sexta-feira, 27 de maio de 2016

Amália.

 
 
Amália Rodrigues,
na sua casa no Brejão
(fotografia de Octávio Diaz-Bérrio, 1972)


         Após vários anos de consultas médicas em Portugal e de mil e uma frustrações por ver passar o tempo e não ver detectada a doença que tanto a apoquentava e tanto a fazia sofrer, a Amália resolveu vir aos Estados Unidos consultar médicos americanos.
         Como o primo do Eng. César Seabra, marido da Amália, era médico de clínica geral e especialista em cirurgia torácica, veio para casa dele, localizada em Waterbury, estado de Connecticut. E como o primo do César, além de exercer, por esse tempo, o cargo de chefe do Departamento de Cirurgia Torácica no Saint Mary´s Hospital, em Waterbury, tinha também o seu consultório particular, foi por aí que a Amália começou, tendo-se submetido a todo o tipo de exames médicos, prescritos pelo Dr. Veiga. Uma vez detectada a doença – um tumor maligno  na carótida –, a Amália foi operada, com êxito, pelo Dr. Gotay no hospital onde trabalhava o Dr. Adriano Seabra Veiga.
Após lhe haver sido dado alta do hospital, a Amália foi fazer a convalescença a casa do Dr. Seabra Veiga, onde sempre tinha estado hospedada, juntamente com o marido e com a D. Lili, espécie de governanta, secretária e companheira fiel da Amália, como já foi referido. Dizer que foi tratada como uma princesa é desnecessário. Em casa do Dr. Veiga e da D. Rita, todos os hóspedes eram tratados com todos os requintes de fidalguia. Nesses tempos ainda a família Seabra Veiga tinha uma ou duas empregadas, motorista e jardineiro. E quando havia convidados de cerimónia, por ocasião de banquetes, o que acontecia com bastante frequência, apareciam cozinheiros suplementares, mordomo e serventes de mesa, trajando os uniformes da praxe.   
         Completamente restabelecida, a Amália regressou a Portugal e voltou às luzes da ribalta, continuando a cantar o fado nas mais célebres salas de espectáculos do mundo inteiro, com realce para a França. Mas, passados anos, surgem novas doenças. E, sendo assim, aí vem a Amália tratar-se novamente aos Estados Unidos, hospedando-se, como da primeira vez, em casa do primo do marido. Só que, em virtude do tipo de operação a que teve de submeter-se, desta vez foi operada, não no Saint Mary´s Hospital, em Waterbury, mas no Yale New Haven Hospital, em New Haven, localizado também no estado de Connecticut. Aliás, viria a ser também nesse mesmo hospital que, tempos mais tarde, lhe viria a ser extraído um cancro nos pulmões, por meio de uma pneumatomia.
         Foi após esta terceira operação feita nos Estados Unidos que, embora ainda muito combalida, a precisar de cuidados permanentes e de passar quase todo o tempo na cama, a Amália começa a sentir-se tentada a dizer sim aos inúmeros admiradores, de entre os membros da comunidade luso-americana da Nova Inglaterra, que desejavam visitá-la em casa da família Seabra Veiga.
         E foi assim que um dia – um domingo frio e chuvoso de inverno, que saudosamente lembro – se combinou autorizar uma visita à Amália, por parte de uma comitiva de fadistas e guitarristas vindos da cidade de Newark, estado de Nova Jersey (Newark tem a distinção de ser a cidade americana com o maior número de murtoseiros e de ser uma das cidades americanas com o maior contingente de luso-americanos).
Como os fadistas e os guitarristas se perderam pelo caminho, chegaram a Waterbury com quase duas horas de atraso. Na opinião do Dr. Veiga, na sua qualidade de anfitrião e sobretudo de médico, e também por temperamento e feitio, deveria reduzir-se o tempo da visita ao mínimo, fazendo recolher a Amália ao quarto de doente e de repouso, logo após os cumprimentos e uns breves minutos de convívio. Mas a Amália, toda coração, e mais carente de calor humano do que de medicamentos, afirmou que estava a sentir-se melhor e que, portanto, a visita podia ser prolongada, tanto mais tendo em conta a longa viagem, com um tempo tão mau, ainda por cima, que todos esses seus grandes e bons admiradores, embora não conhecidos dela, tinham feito para cumprimentá-la e homenageá-la.    
         Depois de uma opípara e farta merenda, entremeada de conversa amena, a saber a reminiscências acariciadoras da compreensível vaidade da Amália, da mais variada procedência, as guitarras começaram a chorar tristezas e saudades, e as vozes começaram a soluçar fados dolentes, enquanto a Amália, sentada numa fofa cadeira de braços e confortavelmente agasalhada, escutava e saboreava de olhos semicerrados e de rosto ensimesmado, num rictus meio trágico, os sons das guitarras e as vozes dos fadistas. Pouco a pouco, melancolicamente embalada pelo som de alguns dos seus fados mais antológicos, a Amália não resiste e, quase inconsciamente, começa a associar a sua voz tímida e doente à dos cantadores e cantadeiras desses seus fados. E chega o momento em que a Amália, como que esquecida do seu precário estado de saúde, se põe a cantarolar sozinha, em surdina, um dos seus fados favoritos. Efusivamente aplaudida, pede aos guitarristas que a acompanhem num dos seus outros fados tristes. E os guitarristas, visivelmente lisonjeados, enchem-se de brio e paixão e satisfazem o desejo da Amália.
          Findo esse fado, o Cirurgião, estupidamente esquecido das limitações da Amália, sugere que ela cante, mesmo que seja sotto voce, o Barco Negro. Mostrando, por uma vez, o bom senso que o Cirurgião não tinha, a Amália, com um sorriso fugaz de doente, reagiu com estas palavras que o Cirurgião recordará envergonhado pela vida inteira: “Ó doutor, como sei que me quer bem e deseja que eu continue a viver, não lhe posso fazer a vontade. O Barco Negro, que fez de mim a cantora internacional que hoje sou, é superior às minhas forças.”
Foi então que o Dr. Veiga, aproveitando esta saída da Amália, achou por bem dar por terminada a sessão de homenagem com que os briosos fadistas e guitarristas de Newark tinham deliciado a Rainha do Fado, e os seus amigos e admiradores, numa mágica e inesquecível tarde chuvosa e fria de inverno da Nova Inglaterra. 
 
António Cirurgião
´


7 comentários: