais.


Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 
Era a completa fé em si mesmo e a sua crença de que estava destinado a tornar-se o chefe da nação com a qual se identificava o seu destino desde 1919 que impressionou a heterogénea espécie de niilistas, intelectuais deserdados e condottieri que tinham sido a ossatura do seu partido original durante o longo inverno do descontentamento que se seguiu ao colapso do putsch de Novembro, foi a sua aparente incapacidade de duvidar que os ligou ainda mais firmemente a ele. (…). Repetidamente, o movimento foi salvo da destruição pela fé e vontade de Hitler, até que os chefes a ele subordinados acreditaram na sua missão tão firmemente como ele mesmo.
(…). O talento que tinha, antes de mais, transformara um vagabundo errante num político consequente com a sua habilidade em atrair as massas e ganhar a sua adesão, e isto manifestava-se nos seus sucessos como orador. Todo aquele que tenha visto o filme de Leni Riefensthal sobre o congresso do partido em Nuremberga, o Triunfo da Vontade, pode compreender como é que isto era possível, mesmo que não compreenda alemão, pelo poder da paixão que animava os discursos de Hitler. (…). Mas o essencial da sua habilidade para dominar e mesmerizar os seus ouvintes eram os seus notáveis poderes intuitivos que lhe permitiam sentir os seus sentimentos e adivinhar os seus medos e desejos e dizer o que eles queriam ouvir, as coisas que lhes devia dizer (…).”[11]




Fotografia de Henrich Hoffmann
1925


 
           3.  Da Noite de Cristal à Shoah no começo da guerra
 
Em suma, em dez anos, desde a farsa do putsch na cervejaria a Janeiro de 1933 - momento em que o “milagre”, como ele mesmo disse ou “conto de fadas”, como se exprimiu maravilhado o seu chefe da Propaganda -, em que Hitler era conduzido à chancelaria, depressa confiscando, com o seu ousado e infalível mantra – o Führerprinzip –, o comando de todos os mecanismos do poder germânico. Compreende-se, assim, que nos julgamentos de Nuremberga, alguns altos dignitários do III Reich invocassem a necessidade de obediência cega aos chefes, na qual se incluiria a de todo o povo alemão em aderir sem reserva à vontades expressas pelo Führer, mesmo na ausência de ordens explícitas nesse sentido, o que, obviamente, se podia aplicar à decisão genocidária em relação aos judeus, até porque a já referida conferência de Wannsee, em 20-I-1942, onde foi decidido proceder ao holocausto em escala total, a Endlösung der juden Frage, ou seja, a “solução final da questão judaica”, o genocídio, a Shoah.[12] Acrescente-se a este fenómeno o omnipresente culto do chefe, a megalomania incomensurável de Hitler, a convicção delirante de que ele era um homem enviado pelo destino para salvar a Alemanha e ainda a adulação que em seu torno fabricava uma máquina de propaganda genialmente posta em marcha por Goebbels [13] - de que era exemplo o filme de Leni Riefenstahl Triumph des Willens (Triunfo da Vontade, 1936),[14], ajudaram a tornar o “princípio de chefia” uma visão essencial que havia de conduzir todo um país à catástrofe, como o sublinha Ian Kershaw.[15] Por fim, atendendo ao ódio antijudaico que atravessa todo o livro de Hitler no qual o futuro Estado alemão totalitário e absoluto é, ao mesmo tempo, recorrente e obsessivamente definido como racista – no Mein Kampf e falando uma vez mais contra os judeus, Hitler enfaticamente sublinha que o “Estado é um organismo racial e não uma organização económica”[16] – o III Reich, depois das leis fundadoras do novo regime, nomeadamente as legislação anti-semita de Nuremberga (Setembro a Dezembro de1935), daria um salto mais decidido quando, depois em Novembro de 1938, já anexada a Áustria e conquistada a Checoslováquia graças aos acordos de Munique (29/30-XI-1938), graças à cobardia dos dois míopes líderes das democracias europeias, Neville Chamberlain e Édouard Daladier, passava o regime nazi a esboçar uma solução global para a velha questão judaica, o que se pôs em prática depois de Herschel Grynspan,[17] um jovem judeu polaco, então expatriado em Paris, ter alvejado a tiro, em 7-XI-1938, um diplomata alemão na capital francesa, Ernst von Rath, que havia de falecer dois dias depois, pretexto ideal para uma avalanche de perseguições antijudaicas, destruições de milhares de lojas judias, além de centenas de sinagogas destruídas, milhares de israelitas detidos, mortos ou espoliados por multidões açuladas pela SS e pogroms que tiveram Goebbels e Heydrich como inspiradores principais dessa terrível “Noite de Cristal” (9/10-XI-1938). No dia seguinte, as vítimas sobreviventes eram forçadas a indemnizarem os espoliadores e agressores, com uma indemnização de um milhão de marcos, assim como leis expeditamente aprovadas proibiram os membros da detestada raça de serem donos de lojas de retalho, empresas de expedição ou encomenda e, por fim, de exercer artesanato, assim como médicos e advogados judeus eram proibidos de praticar as suas profissões, ao mesmo tempo que o a comunidade hebraica tinha até 1-I-1939 um prazo limite para vender todos os seus bens imobiliários, as suas acções, as suas jóias ou obras de arte.
Esta imensa espoliação terrorista destinava-se a proceder a uma pronta liquidação económica dos judeus alemães: a 11 de Novembro, Heydrich relatava a Goering os detalhes estatísticos daquela noite de terror anti-semita: 74 judeus mortos ou gravemente feridos, 20.000 presos, 191 sinagogas saqueadas ou destruídas, 171 domicílios arrasados. Acima de tudo, constatava-se, que este desencadear de brutalidades nazis era o implacável começo do extermínio do povo da Aliança, o prólogo duma perseguição que só a guerra, com o seu germânico Drang nach Osten, e a captura de milhares de membros de populações judaicas pela Europa fora, progressivamente conquistada pelas tropas da suástica, abriam as fauces hiantes de geena que tragaria toda uma humanidade condenada ao holocausto, sobretudo desde que, com os campos de extermínio, construídos para além das fronteiras alemãs, se iria praticando um gigantesco morticínio industrial, através dos fornos crematórios e do Zyklon B. Aos burocratas nazis de estilo vociferante e alucinado seguir-se-ia agora uma nova espécie de exterminadores, a geração de “assassinos de secretária”, de obedientes carrascos que alegariam, mais tarde, nos Tribunal Militar Internacional reunido em Nuremberga (1945-6) que eram aplicados funcionários, cumpridores de um Mal banal, como o escreveria mais tarde Hannah Arendt numa obra polémica dedicada a narrar o julgamento de Eichmann em Israel – um desses tranquilos mas inflexíveis assassinos ao serviço da Shoah.[18] Era ainda este princípio perverso da chefia, além de absoluta, dotada de todos os sistemas de terror e manipulação psíquica e castigos terríveis, sem esquecer as máquinas dementes como esse Estado-dentro-do-Estado, a que Eugen Kogon, um historiador e resistente alemão chamou acertadamente “Estado SS”.[19]



Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 


        4. A vocação genocidária do III Reich
 
         Nas suas conversas com Hitler, recolhidas por Rauschning no seu famoso Hitler disse-me, há um capítulo de especial interesse para se compreender o entranhado anti-semitismo do Führer, intitulado “Escuta Israel”, no qual o Führer, além de fazer uma reveladora reflexão sobre os Protocolos dos Sábios de Sião,[20] um dos documentos mais famosos e lidos pelos anti-semitas, opúsculo baseado numa falsificação organizada pela polícia secreta dos czares, pelo nazismo – sendo nomeadamente reeditado pelo “filósofo” do III Reich, Alfred Rosenberg[21] −, embora reconhecendo que o rábido panfleto era uma mistificação manifesta, admitia que ele lhe servira como guia no mais pequenos pormenores para compreender os manejos conspirativos dos judeus com vista ao domínio mundial, servindo-lhe como “ponto de partida da luta que iniciou” contra eles, acrescentando: “Não pode haver dois povos eleitos. Nós somos o povo de Deus. Isto diz tudo.(…). Dois mundos se defrontam! Homem de Deus e o homem de Satã! O judeu é a irrisão do homem. O judeu é a criatura doutro Deus. Saiu decerto doutro qualquer tronco humano.(…). O judeu (…) está muito mais afastado do animal do que nós, Arianos. É um ser alheio à ordem natural, um ser fora da natureza,”[22]
Em uma, o racismo hitleriano era essencial e ontologicamente anti-judaico, mas havia outras ódios também raciais como o anti-eslavo, o anti-polaco e outras formas de extermínio ou escravização de povos que o Drang nach Osten (“ímpeto para leste”) desde 1938, primeiro com o Anschluss da Áustria e a anexação da Checoslováquia, a que se seguiu, em 1939-1941, com a guerra contra os demais países europeus, inclusive  a União Soviética com a qual o III Reich acordara o tão escandaloso quanto infame pacto germano-russo, assinado por  Molotov e Von Ribbentrop, em 23-VII-1939, o que  permitiria que os exércitos dos dois improváveis signatários invadissem sem demora a Polónia e a partilhassem, embora menos de dois anos depois fosse esse pacto atraiçoado pela Alemanha, o que permitiria que esta pusesse em prática a conquista aparentemente imparável dum vastíssimo “espaço vital”(Lebensraum, outro mantra central e obsessivo do livro-programa Mein Kampf), o que deixaria os arianos da suástica incluirem nessas conquistas imensas o morticínio de povos, desde os judeus aos ciganos - esse “holocausto esquecido”, chamou-lhe Christian Bernadac[23] -, sem esquecer todas as demais populações que se incluíam na lista dos danados a serem eliminados por motivos de ódio racial, uma política genocidária que ultrapassava tudo o que anteriormente se intentara realizar pela espada, muito diferente dos massacres praticados pelos velhos estados absolutos existentes nos sécs.XVII, XVIII e XIX (desde o M.K. que Hitler descartava qualquer ideia de expansão colonial africana),[24] até porque a industrialização da morte e da captura de comunidades nacionais inteiras incluíam agora massas humanas bastante mais numerosas. [25]




Fotografia de Henrich Hoffmann
1925
 
 


 
          5. O caso de um jurista nazi, Carl Schmitt
 
Lembremos que um jurista nazi, Carl Schmitt (1888-1985),[26] louvara o Führer no seu livro Staat, Volk Bewegung: Die  Dreigliederung der politischen Einheit (Estado, Movimento e Povo: A tripla Estrutura da Unidade política, 1933) e, dando-lhe respeitabilidade como dirigente supremo da Alemanha da suástica, concedendo à matança da Noite das Facas Longas (1934) uma legitimidade jurídica que teria forte influência ao próprio Führer na assunção da sua chefia suprema da revolução nazi, reivindicando, nesse momento de crise aguda, num discurso pronunciado diante do Reichstag, em 13-VI-1934, como sendo o “responsável pelo destino da Alemanha e, portanto, o seu supremo juiz (obster Gerichtsherr) do povo alemão”, discurso muito aplaudido e que o seu biógrafo Kershaw considera como um dos “seus melhores desempenhos retóricos” e, ao mesmo tempo, “a substituição da regra da lei pelo crime como raison d’être”.[27]
Como jurista, Schmitt, influenciado em larga medida pelo sindicalismo revolucionário de Georges Sorel, concebia a sua visão da politeia segundo uma doutrina decisionista, pedindo agir e decidir em vez de valorar, distinguindo entre a diferença fundamental dos conceitos de amigo e inimigo: em política, o inimigo privado (inimicus) era alguém que teria de se exterminar fisicamente, o que não acontecia com o inimigo público (hostis). Schmitt defendia, deste modo, o uso legítimo da força bruta mais descarada, em tudo oposto aos actos da democracia liberal e a toda a concepção tradicional do império do direito, de que a República de Weimar (1919-1933) fora exemplo. Incapaz de superar o evidente oportunismo e a subserviência em relação aos titulares do poder nazi, Schmitt ficaria para sempre associado às mais flagrantes brutalidades e injustiças do III Reich, ainda que a sua obra continue a ser lida e discutida, provocando acesas controvérsias de natureza política e intelectual.
Schmitt aderira ao NSDAP em 1-V-1933[28] e fora consultor do III Reich em matérias de direito constitucional, tendo dado uma aparência de legitimidade jurídica à eliminação sangrenta de Röhm e da SA na Noite das Facas Longas (1934), classificando-a como exemplo duma “mais elevada forma de justiça administrativa”, assim como apoiara as leis discriminatórias contra os judeus em 1935, considerando que o judeu, inimigo de sangue e de raça, devia ser excluído da esfera jurídica e do próprio género humano, sendo implicitamente destinado ao extermínio). Apesar de nunca se ter manifestado anti-semita durante a República de Weimar – dedicando a sua obra clássica Verfassungslehre (Direito consitucional, 1928) ao seu amigo jurista judeu Fritz Eisler, e mostrara grande apreço por Hugo Preuss, também judeu, autor da Constituição weimariana –, Schmitt acolheria favoravelmente as leis anti-judaicas de Nuremberga (9/15-XII-1935), definindo-as como a “constituição da liberdade” essa legislação discriminatória que se afirmava destinada a “proteger o sangue alemão e a honra Alemanha”, pois reservava a cidadania germânica aos cidadãos do Reich, distinguindo estes dos súbditos privados de direitos públicos ou cívicos, o que excluía os judeus, tornados desde então “cidadãos de segunda classe”, que não podiam ter como criadas mulheres alemãs de menos de 45 anos, sendo-lhes ainda vedado  casar com alemães ou terem relações extra-maritais com estes, normas cujas infracções seriam sancionadas por penas de reclusão ou de prisão), além de que aceitaria organizar em 1936 um congresso jurídico anti-semita, intitulado “O Judaísmo nas ciências jurídicas”, o que não  impediu que viesse a incorrer, em Dezembro de 1936, na antipatia da SS, cujo seu órgão de imprensa, Das Schwarze Korps, publicou no um ataque denunciando o seu falso anti-semitismo e ainda o oportunismo da sua tardia adesão ao nazismo, um pensador hegeliano do Estado,  tendo então C. Schmitt que abandonar o seus cargos políticos, excepto um, graças à protecção de Goering, o posto no Staatsrat prussiano (conselho de Estado), perdendo de vez a sua aura de Kronjurist des Dritten Reich (“jurista coroado do III Reich”), embora viesse a substituir o professor Hermann Heller no seu lugar na universidade de Berlim, cargo que desempenharia até ao final da guerra. Derrotada a Alemanha nazi, Schmitt foi detido pelas tropas norte-americanas, passando um ano num campo de internamento, sendo depois solto em 1947, embora recusasse sujeitar-se a qualquer processo de desnazificação, ficando desde então privado de exercer qualquer profissão docente.
                                                                                                            
