sexta-feira, 13 de maio de 2016

Aventura em Marrocos.

 
 

 
 
 
Aventura em Marrocos.
 
O fascínio do fruto proibido.
 
 
 
         Foi nas férias de Natal de 1976. Juntamente com um grupo de cerca de cinquenta americanos, quase todos da terceira idade e a respirar prosperidade, da vila e subúrbios de Litchfield, do Estado de Connecticut, fui em excursão passar umas duas semanas a Marrocos e uma semana a Portugal.
         Durante a estadia em Marrocos visitámos as cidades de Marraqueche, Fez, Tânger, Rabat, e Casablanca, e, durante o percurso de autocarro, vimos por alto algumas outras cidades.
         Se disser que, muito antes da realização da excursão a Marrocos, o que mais desejava visitar eram as mesquitas, digo a verdade toda, dado o meu grande fascínio pelos lugares de culto, desde as catedrais às mesquitas, desde os mosteiros às ermidas mais humildes. Entretanto, para grande desilusão minha, uma das primeiras coisas que o nosso guia oficial, funcionário público do governo marroquino, nos fez saber, logo que aterrámos no aeroporto de Rabat, foi que era absolutamente proibido entrar em qualquer mesquita a todos os não muçulmanos.
         Ao perguntar se não poderia abrir uma excepção à regra, sobretudo tendo em conta que se tratava de uma excursão organizada pela reitora de um community college americano, excursão em que participavam vários educadores e professores de história universal e de religião comparada, como era o meu caso (expliquei eu com algum exagero), a resposta do zeloso e autoritário guia foi pronta e terminante: − que era absolutamente proibido e ponto final.
         Perante directiva tão peremptória, resolvi não voltar a levantar a questão, mas, muito só para mim, prometi-me que não sairia de Marrocos sem visitar uma mesquita, por mais difícil que viesse a ser a realização dessa minha promessa. E que era difícil sabia-o eu muito bem, uma vez que não se previa qualquer programa de carácter individual durante essas duas semanas: todas as visitas teriam que ser feitas em grupo e acompanhadas pelo dito guia e por um seu auxiliar, desde o momento da entrada até ao momento da saída de Marrocos.
         Passavam os dias; de uma cidade viajávamos para outra; aproximava-se o termo da excursão, e as possibilidades de eu visitar uma mesquita pareciam ser cada vez menores.
         Estávamos em Tânger; faltavam dois dias para deixarmos Marrocos a caminho de Lisboa, e eu sem ter podido entrar numa mesquita de Marrocos! Mas a promessa estava feita e eu tinha de cumpri-la. Como? No penúltimo dia, logo a seguir ao almoço, como de costume, todos se aprontavam para visitar não sei que monumentos, quando eu fiz saber que me sentia um pouco mal disposto, e, sendo assim, achava por bem ficar a repousar no hotel. Que lamentavam o facto e que esperavam que, ao regressarem, eu já me sentisse melhor.
         Apenas o autocarro saiu do hotel, com todo o grupo, eu dirigi-me sozinho para um sector da cidade onde no dia anterior tinha visto uma mesquita, por fora, naturalmente. Tratava-se de uma mesquita modesta, cuja entrada dava para uma rua antiga e muito estreita (digo “mesquita modesta”, para estabelecer o contraste com as majestosas mesquitas que anos mais tarde teria a dita de visitar, fascinado, sem quaisquer restrições, no Egipto e na Turquia).
         Apenas aí chegado, notei que estava perante uma mesquita para onde entravam e donde saíam pessoas, num fluxo quase contínuo. A porta estava separada da rua por quatro ou cinco degraus descentes, pelo que logo cheguei à conclusão que não me seria possível entrar sem ser visto por um ou vários dos fiéis. Que fazer então? Dar meia volta e desistir da aventura? De maneira nenhuma. Tinha de tentar, desse no que desse. E apenas deparava com uma pequena aberta, tirava os sapatos muito depressa e começava a descer os degraus. Mas, dado o tal fluxo quase contínuo de fiéis, lá surgia sempre alguém que, ao dar com os olhos em mim, me acenava imediatamente que não podia entrar, descobrindo no meu semblante, na minha maneira de vestir e nos meus ademanes que eu não era um deles, que eu não era muçulmano. E eu voltava a calçar os sapatos, ascendia os degraus e parava no passeio da rua à espera de outra oportunidade. Mais umas três tentativas e o resultado era sempre o mesmo. Lá surgia um fiel a acenar-me que eu não podia entrar. Até que chegou o momento em que pude descer todos os degraus, cruzar a ombreira da porta e penetrar na mesquita. Mas não tinha dado mais de meia dúzia de passos, com os sapatos na mão e a cabeça ligeiramente inclinada, com ar de devoção, quando me vejo agarrado pelo ombro. Volto-me e dou com os olhos num indivíduo dos seus vinte e tal anos, que me pergunta de chofre, em francês, naturalmente:
         − Que faz o senhor aqui? Não sabe que é proibido aos turistas não muçulmanos entrar numa mesquita?
         − Como? Proibido? Que pena! − apressei-me eu a dizer, em tom ingénuo, no meu francês quase parisiense, como era de esperar, modéstia à parte, de um Mestre em francês, por Assumption College, de Worcester, Massachusetts, e por um professor universitário de francês. - E eu que tinha esperado com tanta ansiedade o momento em que tivesse a dita de poder entrar numa mesquita para aí fazer as minhas orações, sentindo, como sentia, qualquer coisa dentro de mim que me chamava para essa extraordinária religião que eu tão bem conhecia academicamente, mas que nunca havia tido a sorte de senti-la e vivê-la no recolhimento de uma mesquita - continuei eu, com um ar muito compungido e devoto, a explicar ao meu interlocutor a razão do meu suposto atrevimento.
         − Ah! − exclamou o meu interlocutor. − Era mesmo assim? Isso era muito impressionante! Que sabia eu de concreto sobre a religião maometana? Sabia eu quais eram os deveres principais de um verdadeiro fiel maometano? Quais eram?
         E eu que, por dever profissional, sabia, pela rama, os factos fundamentais sobre a teologia dogmática e moral e a liturgia básica da religião muçulmana, apressei-me a recitá-los ao meu examinador, como se estivesse a ser interrogado sobre o catecismo da religião católica.
         A essa pergunta outras se seguiram, inclusive uma sobre a unidade ou a trindade de Deus, segundo o Alcorão, o que mostrava que o meu examinador não era totalmente hóspede em matérias do dogma da religião católica.
         E perante esse meu conhecimento básico da religião muçulmana, desde a existência de Alá e do seu Profeta até à peregrinação a Meca, ao menos uma vez na vida, se materialmente possível, e desde a obrigação de rezar cinco vezes por dia até à observação fiel do jejum dos 40 dias do Ramadão, o meu examinador aprovou-me preliminarmente, deu-me as boas-vindas e prometeu-me que iria rezar muito por mim, a fim de eu dar piedosa guarida à voz interior que me incitava a abraçar de alma e coração a religião muçulmana.
         E enquanto me ia endoutrinando e procurava convencer-me dos benefícios inefáveis que me adviriam da minha futura adopção da religião maometana, o meu futuro irmão, como passou a tratar-me, ia-me apresentando a várias das pessoas que, ao entrarem na mesquita para a oração, se punham a olhar para mim com ar um pouco desconfiado. Mas o meu anfitrião e mentor tranquilizava-os imediatamente, dizendo-lhes que ele tinha fé em que dentro de muito pouco tempo todos seríamos irmãos em Alá e no seu Profeta.
         E já levávamos quase uma hora a conversar sobre a religião maometana, a meia voz e em tonalidade devota, dentro da mesquita, quando foi dado sinal para a oração comunitária.
         Após uma rapidíssima explicação do que se tratava, o meu presumível futuro irmão em Alá e o seu Profeta, mandou-me pousar os sapatos no chão, ao lado dos dele, mas numa posição ritual que eu desconhecia, e fez-me sinal que o acompanhasse. Dados uns passos, em direcção à parede da mesquita em que se encontrava a qiblah (uma espécie de nicho, que apontava para Meca), ocupámos o nosso lugar numa das longas filas de fiéis, paralelas à dita parede. E iniciadas as orações, em voz alta, sob a direcção de um iman, disse-me que o imitasse. E eu, de lábios fechados, por não saber uma única palavra da língua em que toda a comunidade rezava - o árabe - e de olhos um pouco enviesados para ver o que o meu improvisado mestre de noviços fazia, lá me ia esforçando por imitar todos os seus gestos. Mas era tal a minha atrapalhação, que a todo o momento o via a ajeitar-me as mãos na posição que o ritual prescrevia. E entre colocar as mãos no rosto e nos joelhos, com os dedos em determinada posição, e entre ajoelhar-me e prostrar-me, de mãos estendidas e de palmas para baixo a roçar o chão, e levantar-me e voltar a ajoelhar-me e a prostrar-me, passou a hora da oração comunitária em voz alta, em diálogo contínuo entre o corifeu e o coro.