 
                   João Medina
 
 





 
 






[1] Eugen Kogon, L´État SS. Le système des camps de concentration allemands, Paris, 1970, pp.363-4.


[2] Hitler, Mein Kampf/A minha Luta, trad. portug., Lisboa, Edição Glaciar, 20016, pref. de D.Cameron Watt, vol.2, p.95. Todo este capítulo (“Personalidade e concepção de Estado racial-nacional-socialista”, pp.87-97) é essencial para se entender o princípio de chefia e o subjacente sentido de darwinismo social da visão racial-nacionalista preconizada por Hitler desde esta obra que, além duma autobiografia de discutível veracidade, é sobretudo um programa político que fundamentará e norteará toda a política e acção do III Reich de 1933 a 1945.


[3] Veja-se no estudo de Martin Broszat, L´État hitlérien. L’origine et l’évolution dês structures du IIIe Reich, Paris, Fayard, 1986, o programa do NSDAP em 25 pontos, de 24-II-1920, revisto em V-1926 e 1928, pp.573-6. Martin Broszat (Leipzig, 14-VIII-1926 – Munique, 14-X-1989), estudou nas universidades de Leipzig (1944-49) e Colónia (1949-52), ensinando nesta última em 1954, passando depois para  a Universidade de Munique, onde dirigiu o Instituto de História Mundial e dinamizou diversos empreendimentos historiográficos como o Projecto Baviera, publicando o seu primeiro estudo sobre o Nazismo (traduzido em inglês, The German National-Socialism, 1966). Em 1944, ainda estudante, filiara-se no Partido Nazi. Em 1969 publica Der Staat Hitlers (The Hitler State, trad. ingl.), definindo o nazismo como uma policracia e não uma monocracia Broszat criticou duramente a obra do historiador inglês David Irving, Hitler’s War, refutando a tese deste de que Hitler não tivera conhecimento do holocausto. M.B. participou na famosa “querela dos historiadores”(1984-88), criticando as teses de Ernst Nolte e de Hilgruber, sendo defendido por Saul Friedländer contra Hilgruber no tocante ao genocídio judaico, assim como teve a seu lado Jürgen Habermas e Mommsen. O seu mais conhecido discípulo foi o historiador inglês Ian Kershaw. Para Broszat, “a História não é conhecimento, é vida” (Geschichte ist nicht Wissen, sondern Leben.”).


[4] Veja-se F.Neumann, Behemoth, subcap.”O Estado totalitário”, pp.68-82.


[5] Sobre a condenação do nazismo pelo papa Pio XI, em 1937, veja-se o nosso estudo O Papa entre Antígona e Creonte: Pio XI e a condenação do nazismo. A encíclica «Mit brennedeer Sorge» (14-III.1937), separata da revisita Clio, nova série, nº 6 Lisboa, 2002, pp.9-46 , ilustr..


[6] A suástica (palavra que significa “bom augúrio” em sânscrito) ou cruz gamada (Hakenkreuz) é um símbolo circular constituído por quatro braços rectilíneos articulados num emblema giratório no sentido dos ponteiros dum relógio, seria feito emblema do NSDAP desde 1920 e, por fim, transformado em bandeira do Reich em 1935,sobre um fundo branco em campo vermelho, ao mesmo tempo que, encimada por uma águia, figurava em toda a simbologia e nas manifestações da vida nazi. Desde as suas origens longínquas em civilizações como a grega, persa, indiana e tibetana, a suástica representava o sol e o seu movimento, assim como o ciclo da vida, tendo sido utilizada pelos cavaleiros teutões, por partidos anti-semitas romenos desde finais do séc. XIX e ainda por alguns corpos francos alemães após ao fim da guerra 14-18. Veja-se Malcolm Quinn, The Swastika. Constructing the Symbol, Londres, Routledge, 1994, maxime pp. 4-5 (a suástica e a interpretação do nazismo),  25-6 (a suástica em Hissarlik, i.e., Tróia, nos achados arqueológicos de Schliemann), 53 (Goblet d’Alviella considera a suástica como um símbolo ariano, numa obra publicada em Londres, em 1894, The Migration of Symbols), 125-6 (John Heartfield utiliza as fotomontagens anti-nazis para denunciar a suástica) e 131-3 (uso da suástica no nazismo). Quanto ao artista alemão John Heartfield (aliás Helmut Held, nasc. em Berlim em 1891, influenciado pelo cubismo, futurismo e expressionismo, comunista, inimigo do hitlerismo, exilando-se em 1933 na Checoslováquia, refugiando-se mais tarde na Inglaterra e nos EUA, regressando ao seu país para viver na República Democrática Alemã, falecendo em 1968). M.Quinn examina em pormenor algumas destas fotomontagens na citada revista AIZ (mas o seu livro não as reproduz), associando a suástica à violência criminosa e sangrenta, como a legendada “Sangue e Aço”: veja-se o livro de John Wuillet, Heartfeild versus Hitler, Paris, Hazan, 1997, v.g.:  a cit. “Sangue e Aço”, AIZ, Praga, Março de 1934, p.139), na qual vemos quatro lâminas de machado compondo uma cruz gamada a pingar sangue) e ainda outras (“Como s estivéssemos na Idade Média…assim também é no III Reich”: em cima, uma roda de pedra esmaga o corpo de um homem, em baixo uma suástica negra esmaga-o também, AIZ, Maio de 1934, p.143); um nazi prolonga os braços duma cruz, aparafusando-lhes prolongamentos dobrados nas pontas, tornando-a gamada, sendo Jesus que a leva ao ombro (AIZ, 1933, p.115), um cadáver está deitado sobre uma suástica (“O crucifixo do criminoso”, AIZ, Agosto de 1933, p.124), um esqueleto com um capacete militar semeia pequenas suásticas sobre um campo (AIZ, “As sementes da Morte”, Abril de 1937, p.162), os ramos de uma árvore de Natal são quebrados de modo a formaram suásticas (AIZ, Dezembro de 1934, “A árvore de natal alemã, como os teus ramos são dobrados!”, p.147).


[7] Em Março de 1933 abrem os primeiros campos de concentração (Konzentrationslager), entre os quais o de Orienburg e Dachau. Nestes campos destinavam-se à detenção de inimigos do regime nazi, sem julgamento, desde 1933 a 1936, Após esta data e até 1942, estes campos foram fechados, ficando apenas a funcionar o de Dachau, confiado à SS de Himmler, ao mesmo tempo que se construíam outros campos como Sachsenhausen, Mauthausen, Natzweiller, Ravensbruck, Bergen-Belsen, Buchenwald, Auschwitz, Theresikjenstadt, etc. Tendo entretanto começado a guerra e invadida a URSS em 1941, um terceiro período de campos é montado, destinados sobretudo a trabalhos forçados e a “reeducação”, havendo neles muitos judeus alemães (na Noite de Cristal, em 1938, 36.000 foram detidos) e austríacos. Após a decisão, tomada em 20-I-1942, de aplicar aos judeus a “solução final”, inicia-se a partir de Fevereiro de 1942 o terceiro período dos campos, agora de extermínio, em função da política genocidária tomada na conferência de Wanseee para a “questão judaica”, sendo muitos dos detidos destinados ao trabalho forçado para a indústria alemã de armamento dirigidos por um sector especial da SS, a WVHA (Wurtschafts-Verwaltungshauptamt, Escritório Central Económico-Adminstrativo); a partir de Outubro de 1942 os detidos judeus foram enviados para os fornos crematórios de Auchitz/Birkenau. Veja-se Robert Rozett e Shmuel Spector, Encyclopedia of the Holocaust, Jerusalém, Yad Vashem/Facts on File, 2006, ilustr. e com mapas, maxime pp.121-5 e 171-3. Esta obra de grande interesse ocupa-se sobretudo dos campos de extermínio (Vernichtungslager), como Auschwitz/Birkenau, Chelmno, Dachau, Treblinka, Belzec, Sobibor, Majdenek, etc. Veja-se a bibliografia sobre o genocídio e Aiuschwitz no nosso livro Auschwitz e Moscovo. O Silêncio de Deus em Auschwitz, Lisboa, Caleidoscópio, 2006, ilust., pp.136-141.


[8] Sobre estas grandes reformas político-constitucionais do III Reich, vejam-se duas obras essenciais: o supracitado L´Etat hitlérian de M. Broszat e ainda Karl Dietrich Bracher The German Dictatorship. The origins, structure and effects of National Socialism, Nova Iorque e Washington, Praeger Publishers, 1970, maxime pp.229-286 (“A formação do III Reich”); sobre o conceito de Gleischscaltung, p 247-258. 


[9] Gustav Stresemann (Berlim, 1878 –id., 1929),  fundador, durante a República de Weimar, do Partido Nacional-Liberal,  chanceler em 1923, ministro dos Negócios Estrangeiros até à sua morte, foi a figura visível da reconciliação com a França e o negociador do plano Dawes(1924) que normalizaria a situação financeira alemã, partilhando com Aristide Briand  o prémio Nobel da Paz (1926).


[10] Veja-se Gordon A. Craig, Germany. 1866-1945, Oxford, Oxford University Press, 1988, pp.543-49. Gordon Craig (Glasgow,13-XI-1913 – 30-X-2005), nascido na Escócia, emigrou com a sua família para o Canadá e depois EUA, licenciando-se em História em Princeton, servindo depois, durante a segunda guerra mundial, na marinha dos Estados Unidos, trabalhando para o OSS (Office of Strategic Services), ensinando em seguida na Universidade de Washington, de 1950 a 1955, colabora na Oxford History of Modern Europe, publicando duas obras maiores sobre a história da Alemanha e os Alemães, Germany. 1866-1945 e Germans (1891). Escreveu ainda obras sobre história cultural alemã e publicou Wars, Politics and Diplomacy (1966).


[11] G. Craig, op. cit, p.543-46.


[12] Veja-se Christian Gerlach, Sur la Conférence de Wannsee. De la Décision d’exterminer les Juifs d’Europe, Paris, Liana Levi, 1999.


[13] Paul Joseph Goebbels (Rheydt, Renânia, 29-X-1897 – Berlim, 1-V-1945), nascido numa família católica de classe modesta, foi bolseiro, o que lhe permitiu estudar em várias universidades, doutorando-se em Filosofia em Heidelberg, tendo tido aluno de Friedrich Gundolf, um professor judeu que o deu a conhecer Goethe e Shakespeare. G., devido a uma osteomielite na sua infância e o seu coxear, não faria serviço militar, sendo um dos raros dirigentes nazis que não passou pelo exército, não conhecendo a guerra nem a fraternidade das armas. Ingressa no partido nazi em 1922, sendo conhecido como “o ratinho doutor”, pois este pequeno homem coxo e de cabelos muito negros nada tinha a ver com o ariano alto, saudável e de olhos azuis que o nazismo enaltecia. Próximo da facção socialista do NSDAP dos irmãos Strasser, Goebbels aproxima-se de Hitler em 1925, que lhe admira os talentos de orador e o nomeia Gauleiter do partido em Berlim (1926), revelando-se um propagandista extremamente eficaz das ideias nazis, dirigindo, de 1927 a 1933, o periódico Der Angriff (O Ataque). Eleito deputado do Reichstag, é nomeado chefe da propaganda do partido para toda a Alemanha, torna-se, com a chegada de Hitler ao poder, o seu eficaz e dinâmico ministro da Informação popular (Volksaufklärung) e da Propaganda, empenhando-se em impor o domínio do regime nazi sobre dos meios intelectuais e artísticos, como no cinema e a radiodifusão, ao serviço do III Reich. Foi um dos dirigentes dos pogroms e destruições de sinagogas alemãs na Noite de Cristal (9/10-XI-1938). Durante a guerra, é ainda nomeado “general plenipotenciário para a guerra total”(Generalbevollmächtiger für totalen Krieg, Julho de 1944). Fiel entre os mais fiéis, Goebbels ficou ao lado de Hitler, no Bunker, até ao fim, sendo nomeado pelo Führer, no seu testamento, como chanceler, com Dönitz como presidente. Depois de ter envenenado sua mulher Magda e os seis filhos, suicidou-se com um tiro de pistola em 1-V-1945. Há uma edição dos seus diários em 4 volumes (1923-1945): Journal (1923-1945) Paris, Le Grand Livre du Mois, 2006, anotado por Pierre Ayçoberry. Veja-se Ralf Georg Reuth, Goebbels, Nova Iorque, San Diego e Londres, Harcourt Brace & Company, 1993, ilustr., maxime pp.220-250 (“Führer, comande, nós seguiremos!”).