         Que senti eu verdadeiramente durante aproximadamente as duas horas passadas no seio da mesquita de Tânger, cujo nome não  lembro? Senti uma vasta gama de emoções, entre as quais sobressaem a vitória de ter conseguido satisfazer a enorme curiosidade de ver por dentro uma mesquita de um país árabe e, ainda por cima, durante uma função litúrgica, contra a ordem expressa do guia e da lei de Marrocos; o sabor mais amargo que doce de ter cometido uma espécie de sacrilégio contra a religião em que tinha nascido, em que tinha sido criado e em que tinha vivido como religioso de votos perpétuos e como seminarista próximo da ordenação sacerdotal, “espécie de sacrilégio” que não deixou de doer um pouco, interiormente, mesmo apesar do agnosticismo em que tinha vindo a viver fazia já vários anos.
         De maneira que foi com certa sensação de alívio que saí para o ar fresco da noite de Janeiro do ano do Senhor de 1976.
         Mas quando julgava que a aventura acabara no momento em que transpusera a ombreira da porta da mesquita para o ar fresco da noite tangerina, que entretanto caíra, quase para surpresa minha, longe estava eu de imaginar que o pior estava ainda por acontecer. É que, julgando que, uma vez fora, o presumível futuro irmão, que em boa hora me apadrinhara na mesquita, me deixava ir em santa paz a caminho do meu hotel, insistiu em acompanhar-me até lá.
         Que muito obrigado, que não precisava, que eu sabia dar com o caminho sozinho. Não senhor: ele fazia questão de me acompanhar. E perante a minha insistência de que não precisava de guia, ele foi peremptório: que, sendo noite cerrada, e tendo de passar por ruas mal iluminadas e ainda para mais por um bairro pouco recomendável para uma pessoa sozinha e estrangeira, ele não podia permitir, como meu futuro irmão, que eu corresse o risco de ser assaltado, e quem sabe se até esfaqueado por um dos muitos ladrões que havia por esse bairro. E, perante tanta insistência, eu não tive outro remédio senão consentir em que ele me acompanhasse.
         Havíamos percorrido uns duzentos metros, por umas ruas muito estreitas e quase sem qualquer iluminação, quando o meu futuro irmão em Alá e o seu Profeta, cujo nome desconhecia, apesar das horas passadas em sua companhia e sob a sua protecção dentro da mesquita, se voltou para mim e me disse, sem qualquer preâmbulo, que eu tinha de lhe dar dinheiro, uma vez que ele era pobre e eu era rico.
         Ao ouvi-lo pronunciar essas palavras, quase me caiu a alma aos pés. Em que sarilhos me tinha eu metido! Na rua em que nos encontrávamos não havia viv'alma. Instintivamente, meti as mãos aos bolsos para ver se por milagre dava com qualquer coisa com que pudesse esboçar uma espécie de gesto de auto-defesa, como, por exemplo, uma navalha, que sabia de antemão que não tinha.
         Que fazer então? A primeira coisa que lhe disse, trespassado de medo, foi que nem eu era rico nem ele devia ser pobre. Como era possível que ele, daquela idade − de 29 anos, como me dissera durante a nossa conversa, logo à saída da mesquita −, não tivesse um emprego em que ganhasse o suficiente para viver? A resposta dele foi que não tinha emprego nem tinha qualquer interesse em arranjar emprego. Que até aos vinte e cinco anos ainda ganhava mais ou menos o suficiente para custear o que comia, em casa da mãe, onde sempre vivera. Que ganhava essa módica quantia de dinheiro tocando percussão num conjunto musical de um bar, mas aos vinte e cinco anos achou que devia abandonar esse trabalho precário mundano e dedicar toda a sua vida à oração e à prática da caridade. Que a mãe bem insistia com ele para que arranjasse algum emprego a fim de pagar pelo menos o que comia, mas que ele a única coisa de que gostava na vida era passar horas esquecidas a rezar na mesquita e a passar parte das noites em velórios. Que nessa mesma noite, depois de me deixar no hotel, tinha que ir para um velório, como quase todas as noites fazia. Que por isso ele não tinha dinheiro nenhum e que eu tinha de lhe dar umas boas notas.