[14] Leni Riefenstahl (1902- 8-IX-2003), dançarina, actriz, cineasta, escritora alemã e fotógrafa. Hitler nomeou-a produtora e realizadora de filmes de propaganda nazi no NSDAP. Depois da guerra, L.R. foi objecto de três processos de desnazificação, ficando inocentada nos dois primeiros e definida como “seguidista” no terceiro. A verdade é que ela nunca se filiara no NSDAP. Após a guerra, publicou ainda dois livros de fotografias de populações negras, como o volume sobre os Nuba. O seu famoso filme Triunfo da Vontade (1936) era uma produção da UFA, galardoado com uma série de prémios nacionais e até internacionais, como a medalha de oiro no Festival de Veneza e o Grand Prix do governo francês no Festival de Paris, como se fosse possível ver esta grandiosa ode (ou ópera) cinematográfica como uma mera forma de arte ou de documentário, desprendida de qualquer intuito de apologia do nazismo que ela efectivamente sublimava e exaltava, proeza que a antiga actriz falhada repetiria com o também empolgante documentário Olympia, dedicado aos jogos olímpicos de Berlim de 1936, apoteótica celebração fílmica da sagração aclamatória de todo um povo em torno do seu chefe absoluto, como durante a grande reunião do NSDAP em Nuremberga, em Setembro de 1934. Veja-se: -Erwin Leiser, Nazi Cinema, Londres, Secker & Warburg, 1974. -, L. Riefenstahl, Leni Riefenstahl: A Memoir, Nova Iorque, Saintt-Martin’s Press, 1993.


[15] Veja-se I.Kershaw, Hitler. 1936-1945. Nemesis, 2000, vol.II da biografia de H., v.g. pp.13-35, 198, 227 e 229. Sobre o conhecimento que H. tinha do assassinato em massa da população judaica, vide pp.520-23.          


[16] Hitler, MK /A minha Luta, vol. I , p.230.


[17] Veja-se: -Anthony Road e David Fischer, Kristallnacht. The Nazi Night of Terror,  N. Iorque, Randam House, 1989, ilustr. - Corinne Chaponnaire e Annette Wiervioka, Les Quatre Coups de la Nuit de Cristal, Paris, Novembre de 1942. L’Affaire Grynspan-von Rath, Paris, Éditions Albin Michel, 2015.


[18] Veja-se: -Philippe Burrin, Hitler et les Juifs. Genèse d’un Génocide, Paris, Éditions du Seuil, 1995, maxime pp.9-19, 151-176 e 184-5. -Ph. Burrin, Ressentiment et Apocalypse. Essai sur l’ antisémitisme nazi, Paris, Éditions du Seuil, 2007, maxime pp.43-66 (“Judeofobia e identidade nazi”). –Robert Wistrich, Hitler e o Holocausto. História breve, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, maxime pp.3-29 (“O anti-semitismo e os judeus”) e “De Weimar a Hitler”(pp.33-63), “A solução final”(pp.97-127) e “A modernidade e e o genocídio nazi”pp.231-260).-Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Chicago, Quadrangle Books, 1967. –David Cesarani, Becoming Eichmann, Rethinking the Life, Crimes and Trial of a “Desk Murderer”, N. Iorque, Da Capo Press, 2004,ilustr., maxime pp.237-323 (o julgamento de A.E. em Israel, em 1961 e execução em 1962). –Hannah Arendt, Eichmann à Jérusalem. Rapport sur la “Banalité du Mal”, Paris, Gallimard, 1966, maxime pp.302-3 (a “normalidade” de E. e de outros grandes criminosos e carrascos nazis que actuavam com a boa consciência de quem cumpria ordens, como obedientes funcionários que eram “terrivelmente normais”) e pp.98-127 (a “solução final: o assassínio”).


[19] Veja-se Eugen Kogon (Munique, 2-II-1902-1988), L´État SS. Le Système des Camps de Concentration allemands, Paris, Édtions du Seuil, 1970, maxime p.363 e ss (os Alemães e os campos de concentração). O historiador Eugen Kogon, cristão, democrata e europeísta convicto, foi membro da resistência católica na Áustria, sendo preso pela Gestapo em 1936 e de novo em 1938, e condenado ao internamento no campo de concentração de Buchenwald (1939 a 1945), publicando em 1946 a sua conhecida obra sobre o sistema dos campos geridos pela SS. Seria, depois da guerra, jornalista e um dos fundadores do Partido Democrata Cristão no Hesse, militando por um entendimento entre católicos, protestantes e judeus, além de ser firme defensor do ideal duma Europa unida. Ensinou na Universidade de Darmstadt, tornando-se, em1951, professor catedrático de Ciências Políticas, aposentando-se em 1968. Recebeu em 1982 o Prémio Cultural do Hesse. Sobre a SS veja-se ainda Heinz Höhne, The Order os the Death’s Head, N. Iorque, Ballantine Books, 1983, maxime pp.332 e ss, 367 e ss, 400-53. Veja-s ainda Edouard Husson, “Nous pouvons vivre sans les Juifs.” Novembre 1941. Quand et commment ils décidèrent de la Solution Finale, Partis, Le Grand Livre du Mois, 2005,


[20] Os Protocolos dos Sábios de Sião constituem uma das mais famosas falsificações, sendo uma adaptação dum panfleto francês contra Napoleão III, de 1864, que a Okrana, a polícia secreta russa, editou em 1900-1901, distribuindo-o pelos jornais, como sendo 24 capítulos dum registo atribuído aos membros dum governo secreto judeu, os Sábios de Sião, que teria planeado nos finais do séc. XIX – na altura em que se reunia, em 1897, em Basileia, o primeiro congresso sionista –, o domínio sobre o mundo, texto tomado pelos anti-semitas europeus como prova de que a “judiaria internacional” planeava essa conquista. Na altura dos famosos pogroms de Kichinev (1903), um jornal russo publicara um resumo desses Protocolos. Em 1907, Serge Nilus faria uma versão ampliada do texto, que foi traduzido em várias línguas, inclusive em português, em 1923: sobre esta tradução lusa dos Planos da Autrocracia judaica. Protocolos dos Sábios de Sião, Porto, Livraria Portuguesa de Joaquim Maria da Costa, 1923, veja-se o nosso estudo António Sardinha, anti-semita, separata da revista A Cidade, Portalegre, 1989, pp.45-122, maxime pp.85-86. Veja-se Norman Cohn, Histoire d’un Mythe. La “conspiration juive” et les Protocoles des Sages de Sion, Paris, Gallimard, 1967. Hitler foi informado da existência desta brochura, traduzida em alemão em 1920, graças a Alfred Rosenberg (que a reeditaria mais tarde) e Dietrich Eckart, referindo-se-lhe no Mein Kampf, considerando-se “um aluno dos Sábios de Sião”, escrevendo ainda: “Nos Protocolos dos Sábios de Sião, tão odiado pelos judeus, demonstra-se de forma incomparável como toda a existência deste povo assenta numa mentira permanente.”(M.K./A minha Luta, vol. I, p.389). O facto é que 33 edições dos Protocolos foram publicadas na Alemanha antes de Hitler tomar o poder. Na Suíça, um tribunal de Berna comprovou que o panfleto era uma completa falsificação, embora já em 1921 o The Times londrino declarara o folheto uma falsidade grosseira. O industrial americano Henry Ford (1863-1947), que editara os Protocolos nos E.U.A., acabaria por desistir desse projecto a partir dum acção que lhe foi movida na justiça. Durante os 12 anos do III Reich alemão, esta falsificação foi recomendada para leitura nas escolas. H.Arendt observa que “a ficção duma longínqua dominação mundial constitui a base da ilusão dum futuro domínio mundial”(O Sistema totalitário, Lisboa, D. Quixote. 1978, p.455). Na sua autobiografia, Karl Jaspers lembra que uma vez falara com Heidegger sobre os Protocolos: “Eu falei-lhe da questão judaica, da estúpida insensatez sobre os Sábios de Sião, ao que ele me repondeu: «Há todavia uma perigosa associação internacional dos judeus»”, K.J., Philosophische Autobiographie, 1977, citada por Peter Tawny no seu Heidegger et l’Antisémitisme. Sur les “Cahiers noirs”, Paris, Seuil, 2014, p.72. Esta obra sublinha o patente anti-semitismo do filósofo Martin Heidegger (Messkiersch, Baden, 26-IX-1889 – Frisburg em Brisgau, 26-V-1976), que sucedera ao filósofo judeu Edmund Husserl na cátedra de Freiburg (1928). Católico, filiado no partido nazi, M. H. aceitaria ser reitor dessa universidade em 1933, falando, no seu discurso inaugural nesse cargo, da “glória e da grandeza da revolução de 1933”. Recentemente editaram-se os seus inéditos, os póstumos Caderno Negros, manuscritos entre 1930 e 1970, 34 cadernos de capa negra com reflexões de M.H., sobretudo entre 1938 e 1941, deixando o autor expresso querer que fossem editados como o final da sua obra. A edição destes Cadernos…, é dirigida por Peter Tawny. Sobre M.H. e o nazismo, veja-se Victor Farias, Heidegger et le Nazisme, Paris, Verdier, 1987.


[21] Sobre A. Rosenberg, assim como o M.K., veja-se o cit. estudo de E.Vermneil, Les Doctrinaires de la Réolution allemande, pp.193-249.


[22] H. Rauschning, Hitler disse-me, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1940, pp.251 e 254. Sobre o anti-semitismo de Hitler, veja-se sobretudo o vol.I do M.K./A minha Luta, pp.370-412. A ideia de que alemães e judeus são dois povos eleitos esteve, provavelmente, na base do perturbador livro de meta-história de George Steiner (nasc. em 1929), El Traslado de A.H. a San Cristobal,  Barcelona, Ultramar Editores, 1985, maxime p.80 e ss (os judeus), 160 e ss (judeus e alemães) e 207-208 (“Um só Israel, um só Volk, um só chefe. Moisés, Josué, os reis ungidos (…).” Nesta obra intrigante de meta-história,  Hitler é capturado pelo Mossad na selva amazónica, e enquanto o transportam para um aeroporto donde o levarão para Israel para este ser julgado, o Führer  monologa diante dos seus captores judeus, explicando que procurou fazer na Alemanha uma réplica, ponto por ponto, à ideia de povo eleito dos judeus, transformando o  nazismo na exacta cópia de um povo eleito ariano que intenta superar o povo hebreu. “O meu racismo foi a paródia do vosso, uma imitação grotesca. O que é um Reich milenar em comparação com a eternidade de Sião? É possível que eu fosse o falso Messias que havia de se ensaiar antes. Julgai-me e  julgareis a vós mesmos. Übermenschen escolhidos!”(p.208). Ron Rosenbaum, no seu estudo Explaining Hitler. Thr Search for the Origins of the Evil (Nova Iorque, Random House, 1998, pp.207-315) dedica um interessante estudo/entrevista com G. Steiner sobre The Portage to San Cristóbal of A.H.).


[23] Veja-se Christian Bernadac (1937-2003), L’Holocaust oublié. Le massacre dês Triganes, Paris, Éditions Frwnce Empire/Livre de Poche, 1979. Jornalista da TV francesa, C.B. escreveu diversas obras sobre o holocausto, sendo de destacar esta pelo facto de nela se examinar o extermínio do povo cigano pelos nazis, cifrado em cerca de 250.000 ciganos mortos nos territórios europeus conquistados pelo III Reich, embora também refira que estes foram internados em numerosos campos de concentração franceses nos meses que precederam o eclodir da segunda guerra mundial, assim como depois da invasão. O autor lembra que a ausência de língua escrita deste povo nómada e o facto de o tribunal internacional de Nuremberga não ter chamado nenhum cigano a depor tivessem transformado o holocausto deste grupo humano em completo esquecimento, o que constitui mais um forma de desprezar e humilhar essa comunidade humana tão marginalizada desde há séculos; cf. maxime pp.28-42 (breve história do povo cigano), 48-57 (a caminho do genocídio praticado pelos alemães) e 58-191 (antecâmara francesa do genocídio cigano, com cerca de 130.000 internados antes da guerra e posterior envio desse grupo para Auschwitz, Dachau, Buchenwald, etc.). O Estado francês publicou no Journal Officiel, a 6-IV-1940, instruções dadas aos prefeitos no sentido de internarem os ciganos (“romanichels”),  completadas por um novo diploma de 29-IV-1940 (pp.67-71) antes do armistício com a Alemanha; diplomas posteriores, já durante o regime de Vichy; ver p.74 e ss; cifras dos ciganos exterminados em toda a Eruopa, incluindo territórios da URSS: p.63: lista dos campos franceses, pp.61-2; total de ciganos  mortos na Europa dominada pela Alemanha: 219.700 mortos. Esta obra de C.Bernadac está, infelizmente, construída e escrita de modo confuso e sem critérios históricos que a tornem um estudo relevante e, ainda menos, definitivo.