         E depois de lhe dizer que, estando no último dia da viagem, já não me restava dinheiro nenhum, ele ripostou que não acreditava nisso: que, como americano, tinha por força de ter muito dinheiro. Que lho desse, portanto, porque ele precisava absolutamente dele.
         E foi então que me lembrei de apelar para os sentimentos religiosos dele, dizendo-lhe que eu não compreendia como tínhamos estado a rezar juntos, como íamos ser irmãos em Alá e o seu Profeta, que em espirito já o éramos, e ele queria por força que eu lhe desse dinheiro que eu não tinha. Que visse bem que isso não era bonito: que certamente não era essa a imagem que ele me queria dar de um bom e devoto filho de Maomé.
         Que o que me pedia não tinha nada a ver com a imagem com que eu podia ficar dele - foi a sua reacção imediata. Pelo contrário, quanto mais dinheiro recebesse de mim mais possibilidades ele tinha de cumprir, com mais assiduidade e fervor, todos os seus deveres religiosos e as suas devoções particulares e as suas obras de caridade.
         De maneira que, absolutamente convencido de que ele parecia disposto a tudo fazer para me extorquir dinheiro, eu ia estendendo os olhos por meio da cerração da noite para ver se via pessoas perto ou se deparava com pedras nas ruelas por que íamos andando, para tentar defender-me oportunamente, se necessário fosse.
         Foi então que, no meio do meu medo crescente, por não saber para onde me devia virar, me surgiu uma ideia que talvez me ajudasse a sair do terrível perigo em que ingénua e estupidamente me havia embrenhado. Estava muito bem. Era difícil de compreender que, quem rezara por mim e comigo, queria a todo o custo obrigar-me a dar-lhe dinheiro que tanto me custara a ganhar. Mas, uma vez que ele era uma alma que desejava ardentemente viver só para o serviço de Alá e dos que Ele chamava para o seu seio, eu ia de facto dar-lhe uma boa parte do dinheiro que me restava, na esperança de assim contribuir para o bem dele e para a glória de Alá e do seu Profeta. Que comigo não tinha nenhum, sabendo como era perigoso, como ele confirmara, andar com dinheiro no bolso num meio em que havia tantos ladrões; mas que o tinha no quarto do meu hotel. Por isso que não se voltasse a falar entre nós de dinheiro; que ocupássemos o tempo que nos separava do meu hotel a falarmos da nossa fraternidade e do que ele fazia nos velórios por aqueles que Alá chamava para o seu seio e para o seu paraíso; que, uma vez chegados ao hotel, ele me esperava à porta enquanto eu ia buscar ao quarto uma boa parte do dinheiro que tinha lá para lho dar.
         E quando notei que ele aceitava a minha proposta, senti como que nascer em mim uma alma nova, vendo com bastante clareza que quase todo o perigo estava passado. Mas a alma pareceu ainda mais nova no momento em que, transposta uma curva da última rua em que nos encontrávamos, demos de frente, já a pouca distância e feericamente iluminado, com o hotel em que eu e todos os outros membros da excursão estávamos hospedados.
         Uma vez chegados à porta, disse-lhe que, tal como tínhamos combinado, ele esperasse aí enquanto eu corria ao quarto buscar o dinheiro.
         Que suspiro de alívio! Transposta a porta do hotel, notei que o grupo já tinha regressado das visitas da tarde e se encaminhava para a sala de jantar. Com a maior discrição e com a serenidade possível, depois da prova a que idiotamente me havia submetido, dirigi-me à pessoa de mais confiança do grupo, contei-lhe por alto o que me acontecera e implorei-lhe um favor muito especial: que à porta do hotel, do lado de fora, estava uma pessoa assim e assim (e fiz-lhe uma descrição rápida da fisionomia e do trajo); que tivesse a bondade de, de quarto em quarto de hora, verificar muito discretamente se ainda se encontrava lá. Que no momento em que já não o visse, fizesse o favor de me informar. E a verdade é que o meu presumível futuro irmão em Alá e o seu Profeta esteve à minha espera mais de uma hora, segundo o cômputo do amigo que me valeu nessa noite de loucura em Tânger. Até que, talvez cansado de esperar por um Godot que nunca mais chegava e quem sabe se telepaticamente chamado pelo defunto que precisava que ele o fosse velar, me deixou a refazer-me de um susto inesquecível, vivido no intrigante, misterioso e perigoso mundo marroquino de Tânger.                       
 
 
António Cirurgião
 

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