[24] Veja-se Hitler, M.K./A minha Luta, vol.2, pp.308, num capítulo dedicado precisamente à “Orientação pata leste ou política de Leste” (pp.304-332), dedicado ao problema da Rússia no Lebensraum germânico, começando por afirmar que esta “questão é também a pedra de toque para o jovem movimento nacional-socialista”(p.304) apostado como está em ter uma política “racial-nacionalista” , um  dos mantras do seu discurso contra a Rússia que não passaria, no fundo, de um “estado judaico” (pp.326-7), donde a necessidade absoluta da “luta contra a bolchevização judaica do mundo (que) exige uma tomada de posição clara em relação à Rússia soviética”(p.327). Este volume saiu em 1926.


[25] Sobre os diversos genocídios, desde o judeu ao dos ciganos, veja-se: -Philippe Burrin, Hitler et les Juifs. Genèse d’ un Génocide, Paris, Éditions du Seuil, 1995, maxime pp.9-19, 151-176 e184-5. -Ph. Burrin, Ressentiment et Apocalypse. Essai sur l’antisémitisme nazi, Paris, Éditions du Seuil, 2007, maxime pp.43- 66 (“Judeofobia e identidade nazi”). –Robert Wistrich, Hitler e o Holocausto. História breve, Lisboa, Círculo de Leitores, 2004, maxime pp.3-29 (“O anti-semitismo e os judeus”) e “De Weimar a Hitler”(pp.33-63), “A solução final”(pp.97-127) e “A modernidade e e o genocídio nazi”pp.231-260).-Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Chicago, Quadrangle Books, 1967. - Arno J. Mayer, La “Solution finale” dans l’ Histoire, Paris, La Découverte, 2002, ambicioso estudo da aplicação da “solução final”, sobretudo desde o intuito de passar ao anti-semitismo, degradação da cidadania e pogroms da Noite de Cristal, de 1938, ao extermínio com o começo da guerra (pp.233 e ss). -Goetz Ally (nasc. em 1947), Why the Germans? Why the Jews?, N. Iorque, Metropolitan Books, 2014, maxime pp.38-9 (Wagner anti-judeu), pp.46-8 (a hiper-sensibilidade dos alemães diante das minorias estrangeiras no seu país) e p.65 e ss (a “questão judaica” para os alemães); este livro, de enorme interesse para se entender a proto-história do anti-semitismo alemão, abre com esta pergunta essencial, “a questão das questões”: “Porque é que os alemães mataram, seis milhões de homens, mulheres e crianças que eram culpados apenas de serem judeus? Como foi isso possível? Como é que um povo civilizado, culturalmente diverso e produtivo podia lançar esta espécie de energia destrutiva maciça? “(p. 1); esta obra procura explicar como se engendrou esse ódio colossal que gerou o holocausto (cf. pp.219-233). Lembrando que Caim matou Abel por se sentir inferiorizado e injustamente tratado por Deus, Ally afirma que “o primeiro crime na história da humanidade nasceu da inveja e do desejo de se sentir igual. O pecado mortal da inveja – junto com uma crença na felicidade colectiva, ciência moderna e técnicas específicas de domínio político – é o que tornou possível o crime em massa sistemático em massa do judeu europeu.”(pp.232-3).–Timothy Snyder, Black Earth. The Holocaust as History and  Warning, Londres, The Bodley Head, 2015, com mapas, este livro é um panorama globalizante dos massacres de judeus por toda a Europa ocupada pelo exército alemão, maxime p.1 (Schmitt explicou que “a política resultava não da história ou de conceitos mas do nosso sentimento de inimizade. Os nossos inimigos raciais eram escolhidos pela natureza e a nossa tarefa era combatê-los e matar ou ser mortos”),  pp.2-10 (“o mundo de Hitler”), pp.144-5 (“Durante toda  a carreira de Hitler, Schmitt fornecera um elegante apoio teórico às acções do Führer, tanto em po9l+ºitica doméstica como estrangeira, quando  Hitler alterou o Estado alemão e começou a destruir os seus vizinhos. (…). Não há tal coisa como política doméstica, uma vez que tudo começa com o confronto com um inimigo estrangeiro escolhido”) e pp.207-225 (Auschwitz como metonímia  para o holocausto como um todo).


[26] Carl Schmitt (Plettenberg, Vestefália, 11-VII-1885 – idem, 7-IV-1985), de família católica da região de Eifel, tendo feito os estudos jurídicos em Berlim, Munique e Estrasburgo, alistou-se em 1916 no exército, casando em nesse ano com uma cidadã da Sérvia (C.S. seria mais tarde excomungado pela igreja católica por se ter divorciado dela), sendo depois professor de direito em Bona (1921), Berlim (1926) e  Colónia (1933) e, de novo, em Berlim (1933-1945). Depois do final da guerra, tendo perdido o lugar de docente na universidade, Schmitt viveria muitos anos ainda, Fez conferências na Espanha franquista e, em Maio de 1944, veio a Portugal fazer também palestras, sendo aqui recebido pelo seu amigo Mircea Eliade, antigo membro da Guarda de Ferro romena, então adido de imprensa da embaixada do ditador Antonescu em Lisboa, que lhe serviu de guia na visita que fizeram ao Museu da Janelas Verdes (ver M. Eliade, Diário portugués, trad. esp., Barcelona, Editoral Kairós, 2001, pp.123-4) e Les Moissons du Solstice Mémoire II. 1937-1960, Paris, Gallimard, 1988, p.85 (tendo C.S. solicitado a M.Eliade informações sobre Portugal para o seu livro A Terra e o Mar acerca das civilizações marítimas, o romeno falou-lhe de Camões e da simbologia aquática, mas o alemão não se mostrou entusiasmado com Os Lusíadas, que lera numa tradução alemã; no Museu das Janelas Verdes, C.S. só lhe interessou ver As Tentações de Santo Antão, já que Bosch era um pintor que então despertava enorme atenção na Alemanha). Schmitt publicaria umas memórias em 1950, Ex captivitate Salus. Erinnerungen der Zeit 1945.47 (Ex Captivitate Salus.Memórias do Tempo de 1945 a 47). Há várias traduções francesas e americanas recentes das suas obras: -Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty, Cambridge, MIT Press, 1985.-The Crisis of parliamentary Democracy, Cambridge, MIT Press, 1985.-Théorie politique, Paris, Gallimard, 1988. -Parlamentarisme et Démocratie, Paris, Le Seuil, 1988.-Political Romanticism, Cambridge, MIT Press, 1986. -La Notion du Politique. Théorie du Partisan, Paris, Flammarion, 1992. –Le Nomos de la Terre, Paris, PUF, 2000. –La Dictature, Paris, Seuil, 2000, The Tyranny of Values, 1996, War/Not War: A Dilemna, 2004. Entre os seus admiradores pós-1945 contaram-se figuras como Ernst Jünger, Jacob Taubes, Alexandre Kojève e Jacques Derrida. Sobre o papel de C.Schmitt no direito nazi, veja-se: -Edmond Vermeil, Doctrinaires de la Révolution allemande, ed. cit.,1948, maxime pp.161-3 (C.S., diz E.V.,  prepara a fusão do Estado com a sociedade, já que a Alemanha é virtualemente um Estado totalitário a que falta apenas um modo de governo adequado, para se afirma como um verdadeiro Volkstaat). -Paul Gottfried, Carl Schmitt: Politics and Theory, N. Iorque,  Greenwood Press, , 1990.- F.Neumann, Behemoth, pp.65-7 e 70. -E M.Broszat, op. cit., pp.178. –K.D. Bracher, op. cit., pp.232 (“Numerosos advogados constitucionais alemães, numa proeza de rápida readaptação, tentaram adaptar-se à realidade do partido único do Estado autoritário numa teoria sistemática abrangendo todas as componentes do regime. O primeiro de todos a faze-lo foi o flexível e oportunista Carl Schmitt, o principal professor de direito internacional e público da Universidade de Berlim”), 241( inclui o nome de C.S. à cabeça duma lista de  juristas que se prestaram a ajudar a “brutal lei” de 30-VI-1934, chamando-lhe cinicamente “o Führer protege a lei”,  elogiando o crime em massa como “justiça do Führer”, “genuína  administração da justiça” e “a mais alta lei” da nova ordem”) e  268.-Yves Charles Zarka , Un Détail nazi dans la Pensée des lois de Nuremberg du 15 septembre 1935, Paris, PUF, 2005. –Jean-François Kervéjian, Que faire de Cartl Schmitt?, Paris, Gallimard, col. Tel, 2011. –Jean-Pierre Faye, L´État total selon Carl Schmitt, Paris, Germina, 2013.-Alain Renaut, Les Philosophes politiques contemporains, vol.V, Paris, Calmann-Lévy, 2001, cap. “Défier la raison. Le décisionisme de  Carl Schmitt”, pp.150-7, no qual diz que C.S. podia muito bem ter figurado entre oz réus do Tribunal de Nuremberga, ao que escapou finalmente, em 1947, para viver uma longa velhice na Vestefália desde 1947 (p.152), observando: “Ultrapassando os limites de lucidez, C.Schmitt concluiu pela irracionalidade fundamental do político como tal e pelo seu inevitável abandono do carisma do leader ou do chefe”(p.155), tanto mais que este decisionismo schmittiano se baseia no critério político da distinção entre amigo e inimigo, sendo este o que deve ser destruído, pelo que o decisionismo “abre a apologia da guerra como horizonte inelutável das relações políticas” (pp.155-6).


[27] Kershaw, op. cit., vol. I, p.519. 


[28] Heidegger ingressou no partido nazi na mesma data, 1-V-1933: veja-se o artigo de Jean-Pierre Faye, “Le nazisme et les intellectuels”, Le Monde, 5-VIII-2013, sobre a ligação de amizade entre três autores: Carl Schmitt (1888-1985), Ernst Jünger (1895-1998) e Heidegger (1889-1976), “estranho trio de pensadores”, como diz, lembrando que o primeiro, o jurista, é o criador do termo “Estado total”, em 23-XI-1932, Estado que se deve atribuir a si mesmo “os meios do poderio”, lembrando ainda que o Estado de Mussolini se chamava “Stato totalitario”, devendo o “totale Staat “ hitleriano tomar a feição do Estado fascista italiano, argumento que teria seduzido a indústria pesada germânica da altura, a poucas semanas de Hitler ser nomeado chanceler do III Reich. Por seu turno, Heidegger declararia, em Dezembro de 1933, em Leipzig, que o Führer acabava de “regressar à essência do Ser”. E em 1935, o filósofo d’O Ser e o Tempo afirmava que “o verdadeiro e único Führer faz sinal no seu ser para o domínio dos semi-deuses”. Em 1955, aqueles três alemães reuniram-se num seminário e os seus textos seriam publicados no mesmo volume dali resultante. Jean-Pierre Faye (nasc. em 1925) é autor do livro Langages totalitaires (Paris, Hermnann, 1972, reedit. em 2004) e de L´État total selon Carl Schmitt (2013). Quanto ao escritor nacionalista, romancista e diarista E. Jünger, combatente nas duas guerras mundiais, recusando, apesar de pertencer ao movimento “nacional revolucionário” no período da República de Weimar e de frequentar Otto Strasser e Ernst Nikisch,  qualquer participação no regime nazi, sendo vigiado pela Gestapo  desde 1933, retirando-se para o campo em 1936, tendo estado como capitão nas tropas alemãs na Ocupação da França, entre 1941  e 1944, pertencendo ao estado-maior em Paris, dispondo dum escritório no Hotel Majestic na capital francesa, mostrando-se francófilo e defensor dum ideal europeu de reconciliação pós-bélico, recusando, após o fim da guerra, submeter-se a um processo de “desnazificação” que lhe propuseram as tropas aliadas, passando a ser na Alemanha uma figura muito controversa, o que não o impediu de receber o prémio Goethe em  1982 e  ser editado na colecção Pléiade da Gallimard. É autor de Tempestades de Aço (1920), O Combate como Experiência interior (1922), O Trabalhador (1931), Nas Falésias de Mármore (1939) e de diários cobrindo os anos 1939-1948 e1965-1996. Publicou-se um volume da sua correspondência com Martin Heidegger. Foi convidado a jantar no palácio do Eliseu, em 1995, pelo presidente François Mitterrand. Converteu-se ao catolicismo em 1996, aos 101 anos.
 
 

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